Congresso Nacional aprovou lei do Marco Temporal que restringe o direito dos povos indígenas e libera seus territórios para o agronegócio e a exploração dos recursos naturais. Lula vetou parcialmente a medida, mas seu veto ainda pode ser derrubado
Nos últimos meses, o movimento indígena e o setor do agronegócio no Brasil têm travado uma árdua batalha na disputa judicial e política por territórios tradicionalmente ocupados pelos povos originários. Representantes dos grandes produtores rurais no Congresso Nacional defendem uma medida que limita o reconhecimento destas áreas àquelas ocupadas fisicamente pelos indígenas na data da promulgação da Constituição Brasileira, em 05 de outubro de 1988 – a chamada Tese do Marco Temporal. O movimento indígena contesta a legalidade desta tese.
A cobiça dos territórios indígenas pelo agronegócio não é recente. Nos anos da ditadura militar, o regime efetuou ou autorizou o massacre e o extermínio de milhares de indígenas em todo o país. Suas terras foram sendo ocupadas por fazendas, mas também por povoados e projetos de infraestrutura. Os indígenas que não morriam eram deslocados ou confinados em pequenas áreas.
CONSTITUIÇÃO DE 1988
Com a abertura democrática, em 1988 o Brasil escreveu uma nova Constituição. A participação política de lideranças indígenas neste processo foi intensa, e a Carta Magna que hoje está em vigência garante aos povos originários uma série de direitos, incluindo a demarcação de terras que, apesar de seguirem sob domínio do Estado Brasileiro, outorga aos indígenas o seu usufruto exclusivo. Ou seja, segundo a Constituição do Brasil de 1988, “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.
Atualmente, o Brasil conta com 573 Terras Indígenas demarcadas. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população de pessoas declaradas indígenas é de cerca de 1,7 milhão, pertencentes a 305 etnias. Parte destes povos, no entanto, segue reivindicando o reconhecimento de suas terras, uma vez que o Estado Brasileiro ainda não homologou mais de 500 territórios, de acordo com o Conselho Indigenista Missionário (CIMI, parceiro da Fundação Rosa Luxemburgo).
Constitucionalmente, as terras indígenas são de usufruto exclusivo dos povos indígenas. Nestas áreas, não são permitidas atividades como mineração, plantação de variedades transgênicas, exploração comercial de madeira nem arrendamento para terceiros. Este é um dos elementos que os setores do agronegócio e da mineração tentam alterar tanto no Judiciário quanto no legislativo, regularizando práticas ilegais já em andamento.
MARCO TEMPORAL NA SUPREMA CORTE
No Judiciário, a Tese do Marco Temporal passou a ser discutida na Suprema Corte desde 2007. Polêmico, o julgamento da matéria foi sendo adiado, até que em 2019 uma disputa territorial entre os indígenas Xokleng e o estado de Santa Catarina ressuscitou a questão.
Foi então que o lobby de setores interessados na exploração das Terras Indígenas se fortaleceu. Para aumentar a ofensiva, a Bancada Ruralista propôs um projeto de lei que passou a tramitar no Congresso Nacional, defendendo medidas como: a proibição de demarcação de terras indígenas que não eram ocupadas em 1988, ano da promulgação da nova Constituição; a proibição da ampliação de territórios já demarcados; a adequação de processos de demarcação em andamento a estes critérios; e a anulação de demarcações já concluídas que ferem a tese do Marco Temporal. Também seria liberada a atividade mineraria e o arrendamento das terras para o agronegócio, bem como o cultivo de transgênicos.
CORTE E CONGRESSO
Em 2023, começou então uma corrida em torno do Marco Temporal, envolvendo a Corte e o Congresso. No Supremo Tribunal Federal, a tendência de que a Tese seria derrubada levou a Câmara dos Deputados, composta em sua maioria por parlamentares de centro-direita e direita, a acelerar a votação e aprovação do Projeto de Lei antes da decisão do Judiciário. Isso acontece em maio, e o projeto seguiu para o Senado. Em 21 de setembro, por sua vez, os ministros da Suprema Corte decidem, num placar de 9 a 2, que o Marco Temporal é inconstitucional. Seis dias depois, como retaliação, os senadores aprovam o projeto da Câmara à revelia do entendimento do Judiciário, e coube ao presidente Lula vetar parcialmente a nova lei em 23 de outubro.
Imediatamente, a Bancada Ruralista do Congresso Nacional declarou que derrubaria o veto presidencial e revalidaria a Lei do Marco Temporal. Os parlamentares teriam até o dia 9 de novembro para analisar a matéria
O QUE ESTÁ POR TRÁS
Em um país onde um único homem branco (Altino Masson, 67 anos) se diz dono de mais de 450 mil hectares na Amazônia – o equivalente a três vezes a cidade de São Paulo -, é irônico que o agronegócio argumente que “existe muita terra para pouco índio” quando defende o Marco Temporal.
Politicamente alinhado à direita e partidário do bolsonarismo, o setor é composto tanto pelo capital agroindustrial e financeiro quanto pelo submundo das infrações fundiárias e ambientais. Nos últimos anos, foi responsável pelos recordes de desmatamento e queimadas ilegais na Amazônia, a grilagem de terras, as invasões de áreas indígenas, assentamentos de reforma agrária e terras quilombolas, e pelo uso indiscriminado de agrotóxicos (inclusive fumegando comunidades rurais e indígenas). Também se aliou a outros ilícitos, como o garimpo ilegal e o roubo de madeira, no propósito de liberar os territórios indígenas tanto para o mercado de terras, quanto para a exploração de recursos naturais.
Os impactos das medidas previstas no Marco Temporal podem ser desastrosos. A começar pela ameaça à sobrevivência dos cerca de 115 povos que ainda vivem em isolamento voluntário no país, e que poderiam ter a proteção de seus territórios anulada. Além disso, mais de 800 Terras Indígenas com pendências administrativas poderiam ser afetadas ou anuladas, de acordo com um levantamento do CIMI.
AMEAÇA AO MEIO AMBIENTE
Por outro lado, o Marco Temporal é uma ameaça também ao meio ambiente e ao clima. Segundo o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia, a flexibilização da proteção dos territórios indígenas pode levar ao desmatamento de 23 milhões a 55 milhões de hectares, emitindo de 7,6 bi a 18,7 bi de toneladas de dióxido de carbono. Já a legalização do garimpo em Terras Indígenas pode despejar dezenas de toneladas de mercúrio nos rios amazônicos, ameaçando seriamente milhares de comunidades ribeirinhas e indígenas.
As Terras Indígenas permitem a sobrevivência e o desenvolvimento de grupos que por séculos resistiram à colonização capitalista ocidental. Detentores de conhecimentos extremamente valiosos sobre a convivência com a natureza, os povos indígenas, acusados de “improdutivos”, são os principais responsáveis pela preservação das florestas e outros ecossistemas. Têm uma contribuição incomensuravelmente maior para o futuro do planeta do que toda a lucratividade do mercado de commodities, em nome do qual se constroem projetos como Marco Temporal.
*Verena Glass é coordenadora de projetos da Fundação Rosa Luxemburgo