A dimensão geopolítica do acordo entre Mercosul e União Europeia
30/06/2020
por
Detlef Nolte
Confira o artigo de opinião escrito pelo pesquisador Detlef Nolte. Ele destaca pontos que considera positivos no acordo entre o Mercosul e a União Europeia
O acordo entre o Mercosul e a União Europeia é criticado como projeto neocolonial ou tratado vampiro. Sob essa perspectiva, com a assinatura do acordo a União Europeia explorará e oprimirá os países do Mercosul. O acordo decerto produzirá ganhadores e perdedores, de ambos lados, mas, de acordo com um estudo da London School of Economics, realizado a pedido da União Europeia, o comércio em geral vai crescer e a prosperidade das duas regiões aumentará, se bem que de maneira modesta.
É importante aproveitar as oportunidades e não tratar apenas dos riscos. Os acordos comerciais não impedem que os governos adotem políticas proativas para melhorar a competitividade das empresas nacionais (o que inclui aumentar as verbas para a ciência e o desenvolvimento de novas tecnologias), e para promover as exportações; especialmente por o acordo conferir prazos longos de transição para determinados setores.
É necessário superar o bairrismo nacional, tanto na América do Sul quanto na Europa, e contemplar o acordo de uma perspectiva geoeconômica e geopolítica. América do Sul e Europa devem se posicionar em um mundo marcado por um confronto cada vez mais forte entre a China e os Estados Unidos. É preciso defender o multilateralismo e um sistema internacional baseado em regras e normas vinculantes para todos (por exemplo na área de comércio e de padrões ambientais). Os estados sul-americanos precisam cooperar para ter uma voz na política internacional e para defender sua autonomia. O Mercosul precisa da ancoragem externa da União Europeia; em caso contrário, cresce o risco de que o bloco econômico desmorone.
A União Europeia não é o parceiro comercial mais importante e nem o principal comprador de matérias-primas do Mercosul; essa posição cabe à China. Isso se aplica especialmente à carne bovina e a produtos agrícolas como a soja, cujo cultivo está vinculado ao desflorestamento da Amazônia. A China também é o principal exportador de produtos industriais que concorrem com os dos fabricantes nacionais do Mercosul. O ex-presidente uruguaio José “Pepe” Mujica, um dos líderes intelectuais da esquerda latino-americana, reivindicou repetidamente que a Europa deve buscar equilibrar a influência chinesa na América Latina, e respaldou explicitamente o acordo entre o Mercosul e a União Europeia.
A União Europeia é o segundo parceiro comercial mais importante do Mercosul, adiante dos Estados Unidos. E as empresas europeias são os investidores estrangeiros mais importantes na região. O acordo permite que a União Europeia se afirme geoeconômica e geopoliticamente na América do Sul, contra a China e os Estados Unidos, para defender um sistema de comércio mundial aberto e baseado em regras. O acordo permite que as normas ambientais europeias sejam aplicadas à América do Sul, ao menos para os produtos de exportação à União Europeia.
Os acordos comerciais podem, além disso, proporcionar uma alavanca política que será possível utilizar quando necessário. É mais fácil proteger a selva amazônica se o Brasil e os demais países do Mercosul forem parte de um acordo que inclui um compromisso de implementar as medidas do Acordo de Paris para redução das emissões dos gases causadores do efeito estufa (entre as quais uma redução do desflorestamento). O acordo facilita a expansão e aprofundamento das redes de proteção ambiental entre a América do Sul e a Europa, e atenua a reivindicação de soberania absoluta sobre o meio ambiente em território nacional.
A proteção ao meio ambiente e o comércio não são mutuamente excludentes. A Europa tem peso como potência comercial, e a União Europeia tem um poder de gestão que deveria utilizar. Mas, da perspectiva europeia, também existem limites claros para um acordo. Se um governo se nega a cumprir suas obrigações internacionais ou destrói seu sistema democrático, não haverá acordo com esse país.
Tradução de Paulo Migliacci
No Brasil, o texto foi publicado na Folha de São Paulo