Em entrevista, o deputado Matheus Gomes (PSOL) fala sobre as enchentes no Rio Grande do Sul e as estratégias para a superação da crise climática e social
“Estamos falando da luta por sobrevivência da nossa geração”
25/06/2024
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por Lucas Reinehr

O mês de maio foi um período de catástrofe no Rio Grande do Sul. De acordo com informações da Defesa Civil, datadas de 4 de junho de 2024, foram mais de 400 municípios afetados, cerca de 35 mil pessoas que tiveram que ser alocadas em abrigos,  500 mil desalojados, mais de 170 óbitos confirmados e, ao todo, 2.392.686 pessoas atingidas pelas inundações. Por trás dos números, que por si só já são alarmantes, há milhares de histórias, aflições, medos e incertezas sobre o futuro. A água baixou, mas a tragédia continua.

Porto Alegre, a capital do estado – que em 2001 foi berço do Fórum Social Mundial – é governada, há cerca de duas décadas, pela política neoliberal. As consequências desse projeto econômico e social ficaram nítidas durante o período de enchentes: a cidade não estava preparada para comportar tamanho volume de água e lidar com as inundações – mas não por falta de aviso.

Conversamos, no dia 7 de junho de 2024, com o deputado estadual Matheus Gomes (Psol – RS), membro da bancada negra da Assembleia Legislativa do estado, sobre os impactos das enchentes no Rio Grande do Sul, a relação com a política neoliberal que assola a região e as perspectivas da esquerda para superar a crise.

Maio foi um mês de eventos climáticos extremos, não apenas no Rio Grande do Sul, mas também em outras regiões do planeta. O Quênia, a Indonésia e o Afeganistão também foram afetados por graves enchentes. Aqui na Alemanha, especialmente na região sul, também houve um período de fortes chuvas que culminou em inundações. Como esse panorama do Rio Grande do Sul se relaciona com a crise climática global e os eventos climáticos extremos em outros países?

O Rio Grande do Sul está localizado exatamente entre a Amazônia e a Antártida. Nós estamos, de acordo com estudos dos painéis do IPCC[1], numa região que vai vivenciar, de forma cada vez mais recorrente, grandes volumes de precipitações e ciclones extratropicais, que algumas décadas atrás não eram muito comuns aqui. O Rio Grande do Sul é o lugar do Brasil que mais concentra esses eventos. Ao mesmo tempo, temos processos de intensificação de secas e estiagens, porque estamos entre essas duas grandes engrenagens do clima global. Este processo de chuvas intensas que nós vivenciamos e geraram as inundações está relacionado com o fenômeno Super El Niño – ou seja, o aquecimento da temperatura dos oceanos, que desde o ano passado já tinha sido responsável por nós termos três grandes inundações. Essa é a quarta vez em menos de um ano.

Do ponto de vista climático, eu acho que é este o primeiro elemento que nos integra a esse processo global: o que vivenciamos aqui é produto das acelerações do aquecimento global que nós vivenciamos. É isso que coloca o Rio Grande do Sul nesse contexto.

No início das chuvas, ainda no final de abril, estávamos diante de um processo em que, ao mesmo tempo que entravam as massas de ar frio, vindas do Polo Sul, havia uma onda de calor na região Sudeste que impedia que a chuva subisse e se dissipasse para além da região Sul. Então, tudo se concentrou aqui. E estou falando de fenômenos que são produtos dessa desorganização nas engrenagens do clima, causados pelo aquecimento global. Então, para mim, este é o grande tema.

A outra questão é a forma como nós, enquanto moradores do extremo sul do Brasil, um país em que o capitalismo dependente impede que os Estados tenham condições de desenvolver políticas densas do ponto de vista de mudança na infraestrutura, qualificação das moradias através de reformas urbanas, construção de sistemas de prevenção a desastres que sejam realmente efetivos – tudo isso não foi feito. Acho que isso também nos conecta com outras situações climáticas extremas que estão acontecendo em outros países, porque obviamente há o elemento do aquecimento global e da ação humana – que caracterizam o antropoceno. Mas nós não naturalizamos os desastres: porque eles encontram cidades, ambientes de concentração de pessoas, despreparados, sem um apoio do Estado para poder resistir a essas situações. Então, é óbvio que a ação política é responsável pela dimensão da tragédia.

Inclusive, citando o caso do Rio Grande do Sul, já estamos na quarta inundação em 8 meses .Nada foi feito ao longo desse curto período de tempo, tampouco nos últimos 20 anos, que foi o período em que os cientistas começaram a dar uma previsibilidade real para esse tipo de situação.

A situação realmente era previsível. E nós tínhamos aqui, no caso de Porto Alegre, e da região metropolitana, mecanismos para nos prevenirmos. Todo um sistema de prevenção contra as cheias que foi pensado há 70 anos e que agora não estava em condição de responder ao que aconteceu por falta de manutenção, por todo um descaso.

Então, a maneira como o neoliberalismo se apropriou do Estado, num processo de desinvestimento, de privatizações de áreas estratégicas – que cuidavam do saneamento, da água, do meio ambiente, e hoje não existem mais – nos deixou sem capacidade de resposta à emergência climática. Isso aprofundou a tragédia.

A crise climática é um problema sobre o qual somos alertados há décadas, como você bem menciona, especialmente pela comunidade científica e ativistas ambientais. Enfrentar essa crise e suas consequências, especialmente para a população mais vulnerável, demanda ações coordenadas, tanto a nível global, quanto a nível local. No Rio Grande do Sul e em Porto Alegre, que há anos são governados por uma política neoliberal, o enfrentamento aos efeitos da crise climática parece ter sido ignorado ou esquecido. De que forma a ingerência do Estado contribuiu para potencializar as consequências das enchentes?

O neoliberalismo guiou os governantes, a nível municipal e estadual, a uma condução do Estado que se baseou no negacionismo climático. Os alertas não foram levados em consideração e os fatos da última década também não. Já há uma mudança no padrão de chuvas do Rio Grande do Sul, que pode ser verificado nesse período. E foram exatamente os últimos 10 anos que marcaram, na cidade de Porto Alegre, a desestruturação completa da estrutura do Estado que cuidava do sistema de proteção contra as cheias. Ela não existe mais e foi tida como desnecessária, numa lógica de entregar tudo à iniciativa privada.

O próprio Departamento Municipal de Água e Esgoto (Dmae), que é uma empresa, uma autarquia independente que cuida do saneamento e do sistema de drenagem de Porto Alegre, é alvo de tentativas de privatização há muitos anos. O atual gestor do Dmae foi colocado lá para privatizar a empresa. Então, faltam centenas de funcionários, criou-se a política de superávit – de dinheiro em caixa que não foi utilizado para obras básicas do sistema de proteção contra as cheias ou de drenagem, ou de cuidado com os arroios, com a bacia hidrográfica de Porto Alegre. Mais de 400 milhões de reais ficaram parados, que poderiam ter sido utilizados. A nível estadual, não tivemos investimentos adequados na Defesa Civil. O governo paga consultorias estrangeiras para fazer planos, como os planos de prevenção a desastres, o zoneamento ecológico-econômico – que é para estruturar tanto a área urbana quanto a estrutura produtiva do estado longe de riscos de desastres. Tudo isto foi investido e não foi implementado. Foram mais de 400 mudanças no código ambiental do Rio Grande do Sul promovidas pelo governador Eduardo Leite, entre elas a desproteção das matas ciliares, que são mecanismos naturais de proteção contra as enchentes; a possibilidade de construir barragens em áreas de preservação permanente; a liberação de dezenas de agrotóxicos que são proibidos nos países onde são produzidos. O bioma Pampa do estado do Rio Grande do Sul é o mais devastado proporcionalmente em todo o Brasil, isso por conta de uma política neoliberal que fez dessa área – que era muito propícia para a atividade pecuária – um ambiente para a expansão da fronteira agrícola, para produção de soja – que é uma commodity que cada vez mais está vinculada com a devastação ambiental no Brasil e, que aqui no estado do Rio Grande do Sul, sequer é tributada. Então, no ano passado, foram mais de 20 bilhões de dólares em exportação de soja no Rio Grande do Sul sem tributos. Ou seja, o Estado não recebe, ele não consegue sequer ter uma arrecadação a partir dessa atividade que poderia servir para estruturar a proteção da população diante das mudanças climáticas e compensar o impacto dessa atividade. Nem isso acontece. É um neoliberalismo destrutivo do ponto de vista ambiental, e eu não tenho dúvida que esse tipo de ação nos fragilizou diante de tudo que está acontecendo agora.

Apesar do contexto que você relata, em que as escolhas políticas neoliberais são responsáveis por potencializar a catástrofe, é comum ouvir “não é hora de apontar culpados”, normalmente dito por aqueles que sabem que possuem alguma responsabilidade pela tragédia. Por que é importante identificar, nesse momento, as pessoas e o projeto político que permitiram essa catástrofe?

Porque agora o Rio Grande do Sul vai ter que ser reconstruído. Na verdade, na nossa perspectiva, o estado vai ter que se construir. Porque nós não queremos retomar o conjunto de políticas que nos trouxe até essa situação. Então, é preciso que a população entenda: primeiro, o que é a emergência climática, as suas causas e as consequências no tempo presente que nós vivenciamos. Não é mais algo para o futuro, nós estamos falando da luta por sobrevivência da nossa geração. E como o neoliberalismo que governa o estado do Rio Grande do Sul há muitos anos não fez nada para frear essas mudanças. Pelo contrário: teve uma série de políticas que acelerou essa condição. Essa tragédia é, no mínimo, a quarta que estamos vivenciando em menos de um ano – e já estamos cansados de passar por esse tipo de situação. Foram dezenas de pessoas que morreram ano passado no Rio Grande do Sul por conta de enchentes, e nos primeiros quatro meses de 2023, ainda tínhamos vivenciado uma estiagem muito severa. Então, é preciso que as pessoas entendam que as mudanças que estão acontecendo no seu cotidiano são também produto de escolhas políticas.

Nós fizemos um embate direto com o governador Eduardo Leite através do nosso mandato e dos movimentos sociais que constroem a nossa intervenção parlamentar no cotidiano. Nós fizemos uma série de perguntas que ganharam repercussão a nível nacional, como por exemplo, sobre os baixos orçamentos para a defesa civil, a inexistência de sistema de prevenção a desastres no Rio Grande do Sul, todas as mudanças de flexibilização na legislação ambiental que o governador Eduardo Leite promoveu. Mais recentemente, no âmbito de Porto Alegre, divulgamos documentos que comprovam que a prefeitura já sabia da possibilidade da inundação e optou por não fazer a manutenção do sistema das casas de bombas e das comportas que constituem o muro e os diques da cidade, que protegem contra as enchentes. Ou seja, o povo precisa entender, porque também há uma necessidade de luta por justiça climática e reparação desses danos. Estamos falando de centenas de milhares de pessoas, quase 600 mil que ficaram desalojadas. Uma boa parte delas não vai conseguir voltar para as suas casas. Elas não vão ter condições de reconstruir tudo do zero, o Estado vai ter que arcar com essas consequências. Por isso, também, é importante identificar o modelo de desenvolvimento econômico que nos trouxe até aqui. É uma demanda de responsabilização dos agentes privados e dos setores econômicos que aceleraram essas transformações.

O agronegócio não vai poder continuar tendo isenção, por exemplo, na exportação de soja. É inviável. Os setores que mais poluem, como os produtores de agrotóxicos e a megamineração. Moramos no estado com a maior reserva de carvão mineral do Brasil e da América Latina. Esses poluidores vão ter que arcar com os custos da reconstrução também, senão tudo vai para a conta da classe trabalhadora, que nesse momento vai ter muita dificuldade para se reerguer. Então, é importante identificar os culpados e entender o que vivenciamos com a crise climática, para a construção de alternativas políticas de superação dessa situação.

Outro tema que está diretamente ligado às enchentes e aos efeitos da crise climática é a crise social que resulta disso. Muitas pessoas perderam tudo, milhares estão desabrigadas, cidades inteiras foram devastadas. As ações de solidariedade foram muito importantes para resgatar pessoas, construir abrigos e oferecer o mínimo de acolhimento para os atingidos, mas a responsabilidade de dar respostas à crise não deve recair sobre a sociedade civil. Sabemos que a ação do Estado e políticas públicas serão extremamente necessárias para enfrentar a crise social decorrente da catástrofe. Quais são as perspectivas de superação desse caos social diante dos atuais governos municipal e estadual?

É muito difícil pensar como as pessoas, além de se reerguer diante do que foi perdido,  também vão ampliar a sua capacidade de atividade política em meio a esse contexto. O grau de devastação é gigantesco e isso tem um impacto na saúde mental e no emocional de todo mundo. Essa ausência do Estado tem proporcionado o crescimento de um sentimento antipolítica, um ceticismo em relação a soluções que possam surgir a partir da ação do legislativo, do judiciário e do poder executivo. Então, nós temos a tarefa de mostrar que esse caminho é necessário. Na minha opinião, é preciso combinar ação popular – ou seja, organização dos territórios atingidos, das pessoas que vivem nos bairros em que a catástrofe tomou grandes proporções, e a pressão sobre as instituições do Estado para que elas tomem as medidas corretas.

Também cresce o espaço para ideias sobre as quais há muito tempo falávamos, como por exemplo, a necessidade de aumentar o rigor das legislações de proteção ao meio ambiente. Hoje, algumas pesquisas apontam que mais de 70% da população acha que isso [aumentar o rigor das legislações ambientais] é adequado, a partir da experiência vivida.

Outro tema é a reestatização de empresas estratégicas que cuidam da área ambiental, principalmente no ramo da energia elétrica, água, saneamento – todas elas foram privatizadas a nível de Rio Grande do Sul. Os eventos climáticos extremos já apontavam isso, porque a capacidade de resposta, por exemplo, do restabelecimento de energia elétrica diminuiu muito depois da privatização. Então, nós queremos discutir a importância desse tipo de medida com a nossa comunidade.

Há também o papel do Governo Federal, que hoje é composto por uma frente ampla, onde há a esquerda, representada pelo PT, e nós do Psol também somos parte da base de apoio, num campo de esquerda radical. Há setores que são parte de projetos ligados à burguesia, que também têm seus interesses representados no governo. Nós queremos que o presidente Lula lidere a construção de uma nova perspectiva para a crise climática e um novo modelo de desenvolvimento. Porque a União, o Estado brasileiro, tem mais condições de fazer isso através do Governo Federal. Então, há uma pressão para que a gente exija do Lula, nesse momento, uma movimentação de resistência radical às tentativas do agronegócio de manter o modelo de desenvolvimento econômico no Rio Grande do Sul. Nós precisamos que o Lula aponte um outro caminho e organize também essa mobilização social. Do contrário, a tendência é que a extrema-direita, através desse sentimento antipolítica, se fortaleça. Esse é o grande receio que nós temos.

E como você avalia a gestão que o governo federal, do presidente Lula, tem feito em relação às enchentes?

Acho que o governo tem dado respostas importantes no imediato. Há auxílios para reconstrução de residências, medidas para injetar dinheiro na economia diretamente através das pessoas que foram atingidas – com o Pix de R$5.100,00, que já está chegando na conta de muitos gaúchos. Foram anunciadas recentemente medidas de apoio e manutenção dos empregos. Acredito que, no apoio imediato, o governo está cumprindo um papel importantíssimo. Mas a resposta principal precisa ser de médio e longo prazo, porque é aí que vai se desenvolver a reconstrução do Rio Grande do Sul. Então, o governo Lula não pode ter propostas que estejam próximas da perspectiva liberal ou desenvolvimentista, porque isso já está acontecendo aqui. O Eduardo Leite contratou consultorias estrangeiras e colocou um ex-assessor do Paulo Guedes, que era Ministro da Economia do Bolsonaro – um ultraliberal – para coordenar a reconstrução. A Prefeitura de Porto Alegre fez a mesma coisa. Então, o Lula, precisa combinar o esforço de reconstrução, através da liberação de recursos, projetos para reconstrução das cidades, com uma proposta que faça uma mudança cultural na percepção do povo do Rio Grande do Sul e do Brasil sobre a integração que nós temos que ter entre sociedade e meio ambiente. É preciso ampliar a possibilidade de nós termos uma reforma agrária agroecológica e popular como defende o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em vez da expansão do modelo do agronegócio, que está cada vez mais fazendo do Brasil um exportador de commodity e, para isso, devastando o bioma Pampa no Rio Grande do Sul, o Pantanal no Centro-Oeste e a Amazônia no Norte do país. Eles são os responsáveis por isso.

Portanto, esse embate, nesse momento, é fundamental. Sem ele, não temos condições de virar a chave. Tenho a expectativa de que o governo possa fazer isso. O mesmo vale para a reforma urbana. As cidades que foram destruídas precisam ser repensadas numa lógica em que a população pobre, negra, trabalhadora, não viva mais em áreas de riscos. Para isso, precisamos enfrentar o interesse da especulação imobiliária. O Rio Grande do Sul tem mais de 600 mil imóveis que estavam vazios até o início de 2024. Essencialmente, prédios que foram construídos no último boom da especulação imobiliária e não estão habitados, estão lá apenas gerando valores em ações dessas empresas que lideraram esses processos – algumas delas com recursos públicos, inclusive.

Esse não pode ser o modelo de reconstrução das cidades. São embates de projetos que precisamos fazer neste momento. Para isso, precisamos de mobilização social e de uma virada do governo Lula no sentido das demandas do campo democrático e popular, e não da continuidade do atendimento de demandas que são oriundas do Centrão, daqueles partidos burgueses, fisiológicos, que pressionam o tempo inteiro o governo por acordos.

Quais são os desafios da esquerda a nível estadual e municipal para combater o negacionismo climático e o neoliberalismo e apresentar um projeto de transformação sócio-ecológica? Que estratégia deve ser adotada, na sua percepção?

Nós temos um desafio imediato em Porto Alegre, que é a eleição municipal. Daqui a três meses começa o processo eleitoral. As enchentes coroam um ciclo de 20 anos de direita – e agora extrema-direita – na cidade de Porto Alegre.

Toda a cidade sabe que nós precisamos de um recomeço. Então, precisamos ocupar esse ideário que está colocado na cabeça de milhões de pessoas hoje. Porto Alegre vai ter que começar do zero, com ideias que representam a nossa visão política e ideológica – de esquerda, ecológica, ambiental e democrática – com condição de realmente conduzir a reconstrução da cidade numa perspectiva totalmente distinta. Então, esse é o nosso primeiro desafio aqui, em escala municipal, que é uma realidade em todo o estado. Acredito que o embate eleitoral deste ano tem uma importância muito grande pro Rio Grande do Sul. Em meio a isso, nós já temos que fazer essa contraposição de interesses com o que já vem sendo apresentado enquanto propostas de reconstrução do estado, que tem um viés ultraliberal. Essa lógica subestima o papel da comunidade científica local, das universidades públicas, dos centros de pesquisa financiados pelo Estado, em virtude de uma maior participação de agências estrangeiras especializadas no capitalismo de desastres.

Então, o objetivo dos atuais governos a nível estadual e municipal no Rio Grande do Sul é garantir que as ideias de reconstrução do estado estejam vinculadas aos interesses de mercado dos setores que apoiam esses governos. Isso tem acontecido entre o agronegócio, representado pela Farsul, que é a Federação dos Agricultores do RS, o setor industrial representado pela Fiergs, Federação da Indústria do RS, e também o setor comercial representado pela Fecomércio. São três organizações que estiveram no centro da manutenção dos governos de direita e de extrema-direita nos últimos anos, que agora apresentam as propostas para saída da tragédia de maneira consorciada com outros aparelhos hegemônicos do campo burguês. Nós precisamos combater essa perspectiva que eles estão apresentando em todos os seus aspectos: na reconstrução de moradia, no modelo de manutenção e de qualificação dos empregos, as demandas de transformações industriais, e obviamente o tipo de legislação que nós necessitamos para regular esse conjunto de ações a partir de agora.

Você se define como um ecossocialista, talvez um dos poucos deputados do Brasil que carrega essa bandeira abertamente. O que é ser um ecossocialista e por qual projeto você luta para o Rio Grande do Sul e para o Brasil?

O que me faz ser um ecossocialista é compreender que todas as transformações negativas que nós vivenciamos no meio ambiente não começaram agora no Brasil. Nós somos produto da experiência colonial, que sempre teve a devastação da natureza como seu princípio para a acumulação de riqueza. Então, a transição do modelo econômico, social, político e cultural no Brasil precisa resolver pela raiz os problemas do nosso país – e isso começa por repensar a devastação da natureza e dos povos originários que aconteceu aqui historicamente. Nós queremos pensar numa transição anticapitalista e socialista, que coloque esse como o tema central.

Isso nos faz olhar pra maioria negra, que compõe a população brasileira. São mais de 100 milhões de negros e negras no Brasil, que constitutem a maioria da população e que nesse momento são os mais atingidos pela emergencia climática, porque moram majoritariamente nas mais de 6 mil periferias que existem no Brasil e nos territórios quilombolas, que não têm infraestrutura. Isso vale para os nossos irmãos e irmãs indígenas também, que nesse momento tem a sua água contaminada pela mineração ilegal e pelos agrotóxicos. Ou seja, não há como pensar numa transformação do Brasil que não questione essa estrutura capitalista, que devasta a questão ecológica e ambiental.

Isso nos faz olhar para os sujeitos que nós queremos que liderem essa transformação. Ao contrário do último ciclo de esquerda, liderado pelo PT, que tinha a classe trabalhadora industrial como o centro desse processo, nós achamos que é o momento do povo da periferia, das trabalhadoras e trabalhadores negros – que constitutem a maioria do Brasil – liderarem essa perspectiva de transformação. Nós temos feito isso através dessa relação entre atividade parlamentar e o processo de organização de base no Brasil. Porque as nossas ideias precisam ter força social para conseguir realmente impactar a realidade, senão elas serão apenas ideias.

Estamos em uma luta, na verdade, para reconstruir uma subjetividade na população trabalhadora do nosso país – que, em boa parte, aderiu às ideias de extrema-direita no último período e foi convencida pelo discurso liberal. Portanto, a nossa reconstrução já estava em andamento. Agora, vamos para um processo de construção das ideias que necessitamos para transformar não só o Rio Grande do Sul, mas o Brasil. Um projeto de nação realmente conclusa, autônoma, e com capacidade de liderar uma transformação no nosso bloco regional latino-americano. Eu penso que a ideia ecossocialista se faz extremamente necessária por conta desse contexto histórico e também dos desafios da realidade.

Entrevista realizada por Lucas Reinehr, Coordenador de Projetos para América Latina e Clima da Fundação Rosa Luxemburgo em Berlim.

FOTO: GUSTAVO MANSUR/PALÁCIO PIRATINI


[1] Intergovernmental Panel on Climate Change — https://www.ipcc.ch/