Big Techs agem contra a regulação de plataformas no Brasil 

Empresas gigantes da área da tecnologia realizaram, nos últimos anos, propagandas explícitas contra a regulamentação das plataformas digitais
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Big Techs agem contra a regulação de plataformas no Brasil 
11/06/2024
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No Brasil, empresas como Alphabet (controladora do Google), Apple, Amazon, Meta, X (antigo Twitter) e Microsoft difundem a ideia de que a regulamentação das plataformas digitais poderia se configurar em censura. Elon Musk, dono do X, chegou a afirmar que não acataria as determinações da Justiça brasileira. O empresário  incitou ainda o pedido de impeachment do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, entre seus seguidores.

Ana Mielke*

Nas últimas décadas, as plataformas digitais se consolidaram como importantes mediadoras da esfera pública, realizando a curadoria e a entrega de conteúdos a partir de recomendações algorítmicas. Este novo cenário tem impacto direto sobre a liberdade de expressão e sobre as democracias e tem motivado a aprovação de regulamentos em várias partes do mundo. No Brasil, as próprias plataformas digitais têm encabeçado um processo de resistência à regulação, ora atuando como atores políticos no debate público, ora influenciando decisões no parlamento brasileiro.  

A recente decisão do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), por paralisar a tramitação do projeto de Lei 2630/2020 acendeu o sinal de alerta. Em abril deste ano, o parlamentar anunciou a criação de um Grupo de Trabalho[1], formado por representantes de todos os partidos, para discutir o tema da regulação das plataformas digitais, em uma indicação de que iniciaria os debates do zero. Tal decisão desconsidera o amplo acúmulo em torno do tema, produzido ao longo dos últimos quatro anos, com a realização de inúmeras audiências públicas, seminários e simpósios com participação da sociedade civil e de setores empresariais e de governo.

O PL 2630/2020 é uma iniciativa do parlamento brasileiro que visa estabelecer a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, criando regras para  garantir o direito dos usuários e promover a responsabilização de plataformas por meio de mecanismos de transparência, fiscalização e aplicação de sanções, sendo também um importante mecanismo de combate à desinformação na internet.

O relator da proposta, deputado Orlando Silva Foto: Pablo Valadares/Câmara dos Deputados
Deputado Orlando Silva
Foto: Pablo Valadares/Câmara dos Deputados

A aparente tentativa de enterrar projetos que promovam a regulação das plataformas digitais, no entanto, não se limita ao episódio em questão. Em abril de 2023, mesmo após aprovado pedido de regime de urgência para sua votação do PL em plenário, o presidente da Casa retirou o projeto da pauta do dia, sob alegação de que não havia consenso em relação a alguns pontos. 

O caráter de urgência havia sido solicitado pelo deputado federal Orlando Silva (PCdoB), que, como relator do PL, havia apresentado parecer preliminar atestando a viabilidade da votação em plenário. O presidente da Câmara, no entanto, afirmou que não havia consenso do colégio de líderes para votação do tema.

Interferência direta de Elon Musk

A decisão do presidente da Câmara aconteceu poucos dias após o empresário Elon Musk, atual dono do X (antigo Twitter), ter proferido inúmeros ataques ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes. 

 Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes
Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes. Fonte: TSE

Em postagens feitas na sua própria rede, o empresário acusou o ministro de promover censura ao determinar que a rede social promovesse o bloqueio de contas de usuários investigados em inquéritos abertos pelo STF. 

Além de afirmar que não acataria as determinações da Justiça brasileira, em ato de desdém à soberania nacional, o empresário ainda incitou o pedido de impeachment de Moraes entre seus seguidores. Lira por outro lado, negou terem sido estas as motivações.

Interferência no debate público

Além da disputa política nas instituições legislativas, o PL2630 vinha sofrendo contundentes ataques públicos por parte das próprias empresas de tecnologia. Portanto, não é a primeira vez em que as plataformas digitais – ou seus proprietários/representantes – interferem no debate público para produzir resistência à aprovação de regulação para o setor. 

Ao longo dos últimos anos, empresas como Google, Meta (proprietária de Facebook e Whatsapp), Spotify, Telegram e Brasil Paralelo, entre outras, realizaram propagandas explícitas contra a aprovação do PL 2630/2020. Além disso, alguns buscadores tiveram seus algoritmos orientados a retornarem ao usuário da busca apenas informações contrárias ao PL, induzindo assim, à construção da ideia de “PL da Censura”.

Algumas destas propagandas estavam fixadas na página inicial das plataformas e aplicações e só foram retiradas do ar após determinação do ministro Alexandre de Moraes, em maio de 2023. Além da retirada dos conteúdos, o ministro do STF determinou a aplicação de multas caso houvesse desrespeito à decisão. 

Google publicou link que levava a texto com críticas ao projeto de lei (Crédito: Reprodução)
Google publicou link que levava a texto com críticas ao projeto de lei (Crédito: Reprodução)

Este episódio chamou a atenção sobre como as empresas de tecnologia podem orientar o debate público sobre um tema, instrumentalizando suas plataformas e aplicações de acordo com seus próprios interesses. 

Inquéritos das Fake News e das Milícias Digitais

As decisões do ministro Alexandre de Moraes foram tomadas no âmbito dos inquéritos que estão sendo realizados na suprema corte brasileira, dos quais é o relator. Estes inquéritos visam investigar a conduta de usuários das redes sociais – dentre os quais, pessoas politicamente expostas por ocuparem cargos públicos e/ou elegíveis – da disseminação de ataques diretos às instituições brasileiras, em alguns casos, com ameaças pessoais a ministros e incitação ao golpe de Estado. 

Dentre os inquéritos estão o INQ 4781, aberto em 2019, conhecido como Inquérito das Fake News, e o INQ 4784, aberto em 2021, conhecido como Inquérito das Milícias Digitais. Além disso, a pedido da Polícia Federal houve bloqueio temporário do Telegram, por não atender a decisões judiciais para bloqueio de perfis apontados como disseminadores de informações falsas sobre as urnas eletrônicas e a credibilidade do sistema eleitoral brasileiro. Após inúmeras conversas, no entanto, a empresa aderiu ao Programa Permanente de Enfrentamento à Desinformação junto ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Regulamentação no mundo

Embora no Brasil o debate sobre regulação de plataformas tenha encontrado resistências, é importante ressaltar que a regulação é algo em curso em vários países democráticos pelo mundo. Os mais recentes regulamentos aprovados são o Digital Services Act (DSA) e o AI Act, aprovado pelo Parlamento Europeu em 2023 e 2024, respectivamente, e o Netzwerk Durchsetzung Geset (NetzDG), na Alemanha. E no Reino Unido, encontra-se em tramitação no parlamento o projeto de lei que visa estabelecer o Online Safety Act.

Estes regulamentos objetivam a construção de protocolos e instrumentos que gerem maior responsabilização das plataformas quanto aos conteúdos disseminados, prevendo a aplicação do chamado dever de cuidado e a produção de avaliações periódicas sobre os possíveis riscos sistêmicos gerados pela circulação de conteúdos desinformativos ou que promovam violência e discriminação. Dentre esses conteúdos estão, por exemplo, aqueles que afetam a saúde pública, como os que circularam durante a pandemia do coronavírus.

“Maior problema do nosso tempo”

Não é novidade que a infodemia e a desinformação alcançaram status de “maior problema do nosso tempo”, caminhando lado a lado e, às vezes, fomentando o aumento da miséria, a proliferação de doenças e o ódio contra as diferenças. Estes fenômenos não podem ser analisados à revelia dos modelos de negócios hegemônicos, consolidados pelas big techs neste mesmo período. São, antes de mais nada, resultado destes modelos, altamente especializados na extração de dados e na geração de mais-valia comportamental.

Além disso, diferentes pesquisas têm apontado como este cenário tem favorecido o crescimento da extrema direita no mundo. Então, se de um lado, o modelo de negócios, baseado na retenção da atenção do usuário, está pouco interessado em diferenciar conteúdos falsos, polemistas ou violadores de direitos, desde que eles gerem cliques, engajamento e lucro, de outro, grupos de extrema direita investem pesado em “escritórios de desinformação”, que operam como indústrias para disseminar ódio e violência. 

Interesses antidemocráticos

No Brasil, a ideia de que o PL 2630 poderia se configurar em censura foi amplamente difundida na sociedade brasileira pelas próprias plataformas, contribuindo para a construção de um imaginário social contrário à regulação das plataformas. Mas a extrema direita teve papel fundamental em capilarizar este discurso anti-regulação, camuflando interesses políticos antidemocráticos e discriminatórios (no que diz respeito a gênero, origem, raça, sexualidade, etc.) por meio do véu da defesa da liberdade de expressão.

A influência que as big techs exercem atualmente sobre democracias em geral vai muito além da disputa em torno do significado de liberdade de expressão. Países da chamada periferia do capitalismo também lidam com um problema estrutural. No Brasil, por exemplo, boa parte da infraestrutura tecnológica e comunicacional de governos, tanto federal, quanto de estados e municípios, está nas mãos das empresas de tecnologia. Inclua-se aí a produção de conhecimento nas universidades e escolas regulares.

Estamos falando de contratos bilionários, na maior parte das vezes encabeçados por uma das cinco gigantes: Alphabet (controladora do Google), Apple, Amazon, Meta (controladora de Facebook, Instagram e Whatsapp) e Microsoft, que ofertam maquinários, softwares, serviços especializados e até mesmo a capacitação para uso.

Ao não investirem na produção de parques tecnológicos, aplicações e tecnologias de ponta ou em soberania dos dados, por exemplo, estes países se põem na condição de reféns destas gigantes, que operam muitas vezes constrangendo governos e comprando parlamentares pela manutenção de seu lucro global exorbitante. A regulação das plataformas digitais não é apenas condição necessária para a garantia da liberdade de expressão e os direitos dos usuários nas redes, ela emerge como necessária também para se garantir uma paridade de armas na defesa da própria democracia.


Ana Mielke

Ana Mielke – jornalista, professora, mestre Ciências da Comunicação pela ECA/USP e coordenadora no Intervozes