Por Katarine Flor e Daniel Santini
A mobilidade urbana emerge como tema central no debate eleitoral, uma vez que se trata de algo essencial para a qualidade de vida nas grandes cidades. Em 2024, ano de eleição de prefeitos e vereadores, a proposta da tarifa zero no transporte público ganha destaque nas discussões.
Lucio Gregori, engenheiro e ex-secretário de Transportes de São Paulo durante a gestão de Luiza Erundina, é o principal proponente dessa ideia revolucionária. Em entrevista exclusiva concedida à Fundação Rosa Luxemburgo durante a realização do Simpósio Internacional sobre Tarifa Zero, Gregori expõe como a tarifa zero pode transformar o transporte coletivo no Brasil. Ele faz uma analogia com a coleta de lixo, um serviço gratuito para os cidadãos, questiona: por que não podemos aplicar a mesma lógica ao transporte público?
Desde os anos 90, quando a ideia foi inicialmente apresentada, o Brasil testemunhou um crescimento significativo na adoção da tarifa zero, atualmente implementada em mais de cem cidades. Gregori destaca que a pandemia de COVID-19 foi um marco, evidenciando a falência do modelo baseado na tarifa paga pelo usuário.
Com uma visão pragmática, Gregori desmistifica a tarifa zero, argumentando que não se trata de uma proposta radical, mas sim de uma solução racional para os desafios de mobilidade urbana. Ele analisa criticamente a recente implementação da tarifa zero aos domingos em São Paulo, considerando-a um passo inicial promissor.
Durante a conversa, o ex-secretário de transportes também aborda a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 25/2023, que busca regulamentar o transporte coletivo como um direito social e estabelecer um Sistema Único de Mobilidade (SUM).
Nesta entrevista, Lucio Gregori nos oferece uma visão clara e otimista sobre o potencial transformador da tarifa zero, defendendo que o acesso universal ao transporte público não apenas é possível, mas essencial para promover a justiça social e a sustentabilidade urbana. Confira na íntegra!
Como a ideia da tarifa zero chegou ao Brasil?
Lucio Gregori: Sinceramente, não sei como a ideia chegou ao Brasil. Posso lhe dizer como ela chegou à minha cabeça. Eu havia sido, no início do governo de Erundina, secretário de Serviços e Obras. O secretário de Serviços e Obras cuida da coleta e destinação final do lixo da cidade. Como todos sabem, quando o lixeiro passa em casa, você não paga nada; simplesmente ele recolhe o lixo, e isso é coberto por uma taxa chamada taxa de lixo ou por uma parte do IPTU que cobre esses gastos.
Quando me tornei secretário de Transportes, um certo dia, vendo as filas gigantescas e as dificuldades do transporte coletivo, pensei: “Por que não fazemos o mesmo que fazemos com a coleta de lixo? Em vez de pagar cada vez que se entra no transporte coletivo, pagamos uma taxa que cubra os custos.” Então, quando você usa o transporte coletivo, não paga nada. Dessa ideia básica surge a proposta de fazer o transporte coletivo com tarifa zero.
De onde veio o nome “tarifa zero”?
Lucio Gregori: Depois que Erundina aceitou a ideia e resolveu fazer o projeto, foi convocada uma coletiva de imprensa em São Paulo. Nessa reunião, Erundina falou, depois passou a palavra para mim, e eu comecei a falar. Em certo momento, disse: “Não é ônibus de graça, porque tudo que é de graça dá a impressão de ser de pior qualidade. É um ônibus com tarifa zero.” O nome colou e, daí por diante, ficou estabelecido como o nome do projeto: “Projeto Tarifa Zero.”
Como o senhor vê o crescimento da tarifa zero no Brasil, com mais de cem cidades adotando essa política?
Lucio Gregori: Vejo esse momento com muito otimismo. Durante muitos anos, a tarifa zero foi debatida, falada, implementada em poucos lugares, e praticamente não existia cidade com tarifa zero no país. Com a pandemia, no entanto, desabou a quantidade de passageiros que circulavam no transporte coletivo, evidenciando que a tarifa não é um custo, mas sim uma receita. O passageiro, tratado como custo pelos empresários de transporte, na verdade, é receita: quanto mais passageiros por veículo, mais receita. Com a pandemia, caiu a quantidade de passageiros e, consequentemente, a receita. Os empresários de ônibus perceberam a necessidade de resolver esse problema, estimulando vários prefeitos a implementarem a tarifa zero.
Hoje, 106 cidades no Brasil têm tarifa zero, de variadas orientações políticas. Isso comprova que a tarifa zero não é uma proposta radical de esquerda, mas sim um mínimo de racionalidade no transporte e deslocamento das pessoas nas cidades.
Qual sua análise sobre a tarifa zero aos domingos em São Paulo?
Lucio Gregori: Sobre São Paulo, o prefeito, que também é candidato à reeleição, enxergou que a proposta estava gerando repercussão e decidiu implementá-la aos domingos. Embora tenha havido algumas queixas, parece que ainda não está bem resolvido e não mostra todo o impacto que a tarifa zero pode ter, pois as pessoas já estão habituadas a não fazer grandes deslocamentos nos domingos devido à falta de dinheiro para pagar a tarifa. O aumento no uso do transporte coletivo aos domingos em São Paulo não passou de 36%, enquanto em outros lugares o aumento costuma ser maior.
Existe possibilidade de avançar com uma política nacional de tarifa zero?
Lucio Gregori: Com a pandemia, a questão do transporte coletivo passou a ter uma dinâmica diferente. A deputada Luiza Erundina já tinha proposto a tarifa zero muitos anos atrás. Em 2015, o transporte foi incluído como direito social na Constituição, mas sem regulamentação, não há como aplicá-lo imediatamente. Em função disso, Erundina propôs a PEC 25, que estabelece a tarifa zero como lei, inclui os governos federais e estaduais na responsabilidade do transporte coletivo e propõe a contribuição pelo uso do sistema viário.
O que é a Contribuição pelo Uso do Sistema Viário (Conusv)?
Lucio Gregori: A contribuição pelo uso do sistema viário é similar à taxa de lixo. Você paga uma taxa pelo uso das ruas, que são asfaltadas, conservadas, sinalizadas, e o custo disso é posto à disposição do proprietário de carro, que não paga nada por isso. Com a contribuição, a arrecadação seria suficiente para pagar o sistema de transporte coletivo. Por exemplo, aplicando uma taxa de R$ 3,50 para carros grandes, R$ 2 para carros médios e R$ 1 para carros pequenos, a receita seria igual ao necessário para pagar o transporte coletivo em São Paulo em 2022, cerca de R$ 6,5 bilhões.
Sempre fui contra o pedágio urbano, pois ele acaba privilegiando quem tem mais dinheiro e prejudicando quem tem menos. A contribuição pelo uso do sistema viário, ao contrário, é progressiva: carros de luxo pagam mais, carros pequenos pagam menos.
A PEC 25 regulamenta o transporte como direito social, estabelece a tarifa zero, amplia a responsabilidade dos governos federais e estaduais no transporte coletivo, e propõe a contribuição pelo uso do sistema viário e o Sistema Único de Mobilidade (SUM), similar ao SUS, mas para o transporte de pessoas e cargas. O último plano diretor de São Paulo já prevê que o município se encarregue do controle do transporte de cargas.
O senhor é otimista quanto à mobilidade no Brasil?
Lucio Gregori: Hoje, vejo a situação com otimismo, com 106 cidades adotando a tarifa zero, o que mostra que a proposta é realizável, razoável e aceita pela população. Agora, só falta aguardar a aprovação da PEC 25 para facilitar a vida dos prefeitos ao colocarem a tarifa zero em funcionamento. Sou muito otimista com isso. Como brasileiro, vamos aguardar.
Katarine Flor, coordenadora de comunicação na Fundação Rosa Luxemburgo.
Daniel Santini, coordenador de projetos na Fundação Rosa Luxemburgo.