Criada em Havana, em 1966, em plena Guerra Fria e no auge das lutas de descolonização, a Organização de Solidariedade entre os Povos da Ásia, África e América Latina (OSPAAAL) – também conhecida como Tricontinental – transformou a arte gráfica em uma poderosa arma política. Seus cartazes, distribuídos em vários idiomas, circularam pelo mundo como instrumentos de denúncia, mobilização e solidariedade internacionalista.
A exposição Os ventos do norte não movem moinhos: cartazes da Tricontinental e os ventos do internacionalismo no Sul Global, que acontece entre os dias 16 e 30 de setembro de 2025 na Biblioteca da EPPEN – Unifesp, apresenta cerca de 20 dessas peças históricas. A mostra resgata a rebeldia estética e política do chamado “Terceiro Mundo” e convida a refletir sobre os diálogos entre arte, resistência e geopolítica.
Conversamos com Antonio Mota, professor de Economia Política Internacional do Departamento de Relações Internacionais da EPPEN-UNIFESP e curador da exposição, sobre a importância da OSPAAAL, sobre a atualidade de seus cartazes e os desafios de revisitar essa memória visual hoje.
Professor, a OSPAAAL nasceu em um contexto de Guerra Fria e descolonização. O que significava, naquele momento histórico, articular uma rede de solidariedade entre Ásia, África e América Latina?
De fato, o contexto de surgimento da OSPAAAL é marcado pelo período da chamada “Guerra Fria”, um termo que creio eu que não representa bem as tensões existentes àquela época. Se perguntarmos a homens de mulheres da Argélia, da Coreia, do Vietnã, de Angola, de Moçambique e de tantos outros países como eles analisam esse período, tenho a impressão de que eles o veem como o período de uma guerra que nada teve de “fria”. Certo, não houve um conflito armado direto entre os Estados Unidos e a União Soviética, o que teria posto fim à vida no planeta, mas houve diversos conflitos violentos na periferia do capitalismo.
Não é de espantar que tenha partido do “Terceiro Mundo” um conjunto de iniciativas que visavam garantir voz e instrumentos de ação aos povos oprimidos. A OSPAAAL, criada em 1966, foi uma das iniciativas do chamado “terceiro mundismo”. Antes dela, também podemos mencionar a Conferência de Bandung, ocorrida em 1955, e o lançamento do Movimento dos Não Alinhados, em 1961.
Trata-se, portanto, de uma articulação internacional que ganhou força política entre os anos 1950 e 1970 e que denunciava a ordem internacional estabelecida após a Segunda Guerra Mundial. Em 1945, a recém-criada Organização das Nações Unidas era composta de 51 países. A região com a maior quantidade de países era a América Latina, com 17. Qual era a composição da ONU em 1980? Havia 154 países-membros: 51 países africanos e 40 países asiáticos. As lutas de libertação nacional foram um marco incontornável das relações internacionais da segunda metade do século XX. Os países que haviam conquistado sua independência política protestaram contra os instrumentos de dependência econômica e de sujeição internacional e sabiam muito bem que não poderiam contar com a boa vontade dos países imperialistas para impulsionar essa mudança.
A OSPAAAL se destacou entre as iniciativas do Terceiro Mundo pelas suas políticas de propaganda. Foi lançada a revista Tricontinental, cujo nome acabou se tornando um sinônimo da Organização, dentro da qual eram colocados seus famosos cartazes.
A exposição apresenta a dimensão estética da Tricontinental. Na sua avaliação, qual é a potência política do design gráfico como linguagem de resistência?
Essa é uma excelente pergunta. Permita-me me concentrar inicialmente na palavra “resistência” que você utilizou. Comentando sobre as posições políticas de Rosa Luxemburgo, Georges Didi-Huberman elabora um significado muito interessante para essa palavra. Resistir não é só levantar uma barricada para se defender de uma ameaça. É também encontrar a força de imaginar e recomeçar a vida e as lutas necessárias. Dessa forma, os cartazes da Tricontinental são de fato uma linguagem de resistência, porque permitem afirmar que a desigualdade que marca as relações internacionais não é eterna e que a luta internacional dos povos é o instrumento que pode superar essa desigualdade.
Amílcar Cabral falava bastante dos diferentes tipos de resistência, entre os quais, a resistência cultural. Ao produzir arte e difundi-la aos quatro cantos do mundo, a Tricontinental mobilizava a ação de diferentes povos. Em muitos dos cartazes é vinculado o famoso trecho da chamada “Segunda Declaração de Havana”, pronunciada por Fidel Castro, em fevereiro de 1962, e retomado por Guevara, em seu discurso na Assembleia Geral da ONU, em 1964: “Esta grande humanidade disse: ‘Basta!’”. Os cartazes da Tricontinental traduziram essa mensagem em uma arte que indicava que era possível, pela luta internacional dos povos oprimidos, por fim à exploração, à opressão e construir uma nova vida, que pudesse enfim ser vivida em toda sua plenitude.
Os cartazes da OSPAAAL dialogam diretamente com causas anti-imperialistas e lutas populares. O que esses trabalhos ainda têm a dizer ao Brasil e ao mundo de hoje?
Enquanto houver capitalismo, haverá uma ordem internacional desigual, estruturada para explorar os países dependentes e transferir esse excedente para os países imperialistas. Dessa forma, a luta anti-imperialistas segue sendo atual. Claro que o capitalismo, atualmente, tem aspectos diferentes daquele capitalismo dos anos 1950 e 1980. Também é preciso aprender com os erros das lutas anteriores. Em primeiro lugar, o anti-imperialismo tem que ser internacional. Governos populares e socialistas, quando isolados, sempre foram alvo de campanhas de desestabilização internacional ou até mesmo de intervenção militar direta. Ou seja, é fundamental articular a luta em âmbito internacional.

O trabalho de propaganda da Tricontinental se notabilizou politicamente porque era uma forma de articular lutas nacionais a um esforço internacional. Vou ilustrar isso com um exemplo: a questão Palestina. Vários cartazes dos cartazes retratam a política de repressão praticada pelos governos de Israel e o direito que os palestinos têm de se defender. O genocídio palestino, idealizado e executado atualmente pelo governo de Israel, é uma atualização de uma política histórica, reiteradamente denunciada pela Tricontinental.
O segundo ponto de balanço é uma consequência do primeiro. Para fazer frente a situações de isolamento internacional, de bloqueio econômico e desestabilização política, há uma tendência de governos populares se fecharem e sacrificarem a democracia interna. Não é difícil pensar em exemplos disso na América Latina. Sem a garantia e o aprofundamento da democracia socialista, não é possível construir uma verdadeira experiência política que supere o capitalismo.
O título da mostra – Os ventos do norte não movem moinhos – evoca a recusa ao modelo imposto pelo Norte geopolítico. De que maneira esse espírito de rebeldia aparece nas peças expostas?
Essa rebeldia aparece de diferentes formas. Antes eu queria só ilustrar a força dos “ventos do sul”, ou seja, da luta dos povos do Terceiro Mundo entre os anos 1950 e 1980. A guerra do Vietnã impulsionou várias lutas inclusive no centro do capitalismo. Não era difícil ver na “revolução de 1968”, que vai muito além do maio de 68 francês, diferentes palavras de ordem de apoio à luta do povo do Vietnã. O mesmo tipo de comentário pode ser feito, por exemplo, sobre a eleição de Salvador Allende, no Chile, em 1970, e da rápida transformação econômica que ele implementou, antes de ser vítima do brutal golpe de 1973, sabidamente financiado pelo grande capital e articulado pelos governos do Brasil e dos Estados Unidos.
Retomando a questão sobre o espírito de rebeldia, ele aparece, por exemplo, na presença de elementos que remetem ao teor das diferentes lutas daquele período. As lutas de libertação nacional foram, em sua maioria, lutas armadas, então em quase todos os cartazes há elementos que remetem a esse formato de ação. Também há o claro esforço de valorizar símbolos locais como motivo principal dos cartazes. No cartaz sobre a Palestina, há um homem usando um “keffiyeh”. Por fim, as imagens que remetem à política oficial dos Estados Unidos são geralmente marcadas por elementos que indicam agressão e brutalidade.
Como foi o processo de curadoria dessa exposição, desde a escolha das obras até a proposta de trazer esse acervo visual para dentro da universidade pública?
Todo o processo esteve vinculado a certo fascínio que tenho pelo terceiro-mundismo. Quem fez avançar a luta política mundial entre os anos 1950 e 1980? Inquestionavelmente, foi o Terceiro Mundo. Um caminho marcado por acertos e por erros, mas sobretudo pela convicção de que apenas a ação organizada dos “condenados da Terra” pode transformar a vida.
Na escolha dos cartazes, me propus uma reflexão marcada por alguns pontos como, a potência histórica do acontecimento retratado, e como a força visual poderia instigar uma interpretação crítica das relações internacionais. Além da escolha dos cartazes, também foi feito um trabalho de produção de legenda e textos informativos, que permitem uma compreensão mais precisa da exposição e das questões retratadas nas imagens selecionadas. Trazer esse acervo para a universidade pública foi parte do conceito: não é só exibir imagens, é articular ensino, pesquisa e extensão, ativar a biblioteca como espaço de encontro, oferecer mediações abertas à comunidade e criar um ambiente em que estudantes leem política por meio do design e do cartaz.
A área de relações internacionais é bastante marcada por uma interpretação institucional, que coloca ênfase no “andar de cima” das relações. Abordagens críticas, análises de classe e de lutas populares são facilmente secundarizadas nessas abordagens. Nossa exposição se propõe a ser uma leitura “a contrapelo” das relações internacionais e uma rememoração ativa de lutas passadas, mas que seguem habitando o presente.
Katarine Flor é jornalista e coordenadora de comunicação na Fundação Rosa Luxemburgo, atuando em projetos voltados à justiça social, ao direito à cidade e à democratização da comunicação no Brasil. Especialista em Comunicação Organizacional pela Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), é coautora da coletânea Mobilidade antirracista e coordenou a comunicação do relatório “Em nome do clima: mapeamento crítico”.



