No litoral do Ceará, comunidades tradicionais resistem à expansão das usinas eólicas no mar e denunciam o racismo ambiental e as zonas de sacrifício em nome da transição energética
Na linha de frente contra o “monstro do mar”
25/07/2025
por
Katarine Flor
Este artigo também foi publicado no Le Monde Diplomatique Brasil, em uma parceria editorial que busca ampliar o debate sobre justiça climática. Trata-se de uma versão reduzida; o texto completo pode ser lido no livro Energia e Neocolonialismo. A publicação integra a coleção Politizando o Clima, editada pela Fundação Rosa Luxemburgo em parceria com a Editora Funilaria. A série reúne quatro volumes que questionam as soluções climáticas hegemônicas e denunciam os impactos da financeirização da natureza sobre territórios do Sul Global.

Na comunidade tradicional de Vila Nova, zona rural do município de Camocim, no extremo oeste do Ceará, mora Angelaine Alves, de 53 anos. Sua história se entrelaça com a de diversas pessoas que vivem do mar, das dunas e dos manguezais. Filha de pescador, neta de pescador e agricultora, ela está em um território historicamente habitado por populações tradicionais que dependem da pesca artesanal e da terra para sobreviver. 

Angelaine hoje faz parte da coordenação coletiva da Articulação Povos de Luta (Arpolu). O movimento, nascido em março de 2022, reúne comunidades da zona costeira e da serra da Ibiapaba e surgiu em resposta à ameaça de instalação de projetos de energia eólica no mar do litoral cearense. A Arpolu é membro do Movimento das Atingidas e Atingidos pelas Renováveis (MAR), uma articulação nacional que une comunidades diretamente afetadas por empreendimentos eólicos e solares no Brasil e propõe uma transição energética justa e popular, construída com protagonismo dos povos e respeito aos territórios. 

Na entrevista a seguir, Angelaine nos guia por esse território em disputa: uma terra de luta, memória e resistência, na qual a promessa de energia “limpa” tem sido acompanhada por conflitos, violações e um enfrentamento que só se sustenta com base na força coletiva dos movimentos populares da região. 

O que é e qual o objetivo da Articulação Povos de Luta? 

A Arpolu é uma organização da sociedade civil formada, sobretudo, por pescadores e pescadoras artesanais e por moradores de comunidades da serra e do sertão, com predominância das comunidades tradicionais costeiras do Ceará. O movimento atua pelo fortalecimento da pesca artesanal, pela permanência dos povos em seus territórios, pela proteção dos bens da natureza, pela não privatização das águas – especialmente do mar –, pela não privatização da terra e pela valorização da luta das mulheres e da juventude no litoral e em outras regiões do estado. A articulação surgiu em março de 2022 diante da necessidade urgente de unificar forças para impedir a entrada de grandes empreendimentos eólicos no mar (offshore) em territórios tradicionais. A avaliação coletiva é de que esses projetos, caso avancem sobre o mar, representarão o fim dos modos de vida das populações tradicionais – assim como já vêm fazendo os empreendimentos eólicos em terra firme (onshore). 

Onde a Articulação Povos de Luta atua e como ela se conecta ao Movimento das Atingidas e Atingidos pelas Renováveis (MAR)? 

Inicialmente, a Arpolu atuava em territórios do extremo oeste e oeste do Ceará. Com o tempo, expandiu sua presença para o leste do estado e a serra da Ibiapaba. Hoje está presente em sete municípios e mais de dez comunidades no Ceará. Embora ainda não esteja organizada em nível nacional, ela integra uma rede de articulação que vem construindo o Movimento das Atingidas e Atingidos pelas Renováveis ao lado de comunidades e organizações de diversas regiões do Brasil. O MAR atua de forma mais direta nos estados do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Piauí, com participação em expansão na Bahia, Pernambuco, Sergipe, Alagoas e Maranhão. O objetivo é fortalecer uma união nacional – e até internacional – de resistência contra os grandes empreendimentos industriais de energia que ameaçam os territórios tradicionais. 

Qual o problema com o modelo atual de transição energética? 

O modelo de transição energética imposto hoje é concentrador, excludente e violento. Ele prioriza a produção de energia em larga escala para exportação e consumo das elites globais, ignorando os impactos diretos nas comunidades tradicionais. Territórios são invadidos sem consulta prévia, em desrespeito à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT); o meio ambiente é degradado e os povos tradicionais ficam com os danos, enquanto os lucros vão para grandes empresas, muitas delas estrangeiras. Esse modelo se apresenta como “verde”, mas derruba florestas, cimenta o solo, saliniza lençóis freáticos, polui o ar e a água, impede o direito de ir e vir e compromete a biodiversidade. Trata-se de uma transição energética que perpetua a lógica colonial, disfarçada de sustentabilidade. 

Por que a proteção dos territórios e o protagonismo das comunidades são essenciais para uma transição justa? 

As comunidades tradicionais são guardiãs de saberes milenares, modos de vida sustentáveis e relações profundas com a terra, o mar e os seres – visíveis e invisíveis. Sem a proteção dos territórios onde essas formas de vida acontecem, não há transição justa possível. É preciso garantir mecanismos legais e políticos que assegurem a permanência das populações em seus espaços de vida. Uma verdadeira transição energética precisa ser construída com protagonismo popular, respeito à diversidade e participação direta das comunidades no planejamento, execução e distribuição dos benefícios da energia. 

Quem são os verdadeiros causadores da crise climática? 

Apesar do apelo à transição energética, o maior responsável pelo aquecimento global no Brasil não é a ausência de energia renovável. O problema central é o avanço do agronegócio e da mineração, que provocam desmatamento em larga escala, destruição de biomas e violação de territórios. Mudar o modelo energético é necessário, mas sem encobrir os reais interesses econômicos e políticos que estão por trás da crise climática. 

Como as empresas chegam às comunidades e quais os efeitos sociais dessas intervenções? 

O primeiro passo das empresas é cooptar lideranças e dividir as comunidades, criando conflitos internos. Em seguida, oferecem falsas promessas de emprego, alimentando expectativas. Durante as obras, a mão de obra local é usada nas tarefas mais pesadas e depois descartada. O território passa a ser ocupado por trabalhadores de fora, majoritariamente homens, o que leva a casos de violência de gênero, abandono de mulheres com filhos e vulnerabilidade social. Além disso, contratos abusivos – com cláusulas em letras miúdas e prazos indefinidos – transformam as terras em espaços improdutivos, comprometendo a sustentabilidade e agravando o adoecimento físico e emocional das comunidades. 

Quais são os danos ambientais e territoriais provocados pelos empreendimentos eólicos? 

Os danos são extensos, variados e, em muitos casos, irreversíveis. Alguns deles são: privatização dos territórios por meio de arrendamentos; invisibilidade das comunidades e violação de direitos; poluição sonora, visual e do solo; rachaduras em casas e cisternas; explosões em serras e danos à paisagem; redução da umidade, prejuízos à agricultura e à pesca artesanal; morte de abelhas, morcegos, aves e outros animais; interdição de rotas e espaços sagrados; e doenças físicas e mentais, causadas por poluição, estresse e ansiedade. 

Quais grupos são mais afetados pelas violações causadas pelos empreendimentos? 

As mulheres são duplamente impactadas: perdem território e, muitas vezes, a segurança alimentar da família. Ficam vulneráveis ao abandono e à violência. Pescadores e agricultores também perdem acesso aos recursos naturais essenciais à sua sobrevivência, e suas práticas tradicionais são desvalorizadas ou inviabilizadas. E, por fim, a natureza também sofre: matas, dunas, manguezais e lagoas são destruídos. Diversas espécies – como tatus, raposas, lagartos, aves e até tartarugas marinhas – perdem seus habitats, afetando todo o equilíbrio do ecossistema. 

As comunidades são consultadas antes da instalação dos projetos? 

Não. Apesar de o Brasil ser signatário da Convenção 169 da OIT, esse direito não tem sido respeitado. Empresas instalam projetos sem diálogo, com o apoio de governos locais e federal. Quando ignorada, a consulta torna todo o processo ilegal, abrindo margem para contestação judicial e denúncia em cortes nacionais e internacionais. 

Quais são as principais estratégias de resistência? 

Temos participado da “Mesa de Diálogo” sobre as eólicas no mar proposta pelo governo federal, onde apresentamos com firmeza nossa posição: somos contra a implantação desses empreendimentos. Além disso, realizamos formações e estudos com entidades parceiras para ampliar a compreensão técnica e política sobre o tema. Outra frente de atuação é jurídica e institucional. A Articulação acionou a Defensoria Pública da União (DPU) para criar um grupo interinstitucional com representantes de órgãos federais e estaduais que tratem do tema com mais ênfase. Ao mesmo tempo, comunidades vêm desenvolvendo protocolos próprios de consulta, com base na Convenção 169 da OIT. Também estão em construção Territórios de Autodefinição e Uso Sustentável (Taus) e propostas de Unidades de Conservação como mecanismos de defesa dos territórios. 

Máquina de energia eólica: um marco da transição energética. A foto é tirada de baixo, mostrando apenas a máquina e o céu.
Crédito: Pixabay

O que preocupa as comunidades diante dessa expansão? 

A principal preocupação é com a perda do território, dos direitos adquiridos e com o enfraquecimento das instituições públicas, especialmente aquelas que deveriam proteger os direitos humanos e o meio ambiente. A cada novo projeto, torna-se mais difícil estabelecer diálogo com o governo, e os protocolos de consulta – legalmente obrigatórios – continuam sendo ignorados. Essa falta de escuta tem impactos diretos na vida das comunidades, que se veem ameaçadas por projetos que avançam sem consentimento, planejamento ou avaliação real dos danos socioambientais que podem causar. 

Como a campanha “Mar Aberto, Velas Livres” tem fortalecido a mobilização? 

Diante do avanço das eólicas offshore, a Arpolu lançou, no ano passado, a campanha estadual “Mar Aberto, Velas Livres”, com o lema: “Para as Vidas Preservar, Diga Não às Eólicas no Mar”. O objetivo é chegar às comunidades da zona costeira, promovendo escuta, diálogo e conscientização, de canto a canto, de canoa a canoa. A campanha compartilha informações sobre os impactos das eólicas nos territórios tradicionais, mobilizando uma base popular para o enfrentamento direto dos empreendimentos. Graças à campanha, muitas comunidades já estão atentas, organizadas e em resistência ativa, ampliando a articulação entre territórios e fortalecendo o movimento popular contra a privatização dos mares. 

A quem serve a energia gerada? 

De acordo com as discussões e estudos realizados, a energia gerada por esses empreendimentos será destinada à Europa, como uma forma de acelerar a produção dos carros elétricos, bem como compensar, de alguma forma, o consumo excessivo de energia realizado pelos países desse continente. Para nós, chega como um grande apelo relacionado à crise climática, que precisa ser combatida a todo custo com a transição energética. Porém, tudo isso não passa de falácia, pois temos acompanhado de perto os danos irreversíveis que esses empreendimentos causam aos territórios. 

Que tipo de conflito o movimento tem enfrentado com empresas e com o poder público? 

O primeiro conflito se dá através da violação de direitos, em especial quando se refere às comunidades tradicionais, pois as leis de caráter internacional, nacional e estadual são ignoradas, como se não existissem. Em segundo lugar vem o racismo ambiental, que invisibiliza a existência dos povos tradicionais, bem como a importância dos mesmos para a preservação e equilíbrio dos territórios. Um terceiro tem sido o posicionamento dos governos, que demonstram cada dia mais compromisso com o capital, em detrimento dos direitos do povo. Isso provoca uma lista imensurável de prejuízos, deixando as pessoas adoecidas e na profunda pobreza, pois os danos ambientais impactam diretamente os nossos modos de vida, provocando desequilíbrio e todo tipo de transtorno. Somam-se a tudo isso a especulação imobiliária e a intensificação dos conflitos. A falta de diálogo com as autoridades tem sido outro grande problema. As audiências públicas são completamente manipuladas pelos interesses das empresas e limitam a participação popular. Nos momentos de diálogo, as representações do governo nunca estão dispostas a nos ouvir; ao terminar seus pronunciamentos, esvaziam as plenárias, deixando que a gente fale para nós mesmos. Vale ressaltar que, nas representações das mesas, nunca são enviadas pessoas com poder de decisão. Outro fator que para nós também é uma violência é a rotatividade nos cargos de instituições como as defensorias públicas da União (DPU) e estaduais (DPE) e os ministérios públicos Federal (MPF) e estaduais (MPE) e outras, pois isso faz com que os processos não avancem, sendo necessário recomeçá-los várias vezes. 

Quais são as alternativas e propostas para uma produção energética verdadeiramente popular? 

Entendemos que, para se ter uma produção energética verdadeiramente popular, precisamos primeiro ter nossos territórios devidamente regularizados, titulados. Os governos precisam ouvir as comunidades tradicionais quando dizemos: “nenhum empreendimento a mais e nenhum direito a menos”. O Ibama também não deve conceder licenciamentos para empreendimentos industriais eólicos projetados para o mar do Ceará.  

As populações tradicionais, a partir dos tetos de suas casas, podem ser fontes produtoras de energia para si e disponibilizar os excedentes, sem deixar que empresas privatizem territórios. É possível ter espaços comunitários de produção e distribuição de energia solar. As populações tradicionais pesqueiras e costeiras podem viver com soberania e segurança, através, por exemplo, de uma linha específica de financiamento para beneficiamento e escoamento da produção da pesca artesanal, voltada à compra de embarcações, apetrechos de pesca (manzuá, gaiolas, redes, anzóis, entre outros), câmara fria, fábrica de gelo, transporte refrigerado, entre outros. Além disso, ter políticas públicas de investimentos para projetos produtivos comunitários, como quintais produtivos, biodigestores, fogões ecológicos, reuso de água, cisternas de placas, mandalas e minhocários. 

Para mudar, temos compreendido que só a luta coletiva abre caminhos e que, embora as conquistas sociais alcançadas pelos movimentos não tenham sido tão grandes, o pouco que conquistamos é muito significativo para nós. Uma das nossas principais conquistas é permanecer em nossos territórios com nossos modos de vida. Acreditamos que a nossa força de mobilização vai se expandir e, dessa forma, mudar a realidade do entorno. Outra, não menos importante, é que teremos uma juventude crítica e participativa, com consciência e compreensão de sua realidade para continuar a luta. 

A sociedade pode se tornar nossa aliada a partir do momento que compreender que com esses grandes empreendimentos todas as populações também sofrem porque toda essa forma colonial de invasão tende a prejudicar todas e todos, mesmo que indiretamente. Nesse caso estamos abertos e abertas para um diálogo que possa alcançar o maior número possível de gente. Vamos precisar do apoio da sociedade, divulgando essa situação vivenciada no dia a dia por nós, povos tradicionais. Precisamos fazer com que nossas vozes possam ir para além dos nossos territórios, que voem longe e tenham eco. Precisamos do apoio da sociedade para que a gente possa proteger o mundo da quentura que o consome. 

Entendemos que há muitas vozes por aí afora, somos mais algumas delas e pedimos apoio para que possam surgir mais. Assim poderemos barrar esses monstros e não permitir que entrem e façam de nossos territórios o que bem quiserem. Entendemos que nós podemos sim barrar a entrada de mais um empreendimento industrial em nossos territórios, mas para isso precisamos de uma junção maior de povos. 

Katarine Flor é jornalista e coordenadora de comunicação na Fundação Rosa Luxemburgo, atuando em projetos voltados à justiça social, ao direito à cidade e à democratização da comunicação no Brasil. Especialista em Comunicação Organizacional pela Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), é coautora da coletânea Mobilidade antirracista e coordenou a comunicação do relatório “Em nome do clima: mapeamento crítico”. 

Mais recentes