O debate sobre migração e asilo na Alemanha expõe divisões sociais e a retórica racista da direita, que desloca o foco das causas estruturais dos problemas sociais para a imigração
Por uma sociedade livre e solidária
14/11/2024
por
nd

O atual debate sobre asilo e migração, da forma como é conduzido nos meios de comunicação e na política, é sobretudo um debate racista e fictício. A ideia de que a Alemanha está sendo engolida por uma “onda de refugiados” não reflete a realidade, uma vez que comunidades locais já são afetadas há décadas por problemas de infraestrutura. E, quando consideradas deportações, emigrações e naturalizações, vemos que a quantidade de pedidos de asilo diminuiu: o número total de refugiados na Alemanha cresceu cerca de apenas 60.000 no primeiro semestre de 2024. No total, quase 3,5 milhões de refugiados vivem na Alemanha, dos quais por volta de 1,2 milhão são provenientes da Ucrânia, o que representa quatro por cento da população. Estes números estão em clara contradição com a alegação enganosa de uma suposta “emergência nacional”, porém este discurso perigoso é difundido por políticos, como Merz, chefe do partido União Democrata Cristã (CDU).

Nesta questão social, a direita foi bem-sucedida em deslocar o conflito que seria entre os de “cima” e os de “baixo” para uma luta travada entre os de “dentro” e os de “fora”. Em vez de combater as verdadeiras causas dos problemas sociais – como a pobreza, a crise habitacional e a estagnação dos salários, resultantes das políticas neoliberais –, os refugiados e os migrantes são colocados como bodes expiatórios. A linha de conflito foi deliberadamente deslocada das questões econômicas para uma nova dicotomia: “dentro” (“os habitantes locais”) versus “fora” (“os migrantes”). Esta estratégia desvia a atenção dos verdadeiros responsáveis – os agentes do sistema econômico capitalista – e divide a sociedade segundo critérios étnicos e nacionais. A esquerda precisa se declarar claramente e se posicionar conjuntamente contra ela, a fim de fortalecer a justiça social e a solidariedade.

A definição da agenda da direita entrou até na política governamental do “semáforo” (coalizão dos partidos SPD, FDP e Partido Verde – em referência às cores de cada legenda partidária, respectivamente, vermelho, amarelo e verde), que assume parcialmente a retórica e as exigências da direita e as verte em leis. Um exemplo é a recente proposta da coalizão semáforo apresentada ao Bundestag (parlamento alemão) como parte do chamado “pacote de segurança”, que tem por objetivo eliminar completamente os benefícios sociais dos requerentes de asilo pelo sistema de Dublin. Levar os refugiados à privação de moradia e a problemas de subsistência para forçá-los a ir embora do país é incompatível com a garantia da dignidade humana enunciada na Constituição. Além disso, a privação de direitos dos refugiados contribui para aprofundar ainda mais a divisão de natureza étnica e nacional.

O plano da coalizão semáforo de, com estas medidas, acalmar os partidos de direita não funcionou e certamente não funcionará: o AfD, o BSW, a CDU/CSU e até mesmo o FDP, enquanto partido do governo, sentem-se encorajados a apresentar cada vez mais exigências para “reduzir a migração ilegal”. Estudos, como os de Tarik Abou-Chadi e Werner Krause, comprovam: a política migratória de direita só fortalece a direita. Quanto mais o governo recua, mais severas se tornam as exigências.

OS AUTORES Os autores e autoras deste texto são Clara Bünger, Dr. Cornelia Ernst, Elif Eralp, Katharina König-Preuss, Carola Ensslen, Dariush Hassanpour Fard Khorashad, Ferat Koçak, Steffi Pulz-Debler, Juliane Nagel e Lea Reisner. São políticos de esquerda especializados em questões de refugiados e migração.

Um debate dentro da esquerda sobre a política de asilo e de migração deve ser conduzido conscientes desta dinâmica e da estratégia orientada pela direita e pela ação governamental. Só através de um discurso claro e convicto, que se oponha categoricamente às narrativas de direita, poderemos garantir uma discussão progressiva e direcionada ao futuro e, assim, defender a nossa visão de uma sociedade de imigração em que todas as pessoas tenham os mesmos direitos e oportunidades.

A Convenção de Genebra sobre Refugiados (GFK, na sigla alemã) e o direito fundamental de asilo são resultados diretos do fracasso da comunidade internacional diante dos crimes do nacional-socialismo e da Shoah: muitos dos perseguidos pelo nacional-socialismo foram rejeitados nas fronteiras e entregues aos seus assassinos. Desta responsabilidade histórica surge a obrigação de todos os partidos democráticos de defender o direito individual ao asilo em vez de exigir sua restrição ou mesmo extinção, especialmente nos momentos em que esta proteção se faz necessária.

Nos casos em que uma política de asilo é inevitável, a legislação da União Europeia prevalece sobre a legislação nacional, de modo que qualquer posicionamento deve ter como principal ponto de referência o âmbito europeu. A reforma do Sistema Europeu Comum de Asilo (GEAS, na sigla alemã) leva a uma redução maciça dos direitos dos refugiados, através de procedimentos obrigatórios nas fronteiras que forçam os requerentes de proteção a irem para centros de detenção ou à rejeição de seus pedidos de asilo, em muitos casos sem uma análise significativa. A regulamentação ampliada a países terceiros possibilita a deportação de pessoas para locais que, de fato, não são seguros.

Apesar das graves críticas aos direitos humanos, o governo federal apoiou a reforma do GEAS. Aqui também deve-se constatar que o drástico endurecimento de medidas políticas não levou à calmaria do debate. As demandas da direita estão se tornando cada vez mais radicais, passando pela extinção do direito individual de asilo e rejeição de todos os requerentes de asilo nas fronteiras internas da Alemanha, até mesmo usando violência. Em vez de enfrentar fortemente tais violações de direito internacional e da UE, o ministro do Interior, membro do partido social-democrata, ordenou maior vigilância em todas as fronteiras do país – também em violação à legislação da UE. A oposição de mais de 5.000 social-democratas (pela iniciativa “Em defesa da dignidade”) é bem-vinda. No entanto, o que será decisivo é se isso levará a uma mudança de rumo.

A ideia de que é possível limitar os fluxos de refugiados ou de migração é uma falácia, além das objeções aos direitos humanos. A migração é muitas vezes o resultado de injustiças universais, exploração neocolonial, crise climática e guerras e conflitos, muitas vezes inflamados pelo norte global. Enquanto houver guerra, perseguição, desigualdade social massiva, fome e pobreza extrema, as pessoas partirão – e com direito absoluto. Nenhum impedimento fronteiriço, nenhuma operação da Frontex e nenhum endurecimento da lei de asilo irá alterar este fato. Em vez disso, as medidas de bloqueio só levam a mais miséria e sofrimento, induzindo as pessoas a rotas de fuga cada vez mais perigosas.

Die Linke é a favor de uma sociedade livre, que inclua a imigração individual como um pré-requisito necessário. A migração é o motor de desenvolvimento e progresso. Tanto Karl Liebknecht quanto o Congresso Socialista Internacional deixaram claro, já em 1907, que a migração e a liberdade de deslocamento dos trabalhadores não devem ser reprimidas, pois estão intimamente ligadas à dinâmica do capitalismo. Ele reivindicou a solidariedade internacional que uniria os trabalhadores para além das fronteiras nacionais e étnicas, a fim de agir em conjunto contra a exploração capitalista. O compromisso de Liebknecht contra a discriminação e em prol da proteção dos trabalhadores migrantes, bem como por direitos trabalhistas justos, destaca sua clara perspectiva internacionalista. Nesta tradição, a esquerda entende a migração não como um problema, mas como parte de uma luta universal e emancipatória. Para nós, consideramos nossa tarefa dar continuidade a esta abordagem visionária.

A perspectiva de um mundo justo e com liberdade de circulação mundial como alternativa ao capitalismo é a bússola para uma esquerda progressista. Ao mesmo tempo, lutamos por melhorias concretas, tanto no Parlamento como no exterior.

Uma grande parte da migração para a Alemanha ocorre através da liberdade de circulação da UE, que é muitas vezes negligenciada. Estamos comprometidos com a igualdade de direitos sociais para os cidadãos da UE e contra a exploração, como na indústria agrícola e de carnes. As oportunidades de migração por motivos econômicos para pessoas de fora da UE foram ampliadas, sobretudo, para profissionais “qualificados”. Sob uma perspectiva de esquerda, criticamos a categorização econômica das pessoas, que reforça desigualdades universais. Assim, reivindicamos uma imigração simplificada e projetos de capacitação subsidiados, com a garantia de direito de emprego e residência posteriormente. Também os regulamentos restritivos do direito ao reagrupamento familiar devem ser revisados, por exemplo, com a retirada da obrigação do discriminatório certificado de idioma obtido no exterior.

Precisamos de rotas de fuga legais e seguras, através de programas de reassentamento e da descriminalização da entrada de quem procura proteção. Para as pessoas com status de residência incerto, exigimos o direito humanitário de permanência e regulamentações de legalização. Os refugiados, como os ucranianos, devem ter permissão para se hospedar com parentes ou conhecidos, a fim de evitar os grandes acampamentos e aliviar a sobrecarga das comunidades locais. Em vez de uma distribuição rígida de refugiados, precisamos de regulamentações flexíveis e compatíveis, que levem em conta os desejos dos refugiados e a capacidade de acolhimento local. Todos os requerentes de asilo devem ter acesso imediato a cursos de idioma e ser autorizados a trabalhar. Apesar de muitos obstáculos, a inserção no mercado de trabalho dos que procuram asilo está progredindo com sucesso: a taxa de emprego dos refugiados de 2014/15 do gênero masculino é atualmente de 86%, maior do que a dos homens alemães (81%).

Além disso, os direitos dos imigrantes devem ser fortalecidos, por exemplo, por meio de naturalização facilitada, ampliação do direito de voto e medidas eficazes contra a discriminação. As leis de participação devem combater as desvantagens estruturais e a discriminação racial.

Um velho ditado bem conhecido vai direto ao ponto e resume a questão: temos de combater as causas da fuga, não os refugiados. Para isso, não há opção alternativa aos direitos humanos. Os processos de imigração devem ser formulados de forma positiva, a fim de promover esta sociedade solidária. Quem aposta na segregação e deportação coloca a democracia em risco.


Este texto foi originalmente publicado no site de notícia nd. Os autores e autoras deste texto são Clara Bünger, Dra. Cornelia Ernst, Elif Eralp, Katharina König-Preuss, Carola Ensslen, Dariush Hassanpour Fard Khorashad, Ferat Koçak, Steffi Pulz-Debler, Juliane Nagel e Lea Reisner. Eles são políticos e políticas de esquerda especializados nas áreas de refúgio e migração.

Tradução por Gio Ferreto

Foto: EBC