Com as Olimpíadas, o mundo descobriu a poluição das águas cariocas, mas ainda não enxerga os maiores prejudicados e interessados em salvá-las: os pescadores locais
Por Piero Locatelli
Diante da perspectiva de iatistas renomados se contaminarem nas águas do Rio de Janeiro, o mundo descobriu que a Baía da Guanabara ainda está suja. No final do ano passado, a Associated Press publicou que o consumo de três colheres de água poderiam fazer um esportista parar no hospital. Na preparação para as Olimpíadas, os maiores jornais do mundo competiram para ver quem dava mais denúncias sobre os riscos à saúde dos atletas, e a World Sailing, a organização mundial de iatismo, entrou em um embate com o governo brasileiro.
Quem mais sofre com poluição, porém, não são os esportistas. Nem é o governo quem mais combate o problema. As maiores vítimas também são as mais atuantes nos esforços para limpar aquela água: os pescadores artesanais da baía de Guanabara. Duas vezes por semana, o líder do grupo, Alexandre Anderson, dá uma volta de três ou quatro horas visitando seus pontos mais problemáticos: estaleiros, refinarias, canais de esgoto, grandes barcos e tudo mais que possa afetar a água, os peixes e a vida daqueles que moram ali.
“Turismo tóxico boladão” é o apelido carinhoso dado por Anderson à volta que demos naquele dia. Rondas de fiscalização como essa são feitas por ele e pelos pescadores de seu grupo há mais de cinco anos na baía. A vigília já levou à interrupção de obras da Petrobras na região, a partir de denúncias feitas por eles ao Ministério Público Federal. Hoje, Anderson é considerado um exemplo para outras comunidades pelo ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), que promove viagens para que ele conte a experiência a outros grupos de pescadores pelo país.
Anderson conta que já sofreu seis atentados, que variaram entre tiros em frente à sua casa e bloqueios ao seu carro no meio da rua. O pescador não aponta um único culpado, mas atribui as ações à sua atuação contra os interesses da Petrobras e outras empresas petrolíferas na região.
Ao mostrar os locais em que acertaram balas em seu corpo, ele diz que aguarda algo pior. “Eu já morri, só não escolheram a data ainda”, conta o pescador, que tem direito à escolta do governo federal desde 2009, dentro do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, ligado ao Ministério da Justiça e Cidadania.
Anderson foi o nosso guia no “turismo tóxico boladão”. Em um pequeno barco, nos mostrou os pontos mais críticos da baía de Guanabara, e um pouco do que pode ser feito para salvá-la.
No terminal, uma placa pede distância e proíbe a pescaria. “Tem pescador que já foi baleado aqui tentando fazer seu trabalho. E não só aqui, cada terminal tem um histórico de violência”, diz Anderson.
A promessa de desenvolvimento para todos nunca foi cumprida, mas o impacto para os pescadores artesanais da região já foi muito sentido.
A perspectiva do pré-sal levou à construção de uma nova refinaria da Petrobras, que visitamos logo em seguida. De dentro dela, diversos canos despejavam um líquido branco e espumoso. “Eles dizem que é água acumulada da chuva, mas não chove há uma semana, como isso é possível?”, questiona Anderson. Ele diz já ter feito uma denúncia ao Ministério Público Federal, que agora apura o problema.
Anderson conta que já foi detido perto da refinaria por navegar além dos limites permitidos, mas “desenrolou com o comandante da Marinha” para ser solto logo em uma das oito vezes em que foi preso.
As restrições, segundo ele, acontecem porque os pescadores são os “monitores naturais” da baía. Sem as suas fiscalizações, diz o pescador, uma das maiores empresas do Brasil, a Petrobras, poderia fazer o que bem entendesse ali.
Logo depois do terminal, mais de uma dezena de navios petroleiros estavam atracados na baia. Entre eles, embarcações da Petrobras que comportam até 175 mil toneladas de petróleo, vizinhos incompatíveis com os barcos dos pescadores que raramente ultrapassam cem quilos.
Atrás dos petroleiros, nós víamos uma lancha da Marinha que nos acompanhava em diversos momentos da viagem. Anderson evita a lancha, e afirma que os pequenos barcos de alumínios dos pescadores podem ser virados pelas ondas que as embarcações da Marinha fazem. Segundo ele, as vezes os barcos militares fazem isso “só de sacanagem”.
Pouco antes de chegar à ponte Rio-Niterói, boias isolavam a área onde serão disputadas provas olímpicas. Os pescadores não podem passar dali desde o dia 15 de julho, quando a Marinha colocou ainda mais restrições à navegação dos pescadores. “É aqui que o gringo vai nadar e navegar na merda,” dizia Anderson, apontando para a água turva que passava sob nosso barco.
Anderson diz que nunca acreditou nas promessas sobre a despoluição da baia para as Olimpíadas, e ficou apreensivo quando ela foi anunciada, imaginando que o impacto das competições nela seria negativo. Agora, conta, o evento estava atrapalhando o cotidiano das comunidades, com as restrições de navegação e a grande quantidade de militares na baía.
Durante a elaboração do projeto das Olimpíadas, o governo não consultou as populações que vivem ali. As comunidades deveriam ter sido ouvidas e participado do processo de decisão sobre os aspectos do evento que afetariam a sua vida, conforme estabelece a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, da qual o Brasil é signatário. A consulta também não ocorreu em nenhuma das outras obras na região, e Anderson se mostra pouco esperançoso de que ela possa acontecer um dia.
Logo depois, chegamos a um lugar ainda mais sujo: o canal de Cunha. Seu lixo é uma mistura do óleo da baia com o entulho depositado nos mangues ao lado da cidade. Ali, passamos ao lado de diversas comunidades. Anderson explicava que algumas delas eram do tráfico, e outras da milícia, onde não poderíamos descer.
Em frente a todas aquelas comunidades, há diversos barcos de pescadores. Apesar de não serem formadas somente por pescadores, parte dos que moram nelas ainda tira o sustento da baía de Guanabara.
Enquanto discorria sobre as comunidades, Anderson se mostrava ansioso para nos mostrar a sua “nova descoberta”: um desvio de esgoto que cai direto no canal que alimenta a baía. Uma dezena de metros para dentro do mangue, uma cachoeira de chorume desembocava na água, com um aspecto que nos faz duvidar de qualquer tipo de tratamento.
Citando a descoberta desse canal como exemplo, Anderson explica a importância do seu trabalho de monitoramento.“Se não fosse a gente, ninguém ia passar aqui,” diz. Agora, ele elabora a denúncia que fará ao Ministério Público Federal sobre esse despejo.
Há 16 anos, um duto da Reduc estourou e despejou 13,6 milhões de litros de óleo dentro da água. Até hoje, a empresa sequer pagou a multa de R$ 1,23 milhões que deve a 20 mil pescadores na região.
No caminho, o mangue é tomado por lixo de sacos plásticos e embalagens. Anderson argumenta que o lixo doméstico, apesar de mais visível, é um detalhe perto do impacto gerado pela indústria na região.
Ao ver uma tainha presa na rede, pergunto a Anderson se é possível comê-la sem medo. Ele diz que, apesar da contaminação da baia, eles são tão seguros quanto os peixes do mar aberto. Para isso, ele se embasa em um estudo da PUC-RIO (Pontifícia Universidade Católica) feito em 2011. Os biólogos da universidade chegaram à conclusão de que os metais pesados encontrados nos peixes da baía também estavam presentes em peixes de mares abertos do Rio de Janeiro.
Já Anderson continua a se mostrar otimista ao final da nossa volta. Ele discorre sobre como a sobrevivência da baía e dos pescadores é intimamente ligada. Sem a vida de um, a vida do outro desapareceria. A única esperança para a vida na Guanabara, diz ele, é que o modo de vida dos pescadores artesanais não desapareça.