Nascida e criada na zona norte de São Paulo, Bianca Santana saiu ainda jovem da periferia e foi morar no centro da cidade. A transição, porém, foi marcada por inúmeras experiências que constituíram sua identidade racial e seu ativismo.
Bianca é jornalista, escritora e pesquisadora. Doutora em ciência da informação, pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA), com uma tese sobre memória e escrita de mulheres negras. No mestrado, estudou o uso de tecnologias digitais na educação de jovens e adultos na Faculdade de Educação da USP.
Foi professora da Faculdade Cásper Líbero e da pós-graduação em jornalismo multimídia na Faap (Fundação Armando Alvares Penteado). É ainda uma das fundadoras da Casa de Lua Organização Feminista e da Casa da Cultura Digital, onde coordenou um projeto de recursos educacionais abertos.
Pela UNEAfro Brasil, colaborou com a articulação da Coalizão Negra Por Direitos e agora se dedica à estruturação do Instituto de Referência Negra Peregum. É associada da SOF – Sempreviva Organização Feminista e compõe os conselhos dos institutos Procomum, Vladimir Herzog e Marielle Franco.
Autora do livro Quando me descobri negra (SESI-SP, 2015); organizadora das coletâneas Inovação Ancestral de Mulheres Negras: táticas e políticas do cotidiano (Oralituras, 2019), Vozes Insurgentes de Mulheres Negras: do século XVIII à primeira década do século XXI (Mazza Edições/Fundação Rosa Luxemburgo, 2019), e Recursos Educacionais Abertos: práticas colaborativas e políticas públicas (Edufba/Casa de Cultura Digital, 2012).
Atualmente, está escrevendo uma biografia de Sueli Carneiro, a ser publicada pela Companhia das Letras em 2020. Durante uma live com Bianca Santana, o Nós, mulheres da periferia conversou um pouco sobre sua trajetória e as condições para o enfrentamento ao racismo na atualidade.
Assista à live do Nós com Bianca Santana
“Me sinto da zona norte, mas muito do Rio São Francisco”
“Minha família vem do nordeste para São Paulo, no fluxo de migração tão comum nos anos 40, 50, 60. Meus avós maternos vieram da região de Bom Jesus da Lapa, Bahia, e Pão de Açúcar, Alagoas. Já os paternos, de Pernambuco. Gosto de sentir que eu venho toda do rio São Francisco”.
Os avós migrantes de Bianca se instalaram na zona norte de São Paulo, onde seus pais se criaram. Quando nasce, a jornalista é criada na região da Vila Medeiros. Com a separação dos pais, se muda para a Cohab Fernão Dias, na Vila Sabrina, e depois para o Parque Edu Chaves, onde até hoje sua mãe vive.
Já na infância, o interesse pelos estudos se destaca. Aconselhados por uma professora, seus pais investem em uma escola particular para sua formação. “Meu pai era bicheiro na época e, durante esse período, que não durou muito, dinheiro não era um problema para ele”.
O período da escola já apontava para uma sensação de não pertencimento e falta de identidade racial, que foi conquistar mais tarde.
“Na escola, eu era a menina pobre. Tinha amigas que não podiam ir na minha casa porque os pais achavam perigoso ir na COHAB. E no prédio, nos conflitos, eu era a menina que estudava em escola particular”.
“Então eu mergulhei em estudar, por mais que eu me desse bem com todo mundo, eu me sentia vulnerável nas relações, e nos livros eu me encontrava”, relata.
Além dos estudos, Bianca também se dedicava às ações na Igreja Católica. Chegou a cogitar ser freira. Ela conta que sua atuação política e interesse pelas questões sociais começou nesse espaço.
“Indignada com a realidade social eu sempre fui. O primeiro lugar que encontrei para dar vazão a isso foi a Igreja Católica. Nos anos 90, na periferia de São Paulo, a Teologia da Libertação ainda era algo muito forte. Eu pude dar vazão para uma forma de atuação política e tive uma formação de esquerda. Os primeiros Fóruns Sociais Mundiais eu fui com a igreja, de ônibus para Porto Alegre, fiquei em convento”.
“Você é enxerida, gosta de ler e escrever. Por que você não faz jornalismo?”
Durante o ensino médio, no Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo, Bianca cogitava estudar medicina. A intenção era cuidar e ajudar as pessoas. Já nessa época, a jovem fazia estágio e dava aulas de inglês. Um acidente, porém, a fez mudar de ideia.
“Cai do telhado, de uma altura de 7 metros, e quebrei o pescoço. No acidente, quando no hospital eu tive contato com os médicos, eles falavam comigo de um jeito que eu achava surreal, fui me afastando dessa ideia de fazer medicina e não tinha a menor ideia do que fazer. Fiquei muito perdida”.
Bianca relata, então, que a bibliotecária do colégio, com a qual mantém amizade até hoje, sugeriu que ela fizesse jornalismo. “A Joana, a quem eu sou muito grata, falou: ‘por que você não faz jornalismo? Você é intrometida, enxerida, gosta de ler e escrever’. E eu falei ‘É verdade, talvez faça sentido’”.
“Quando me descobri negra”
Segundo Bianca, a entrada na universidade foi o momento em que as questões raciais ficaram mais nítidas. Ao ingressar no curso de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero, e no de Ciências Sociais da USP, a convivência com uma elite de pessoas brancas a diferenciou da maioria dos estudantes.
“Eu sempre soube que eu não era branca. Nessa sociedade racista, a minha sensação é que ela sempre faz questão que as pessoas não brancas saibam que elas não são brancas. Mais isso não significava que eu tinha uma identidade racial. Pelo contrário, na minha cabeça, naquele momento eu não me sentia nem muito pobre, mas sabia que eu não era rica, sabia que eu não era branca, mas também não sabia o que eu era”.
Ao ter contato com a Educafro, organização de apoio a estudantes negros, ela passou a assumir sua identidade racial. “Me voluntariei para ser educadora e um educador me falou: “vai ser muito bom para os estudantes ver uma menina negra como eles que estuda na USP e na Cásper Líbero”. Quando ele falou isso, a ficha caiu. Ali eu entendi que eu era negra.
Dentre os textos que escrevia para a universidade, o relato pessoal “Quando me descobri negra” ficou guardado. Mais de dez anos depois, quando Bianca recebeu convite para reunir em um livro os textos que publicava na internet, resgatou o texto que deu nome a seu livro, publicado em 2015.
Seu envolvimento com o movimento negro foi se dando aos poucos, principalmente após se engajar mais no movimento de mulheres.
“Eu não conhecia o movimento negro amplo. Fui professora na Educação de Jovens e Adultos, fui fazer mestrado e me aproximei do Fórum EJA. Aí me envolvi no movimento de cultura livre, tecnologia, educação, mas também era uma militância branca, rica. Aí o feminismo entra com força, eu me aproximo da Marcha Mundial das Mulheres. A marcha é muito importante na minha formação, eu sou grata, mas o debate racial naquele momento também não estava maduro na marcha”.
Já desenvolvendo atividades na Casa de Lua, uma organização feminista que ajudou a criar, Bianca articulou um círculo de mulheres negras. A partir daí, iniciou sua pesquisa sobre o movimento de mulheres negras e se aproximou do movimento negro.
A essa altura, seu ponto de ligação foi a Uneafro, onde atua há mais de sete anos, dois deles na organização dos núcleos de educação popular.
Por meio da Uneafro, Bianca Santana também participou da criação da Coalização Negra por Direitos, que reúne 150 organizações na defesa da população negra no Brasil, e lançou este ano a campanha “Com racismo não há democracia”.
“A Coalizão tem trabalhado para fazer incidência política nacional e internacionalmente, na busca de direitos para a população negra. Não tem nada de revolucionário. O que garante a constituição? Quais as leis, os direitos já conquistados? O que a Coalizão faz é denunciar o que não está sendo cumprido. E buscar que os direitos sejam assegurados, nada além disso”.
“Eu confio pouco na branquitude que se descobriu antirracista a partir dos movimentos dos EUA”
Bianca acredita que é importante que as questões raciais ganhem destaque e repercutam. Em sua opinião, o movimento negro sempre aproveita os momentos em que essa visibilidade se torna maior e isso acontece em fases.
“O movimento negro tem uma história muito rica, mas a gente conhece muito pouco. Em pensar que a Frente Negra Brasileira foi um partido político, a gente já teve um partido negro no Brasil. O movimento das trabalhadoras domésticas. Em 1978 a fundação do MNU (Movimento Negro Unificado); em 88, o primeiro Encontro Nacional de Mulheres Negras, fundação de Geledés, e tantas outras entidades”.
“É uma vitória do movimento negro ter desconstruído o mito da democracia racial, é uma vitória que hoje se fale na imprensa sobre racismo, apesar de ainda não conseguirem usar a palavra genocídio”.
Apesar do histórico de lutas, a jornalista não é otimista em relação à situação atual. “Hoje tem visibilidade, mas sempre acho que daqui a pouco esse espaço vai acabar. Então a gente tem que correr, aproveitar tudo que a gente puder, falar com o máximo de pessoas, porque eu confio pouco na branquitude que se descobriu antirracista a partir dos movimentos dos EUA”.
“Vozes Insurgentes”
Durante a pesquisa de doutorado, Bianca Santana realizou um levantamento de relatos e escritos de mulheres negras do Brasil, desde o século XVIII, e se surpreendeu com a quantidade de material e também com a invisibilidade dessas mulheres e suas produções.
“Como a gente estuda tanto tempo História sem mencionar a resistência negra na escravidão brasileira? Como a gente não conhece direito a História dos quilombos? Como eu precisei chegar ao doutorado pra só aí saber que essas mulheres existem?”, questiona.
Dessa inquietação surge, em parceria com a Fundação Rosa Luxemburgo, o projeto da publicação “Vozes insurgentes de mulheres negras: do século XVIII à primeira década do século XXI”. O livro traz o perfil de 24 mulheres negras brasileiras, além de seus registros escritos, teóricos, políticos, artísticos. O material está disponível para download no site da Fundação Rosa Luxemburgo.
Além de possuir um recorte histórico, a seleção também pretendeu garantir a diversidade geográfica e de atuação das mulheres, desde a academia, luta popular, imprensa, na religião, nas artes.
“O objetivo desse livro é que as pessoas possam ter uma aproximação. É uma porta de entrada, a ideia não é dar conta da nossa totalidade. É ter algo que condense a diversidade enorme de quem nós somos, a grandeza e o olhar das mulheres negras para a sociedade brasileira.
Tem uma fome coletiva por nossas histórias. Nós temos essa fome, nós precisamos da nossa história.
Não é um livro só para mulheres negras, não existe isso de que produzimos algo reduzido e os homens brancos olham para o universal. O livro tem textos universais que merecem ser lidos por todas as pessoas”.
Leia o artigo completo em: http://nosmulheresdaperiferia.com.br/