O lançamento ocorre no marco dos 104 anos da prisão e do assassinato da revolucionária polonesa defensora do socialismo democrático
O dia 15 de janeiro marca os 104 anos da prisão e do assassinato de Rosa Luxemburgo. Antimilitarista e defensora da democracia, a revolucionária polonesa se destacou não só por sua militância comprometida com o socialismo, mas também por sua rica contribuição para o pensamento marxista.
Com o intuito de tornar mais acessível sua produção, a Fundação Rosa Luxemburgo disponibiliza para download gratuito o PDF do livro Fraude capitalista e outros escritos de Rosa Luxemburgo, organizado por Rosa Rosa Gomes e editado pela editora Maria Antonia com apoio da Fundação Rosa Luxemburgo.
A obra traz pela primeira vez em português uma série de artigos da revolucionária tratando de temas diversos, que vão das análises sobre o sistema financeiro a comentários sobre a conjuntura internacional da época, envolvendo Estados Unidos, França e Cuba.
APRESENTAÇÃO DO LIVRO
Por Rosa Rosa Gomes
Em 1898, a doutora em Ciência Política pela Universidade de Zurique e fundadora do SDKPiL (Social-Democracia do Reino da Polônia e Lituânia), Rosa Luxemburgo, chegou à Alemanha determinada a ingressar no maior partido social-democrata da época, o SPD (Partido Social-Democrata Alemão).
É importante dizer que, no final do século XIX, o movimento social-democrata era sinônimo de socialismo. Apenas depois da Primeira Guerra Mundial é que a social-democracia virou sinônimo de reformismo e o termo passou a ser usado, muitas vezes de modo pejorativo, para se referir a pessoas que não pertencem à esquerda revolucionária.
O parêntese acima tem tudo a ver com a discussão que os textos aqui traduzidos pela primeira vez no Brasil trazem, pois eles fazem parte desse momento de transformação.
A Alemanha unificou-se em 1871 com a liderança do chanceler Otto von Bismarck, formando o II Império, sob o domínio da Prússia. A Constituição de 1871 instituiu o voto direto e secreto para o parlamento para homens acima de 25 anos, nascidos e residentes na Alemanha, e estabeleceu uma união federativa de estados germânicos (reinos, ducados, principados, cidades-estados). Cada um desses estados possuía o seu próprio sistema eleitoral, em geral menos abrangente que o do parlamento, mas reunidos sob essa instituição nacional, o Reichstag (parlamento imperial alemão).
O SPD foi fundado em 1875 como Partido Socialista dos Trabalhadores da Alemanha, mas colocado na ilegalidade entre 1878 e 1890 com as Leis Antissocialistas de Bismarck. Com a abolição dessas leis em 1890, foi-lhe permitida uma atuação parlamentar própria, com propaganda e participação nas eleições, apresentando sua própria legenda. O partido progrediu no número de deputados (de 35, em 1890, para 56, em 1898), o que, somado a um período de prosperidade econômica na Europa, levou a grandes debates no campo socialista sobre os rumos do capitalismo e as tarefas da social-democracia.
Rosa Luxemburgo apresentou-se no SPD em meio a esse debate e ao processo eleitoral de 1898. Recém-chegada, ela queria participar da campanha no Ruhr, maior região mineradora da Alemanha, mas o partido a encaminhou para a região polonesa ocupada pelo Reich, a Oberschlesien. Luxemburgo não ficou tão empolgada com a designação, mas junto com August Winter, nascido na região da Silésia, conseguiu um grande número de votos para o partido naquela área. Com essa atividade, conquistou seu lugar como oradora e agitadora da organização[1].
Naquele mesmo momento, Luxemburgo iniciou sua batalha dentro das fronteiras do partido, travando debate com um de seus grandes teóricos, Eduard Bernstein, tido quase como um herdeiro de Friedrich Engels, com quem chegou a conviver em Londres.
O debate Bernstein tornou-se intenso no final do século XIX com a publicação de uma série de artigos escritos por ele na revista teórica do partido Die Neue Zeit, entre 1896 e 1898. Na série intitulada “Problemas do Socialismo”, publicada entre 1896 e 1897, ele defendeu que o desenvolvimento do capitalismo havia gerado a expansão das classes médias e não da classe trabalhadora e que o mercado mundial expropriaria uma parte do lucro dos rentistas, porque já não seria mais possível reduzir os salários dos trabalhadores dado o desenvolvimento e o acúmulo de forças do movimento operário. Por isso, segundo Bernstein, a social-democracia deveria ter como objetivo a criação de cooperativas de produção.
Essas ideias, entre outras publicadas em 1898, despertaram grande polêmica no meio socialista. Vários artigos foram publicados com contra-argumentos, um deles de Plekhanov, também na Die Neue Zeit. Rosa Luxemburgo achou o texto de Plekhanov muito ruim e publicou cem páginas de crítica no jornal Leipziger Volkszeitung, páginas essas que formariam a primeira parte da futura brochura Reforma Social ou Revolução. O texto foi muito elogiado por líderes social-democratas, como August Bebel, Clara Zetkin e Franz Mehring[2].
Enquanto ocorria esse debate na imprensa, a redação do jornal Sächsische Arbeiter-Zeitung estava sendo desmantelada e os redatores chefes, Parvus[3] e Julian Marchlewski[4], precisavam se retirar da Saxônia por causa da perseguição política do governo. Os dois acharam que Rosa Luxemburgo seria uma boa escolha para ocupar o posto de redatora-chefe, que ela assumiu em setembro de 1898, pouco antes do congresso do partido[5].
No congresso, realizado em Stuttgart entre 3 e 8 de outubro de 1898, a polêmica revisionista esteve no centro dos debates e de forma acalorada.
A discussão inicial foi sobre o resultado das eleições daquele mesmo ano. O SPD havia aumentado em 21 deputados o seu número de parlamentares, mas uma série de questões ficaram no ar: o que isso representava? Poderiam ter conseguido mais cadeiras? A decisão do congresso anterior de o partido não se aliar a liberais em casos de segundo turno havia sido respeitada? Qual seria a forma certa de agitação? Qual era o impacto político dessa vitória para a construção da revolução?
A questão da tática adotada na eleição de 1898 é, na verdade, a questão de quais eram os objetivos do partido e qual a sua estratégia, pois como Rosa Luxemburgo apontou em uma de suas falas nesse congresso, era apenas o objetivo final socialista que tornava revolucionários as greves, o sindicalismo e a agitação eleitoral; do contrário, esses instrumentos poderiam inclusive se voltar contra os trabalhadores. É dessa forma que reforma e revolução deveriam se unir: lutar por melhorias dentro do Estado capitalista sem perder a perspectiva da luta de classes e do combate a este mesmo Estado e ao status quo.
O resultado das discussões foi que Bebel adiou qualquer resolução sobre a questão para o ano seguinte, incluindo-a na pauta do congresso de 1899, sob o título “Os ataques às ideias fundamentais e a posição tática do partido”.
Além das polêmicas no congresso, Luxemburgo também enfrentou problemas como redatora-chefe do Sächsischen Arbeiter-Zeitung, em Dresden, onde permaneceu de 25 de setembro de 1898 a 5 de novembro de 1898. Durante esse período ela enfrentou Gradnauer[6], que mandou uma réplica para o jornal se defendendo de críticas feitas a ele no congresso de Stuttgart. Esse primeiro texto Luxemburgo publicou, mas não o segundo, levando o caso para a Comissão de Imprensa do partido, após denúncia de seus colegas. Rosa utilizou o próprio veículo para se defender, publicando em um artigo que o tipo de política de Gradnauer, visando a conciliar e a apagar as diferenças que saltaram aos olhos em Stuttgart, deveria ser veementemente combatido. Bernstein e sua turma não deveriam ser tolerados no partido, pois defendiam ideias que iam contra o programa e o marxismo.
Companheiros de redação não gostaram de sua postura, taxando-a de tirana, e a Comissão de Imprensa deu razão a eles; segundo os críticos, Luxemburgo teria se seduzido pelo cargo de chefia. No final, ela se retirou da função, mas seu sucessor, Georg Ledebour[7], concretizou sua ideia de uma coluna com notícias de diversas partes do mundo, a Panorama Econômico e Sociopolítico[8].
Essa é a origem dos escritos que seguem traduzidos. Impedida de dirigir o jornal da maneira como achava melhor, tendo sido criticada em grande parte por ser mulher, Luxemburgo se volta ao trabalho de jornalista e escritora, o que ajudava a pagar parte de suas contas. Nesse momento, volta-se a acontecimentos da economia política da época. E em cada um dos artigos estão presentes o debate do revisionismo e as transformações do capitalismo na “Era dos Impérios”. Lembrando que, segundo Michael Krätke, esses artigos também fazem parte de um momento de suspensão do debate: todos aguardavam o anunciado livro de Eduard Bernstein, publicado no começo de 1899: Pressupostos do Socialismo e as Tarefas da Social-democracia.
Os Panoramas foram publicados entre dezembro de 1898 e março de 1899 e cobrem uma grande diversidade de temas e regiões do mundo. Isso, por si só, demonstra o quanto Luxemburgo estava informada sobre os acontecimentos mundiais e de que maneira os relacionava à política operária. Segundo Laschitza, nesses artigos Rosa Luxemburgo se concentra em três pontos: 1) acontecimentos econômicos da atualidade; 2) importantes novidades relacionadas à técnica que dissessem respeito ao desenvolvimento do capitalismo; 3) políticas sociais que falassem sobre os avanços das reformas sociais ou da luta de classes. Para Michael Krätke, o que salta aos olhos nessa sequência de artigos é a forma aguçada como Luxemburgo percebe o desenvolvimento dos Estados Unidos e a centralidade que ganhavam na economia mundial, transformando-se no centro dela, superando a hegemonia da Inglaterra.
Mas, além disso, esses artigos dão materialidade aos argumentos levantados por Rosa Luxemburgo para combater as ideias revisionistas de Bernstein e outros membros do SPD. Ao se concentrar nesses três pontos citados por Laschitza, a autora busca enfatizar com base na realidade que o desenvolvimento do capitalismo só pode ter como fim o socialismo, resultado da luta da classe operária. É disso que Luxemburgo trata a todo o momento. Mesmo quando parece apenas divagar sobre questões morais da época como o alcoolismo, o central é que a sociedade burguesa tende à degeneração por sua hipocrisia, inclusive em questões de comportamento, como a relação com a bebida e a família. A salvação da humanidade só pode estar, portanto, no operariado.
É claro que o texto é filho de uma época, de um debate, de uma conjuntura e de uma pessoa específica. Vê-se como Luxemburgo trata a questão das tarifas alfandegárias, defendendo a liberdade de comércio e os impactos positivos que esta teria para os trabalhadores, leitura que sofrerá mudanças ao longo das décadas.
É, pois, necessário colocar o texto em seu contexto. Naquele momento, as organizações socialistas cresciam na Europa central, o movimento operário se expandia, a II Internacional parecia unificar todo o proletariado em um movimento único acima das nacionalidades[9]. Ao menos era essa a política que Luxemburgo defendia e vivia. Por outro lado, o movimento operário estava centrado nas campanhas eleitorais, na busca por mais direitos políticos, acreditando que este seria um passo importante para a transformação social. O tempo das barricadas parecia estar no passado. Tanto que nestes textos, Luxemburgo enfatiza a necessidade de fortalecimento da organização. Muito diferente do que ela defenderá depois da Revolução Russa de 1905 e das lutas que ocorreram na Europa naquele momento.
Percebe-se também nestes textos que o mesmo argumento que justificava a leitura revisionista de Bernstein e de outros serve para defender a necessidade do socialismo e, por isso, mostram que muitas divergências são problemas relativos ao tamanho da lente. Ao se aproximar demais de um objeto, perde-se a noção de totalidade. Isso acontece com as análises do revisionismo sobre o empobrecimento das massas e a expansão das camadas médias, argumentos rebatidos aqui por Luxemburgo. Ela também apresenta as inovações tecnológicas da Segunda Revolução Industrial, principalmente o desenvolvimento dos transportes, como fatores de expansão do capitalismo que devem ser incorporados pelos trabalhadores, pois o socialismo “não deve girar a roda da história para trás”, mas incorporar os avanços dessa sociedade em uma formação social sem exploração do trabalho. É claro que se percebe aqui também uma leitura utópica do progresso, problematizada por militantes da época, especialmente após a I Guerra Mundial.
Ela assinala nessas análises de conjuntura o impacto dos impostos, da concorrência mundial e do sistema financeiro nas condições de vida da classe trabalhadora. Esses temas serão mais bem arranjados no livro A Acumulação do Capital, mas aqui ela apresenta análises sobre eles ao escrever sobre a reforma tributária na Rússia e enfatizar a importância dos camponeses, esses sim a principal fonte de recursos do Estado. Da mesma forma, a concorrência mundial é um fator que aparece constantemente nessas análises, apresentando-se como elemento central da cartelização e da organização empresarial.
Posteriormente, Luxemburgo entenderá que a concorrência é o elemento central no capitalismo de sua época, já o cartel era apenas uma consequência daquele mecanismo. Nesse sentido, em Acumulação, Luxemburgo caracteriza o imperialismo como o momento da disputa dos países capitalistas no palco mundial. No contexto dos artigos, as tarifas alfandegárias, os empréstimos e o militarismo são instrumentos de especial valor. É possível ver nessa série de textos aqui traduzidos, o início da observação da autora que servirá depois para a elaboração de sua teoria econômica. Não que eles tenham se desenvolvido linearmente até a elaboração da grande teoria. Mas foram o começo de uma reflexão. Através deles é possível ver que ela não ignorava a existência dos cartéis, mas os abandona na sua formulação teórica, por entender que não eram a essência do sistema, mas um resultado.
Os textos de análise econômica aqui apresentados, em muitos momentos, se mostram bastante atuais: o empobrecimento relativo dos trabalhadores, o desenvolvimento tecnológico como meio de expansão do capitalismo, questões tributárias, deslocamento da economia mundial (estaríamos nos virando para o Oriente?), ideologia acadêmica da burguesia sobre os processos econômicos, o empresário autônomo. Estes textos, muito datados, nos revelam que muitos dos mecanismos do capitalismo no final do século XIX estão ainda atuantes, deixando claro seu caráter sistêmico.
Mesmo que seja vista como uma leitura de viés mais acadêmico, para historiadores, não deixa de apresentar um retrato econômico de uma época que teima em nos dizer que ainda vivemos sob o capitalismo, que a exploração do trabalho não irá acabar apenas pelas contradições internas do sistema e que o capitalismo não vai devolver aos seres humanos a sua dignidade.
Talvez, mesmo uma leitura de viés mais acadêmico, para o historiador, não deixe de ser um retrato econômico de uma época que teima em nos dizer que ainda vivemos sob o capitalismo, que o trabalho explorado não irá acabar apenas pelas contradições internas do sistema e que o capitalismo não vai devolver aos seres humanos a sua dignidade.
[1] Annelies Laschitza, Im Lebensrauch trotz alledem.
[2] Annelies Laschitza, op. cit.
[3] Alexander Helphand (1867-1924) nasceu na Rússia e era mais conhecido como Parvus. Era reconhecido como um teórico e político importante pela social-democracia alemã.
[4] Julian Marchlewski (1886-1925) nasceu na Polônia e era tintureiro. Conheceu Luxemburgo em Zurique em 1893 e fundou com ela, e outros companheiros, o SDKPiL. Pertenceu à Liga Spartakus e trabalhou até a morte para a diplomacia soviética.
[5] Annelies Laschitza, op. cit.
[6] Georg Gradnauer (1866-1946?) nasceu em Magdeburg. Foi redator do Sächsischen Arbeiter-zeitung entre 1891 e 1896, indo trabalhar para o Vorwärts. Foi também parlamentar do Reichstag de 1898 a 1907 e de 1912 a 1918.
[7] Georg Ledebour (1850-1947) nasceu na Alemanha e foi comerciante em Hannover. Entrou para o SPD em 1891 e foi deputado no Reichstag entre 1900 e 1918. Foi para a oposição quando começou a I Guerra Mundial.
[8] Annelies Laschitza, op. cit.
[9] Talvez venha daí a necessidade de pensar um mercado mundial de verdade, sem fronteiras econômicas.