Bioeconomia não é um termo neutro, pois guarda em si mesmo o propósito de tornar bens comuns em mercadorias e capturar a memória ancestral para fins comerciais.
Bioeconomia como solução corporativa
26/08/2025
por
Guilherme Carvalho 
Este artigo também foi publicado no Le Monde Diplomatique Brasil, em uma parceria editorial que busca ampliar o debate sobre justiça climática. Trata-se de uma versão reduzida; o texto completo pode ser lido no livro Mineração, petróleo e bioeconomia. A publicação integra a coleção Politizando o Clima, editada pela Fundação Rosa Luxemburgo em parceria com a Editora Funilaria. A série reúne quatro volumes que questionam as soluções climáticas hegemônicas e denunciam os impactos da financeirização da natureza sobre territórios do Sul Global.

Certa vez levei um dos meus filhos ao Território Quilombola Laranjituba e África, situado em Abaetetuba (PA). Visitamos a casa de uma quilombola conhecida por todos do local como Chica. Em meio à conversa ela nos levou a uma mata próxima, a fim de mostrar o que havia nela. Foi uma inesperada e encantadora aula onde as variedades de espécies eram identificadas com facilidade e seus usos explicados em minúcias, assim como os riscos de algumas delas. O timbó, por exemplo, é uma planta que, quando jogada na água, atordoa os peixes, os quais, dessa maneira, podem ser facilmente capturados com as mãos. Ele já não é mais usado como antigamente por conta dos danos causados.

Na mesma comunidade há outro quilombola, conhecido como Vavá, que recorrentemente afirma que a mata “é o supermercado dele”, onde tudo o que precisa está lá, sempre às mãos. Ele também dispõe de um amplo conhecimento sobre árvores, o tempo adequado para o plantio de diferentes espécies, e a relação entre essas espécies, os animais/insetos/fungos, com a lua, o sol, as marés, as divindades da mata e a comunidade. Assim como Vavá e Chica, há outras pessoas do território que detêm conhecimentos importantes para a garantia do modo de vida comunitário. De onde vem todo esse conhecimento?

Sou um amazônida. Reflito sobre o mundo a partir das minhas raízes neste chão. Portanto, em vez de iniciar a análise neste artigo diretamente pela bioeconomia, procuro mostrar que os modos de vida ancestrais aqui estabelecidos se contrapõem às proposições desse conceito, pois se baseiam em pressupostos incompatíveis com ele, já que a bioeconomia está associada a um projeto de poder colonizador.

Segundo Vitor Toledo e Narciso Barrera-Bassols (2015), a sociedade moderna “padece de amnésia”, uma amnésia biocultural, particularmente evidente “entre os setores urbanos e industriais mais sofisticados”, que “tendem a perder a sua capacidade de recordar”. É como se fôssemos educados e educadas a esquecer. Para esses autores, o primeiro sinal de esquecimento é justamente o fato de os indivíduos modernos não se sentirem, eles próprios, natureza.

A apartação entre sociedade e natureza – ou humanidade e natureza – encontra-se entre os pilares que sustentam o sistema capitalista e a concepção moderna de sociedade (Silva, 2012). Dessas concepções derivam narrativas, políticas governamentais e de Estado, iniciativas de conglomerados econômicos nacionais e transnacionais, além de propostas para enfrentar as crises climática e ambiental baseadas no fortalecimento de instituições e mecanismos de mercado – em especial os ligados à especulação financeira. Todas essas iniciativas, além de outras, compartilham uma visão de natureza como algo externo a nós, que deve ser dominado, controlado e explorado, gerando lucros e benefícios para os que realmente detêm o poder.

Aí nos encontramos diante das reflexões de Ailton Krenak (2020), que nos indaga: somos mesmo uma humanidade? De acordo com ele, fomos construindo a nossa visão de humanidade ao mesmo tempo em que nos concebíamos apartados da natureza: “Fomos, durante muito tempo, embalados com a história de que somos a humanidade. Enquanto isso, fomos nos alienando desse organismo de que somos parte, a Terra, e passamos a pensar que ela é uma coisa e nós, outra; a Terra e a humanidade. Eu não percebo onde tem alguma coisa que não seja a natureza. Tudo é natureza”.

Seguindo perspectiva muito próxima à de Krenak, Nego Bispo (2023) brada em alto e bom som que não devemos ser humanistas, pois o humanismo se desconectou da natureza, vinculado que está a propostas e iniciativas que nos desenraizam, materializadas na noção de desenvolvimento. Nesse caso, o des-envolvimento tem o sentido de não envolvimento ou não pertencimento. Para Nego Bispo, desenvolvimento desconexão estão fortemente entrelaçados, sendo o primeiro uma variante do que ele denomina como cosmofobia, que expressa a vontade de afastar-se do original rumo à segunda.

Voltando a Toledo e Barrera-Bassols (2015), eles consideram que a incapacidade de recordar evidencia a cegueira da modernidade. Portanto, romper com essa situação significa, entre outras coisas, voltar nossa atenção aos povos originários e comunidades tradicionais, pois neles se encontra a memória da espécie. Não uma memória baseada em vivências e aprendizados de tempo curto, mas que remonta a milhares de anos. De acordo com os autores, é nessa memória da espécie que se encontra “a chave para decifrar, compreender e superar a crise dessa modernidade, ao reconhecer outras formas de conviver entre nós e com os outros – entre os modernos e os pré-modernos e entre os humanos e os não humanos, isto é, a natureza ou as culturezas”. O fato de a modernidade ter se tornado “prisioneira do presente”, ainda segundo os autores, é que faz com que a amnésia seja uma característica do nosso tempo.

Essa análise nos coloca diante de um duplo e grande problema: ao virarmos as costas para o passado, deixamos de aprender com ele e, por outro lado, o futuro deixa de se apresentar como um campo de possibilidades – portanto, de afirmação de utopias que rompam com as amarras estruturais desta sociedade – na medida em que está fundado nas noções de linearidade histórica e de tempo ascendente, tal como expressado nas concepções de desenvolvimento e progresso. Aliás, o economista brasileiro Celso Furtado (2000) certa vez afirmou que estas foram as duas ideias-força que legitimaram todas as atrocidades cometidas pelos colonizadores no nosso continente.

A Amazônia não é fruto somente de processos naturais ocorridos ao longo de milhões de anos. Ela é também o resultado histórico-cultural da ação humana. Isto é, ela tem sido manejada ao longo de milênios. A presença humana na Amazônia brasileira data ao menos de 11.200 anos antes do presente, cujos registros foram encontrados na Caverna da Pedra Pintada, no município de Monte Alegre (PA).[1]

Neles foi possível observar que os povos daquela região sabiam manejar uma diversidade de recursos disponíveis e empregar técnicas adequadas para acessá-los e utilizá-los. A Amazônia jamais foi um inferno verde como defenderam alguns (Rangel, 1927), um ambiente hostil a ceifar as potencialidades dos povos aqui estabelecidos.

Nego Bispo defende a ideia de que é preciso desenvolver o que ele define como guerra de denominações. Segundo ele, para “transformar a arte de denominar em uma arte de defesa, resolvemos denominar também” (2023, p. 13), o que, em síntese, se constitui no “jogo de contrariar as palavras coloniais como modo de enfraquecê-las” (p. 13). Por exemplo, há denominações que podem expressar tão somente formas de colonização, de dominação, de relações desiguais de poder. Esse parece ser o caso da chamada bioeconomia, cujo contraponto bem poderia ser biointeração, uma denominação levantada por Nego Bispo em oposição ao chamado desenvolvimento sustentável. No entanto, tudo se resume a um jogo de palavras ou há algo mais profundo em jogo? É isso o que buscaremos tratar a seguir.

Crédito: Lucas Ninno / Diálogo Chino

Insustentável sem a violação de direitos

O termo bioeconomia se transformou numa panaceia capaz de ser tudo e nada ao mesmo tempo, tal qual foi durante muito tempo a noção de desenvolvimento sustentável. O que não quer dizer que ela não tenha uma função bem precisa, que é a de justificar o controle de territórios por parte das corporações.

O termo surgiu na década de 1970 com o economista romeno Nicholas Georgescu-Roegen, que buscou empregar princípios da biofísica na economia, em uma tentativa de compreendê-la a partir de categorias das ciências naturais. Posteriormente, a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) e a União Europeia passaram a empregá-lo para promover o emprego da biotecnologia no desenvolvimento de produtos e mercados. Portanto, ele está profundamente vinculado às estratégias de expansão capitalista numa era de financeirização de elementos naturais intangíveis, como o carbono.

Mineradoras, agronegócio, madeireiros, petroleiras, imobiliárias, empresas portuárias e outros setores econômicos empregam o termo para justificar uma infinidade de empreendimentos com grande capacidade de destruição ambiental e de modos de vida ancestrais. Os governos federal e do Pará e grandes empresas investem pesadamente em propaganda e marketing para defender e estimular a instalação de complexos logísticos. Além disso, buscampa “esverdear” (greenwashing) iniciativas altamente contaminantes e destruidoras de modos de vida e do ambiente natural, tais como portos no município de Barcarena (PA); a duplicação dos minerodutos das transnacionais Hydro e Artemyn – antiga Imerys, agora pertencente ao Grupo Flack; a hidrovia Araguaia-Tocantins; o asfaltamento da BR-319 que liga Porto Velho (RO) a Manaus (AM); a Ferrogrão – cujo trajeto buscará conectar Sinop (MT) até o Porto de Miritituba, em Itaituba (PA); ou a construção da hidrelétrica de Marabá (PA).

A bioeconomia pretendida por esses segmentos tem profunda vinculação com a especulação financeira em escala global. Todavia, há um fato comum nas ações desses grupos hegemônicos e seus aliados que a defendem – mídia corporativa, justiça, parlamentos, vertentes conservadoras de distintas religiões e outros –, que é a apropriação material e simbólica do conhecimento ancestral produzido por povos indígenas e comunidades tradicionais de diferentes partes do planeta, pois a memória da espécie se encontra justamente entre esses atores sociais (Toledo; Barrera-Bassols, 2015, p. 24).

Para que o intento das corporações econômicas nacionais e transnacionais e de seus aliados se efetive, é necessária a adoção de variadas estratégias. Comecemos com a primeira: “vender” a ideia de que a bioeconomia tem total identificação com os modos de vida ancestrais, como se reproduzisse as relações que estes mantêm entre si e com a natureza. A partir daí se constrói toda uma narrativa calcada na suposta sustentabilidade de empreendimentos governamentais e privados. Ao lado disso, buscam consolidar na sociedade a visão de que a bioeconomia é, de fato, uma novidade, como algo que projeta o novo na defesa da vida no planeta.

A segunda é tentar consolidar a visão de que a bioeconomia rompe com as formas pretéritas de exploração e de destruição. Porém, na verdade, as soluções corporativas às crises climática e ambiental pouco compromisso têm com as mudanças estruturais necessárias para reverter a situação em que nos encontramos.

A terceira: a bioeconomia é apresentada como uma forma de proteger os territórios de povos indígenas e de comunidades tradicionais e seus modos de vida, mas isso também não condiz com a realidade. A própria existência desses sujeitos coletivos se tornou um risco ao sistema capitalista. Isso porque eles são a prova viva de que há outras possibilidades de relação com a natureza, outras sociabilidades e formas organizativas que não sejam baseadas no lucro, na divisão de classes e na exploração, recuperando, dessa forma, a noção de futuro como um campo de possibilidades; não uma rota única, linear e ascendente.

A quarta diz respeito ao fato de a bioeconomia ser apresentada pelos seus defensores como uma visão holística sobre os territórios e as relações neles presentes. Para alcançar esse intento, tentam colar aquela noção a imagens dos modos de vida de povos indígenas e comunidades tradicionais, cujos saberes ancestrais contribuíram para que a floresta seja o que é. Todavia, uma das características da globalização capitalista é justamente promover a unicidade e a padronização de paisagens, procedimentos, gostos, modos de vida e de consumo, pensamentos, vontades e outras mais, que se chocam profundamente com a perspectiva holística. Sem falar na fragmentação também produzida nesse processo de expansão. Enquanto isso, os povos ancestrais se caracterizam pela diversidade, equilíbrio, unidade, compartilhamento, interação, cosmologias que fundamentam o buen vivir, solidariedade e valores distintos aos da sociedade capitalista.

A quinta está calcada na fantasia de que a bioeconomia respeita os direitos socioterritoriais de povos indígenas e comunidades tradicionais. Para refletirmos sobre essa questão teremos de recorrer a uma importante indagação suscitada pelo professor e jurista Rubens Casara (2018): vivemos realmente num Estado Democrático de Direito? Tem sido usual se falar em crise do Estado. Casara contrapõe: “se a situação que se afirma constituir um quadro de ‘crise’ adquire ares de normalidade, ou melhor, se a afirmação da existência de uma crise é inerente (e funcional) ao status quo, se as características que compõem a ‘crise’ nunca passam (nem podem passar), se a crise se torna ‘permanente’, impõe-se investigar se há mesmo um quadro de crise. Uma crise permanente, que se apresente funcional, útil para a geração de lucros a partir da produção de novos serviços e mercadorias, bem como a repressão necessária à manutenção do projeto político e econômico imposto em determinado Estado, não é mais uma negatividade, um desvio, sim uma positividade cara ao modelo neoliberal. Pode-se, então, pensar a utilização do termo ‘crise’ como um recurso retórico, como um elemento discursivo capaz de esconder as características estruturantes do atual modelo de Estado”.

É justamente esse o ponto focal do nosso argumento: bioeconomia, REDD+ e mercado de carbono,[2] entre tantas outras “alternativas de mercado”, são as expressões dessa “positividade” num ambiente em que o modelo neoliberal atravessa o Estado e a sociedade. Tais “alternativas” somente podem avançar num ambiente de constante violação de direitos. Não há como o capital se expandir sem o uso da violência, material e simbólica, contra povos indígenas e comunidades tradicionais.

Na Amazônia, comunidades tradicionais têm sido permanentemente achacadas para assinarem contratos de trinta ou quarenta anos de venda de créditos de carbono, cujas cláusulas são draconianas, posto que lhes impõem restrições e diferentes formas de punições, sem que reflitam detidamente sobre as consequências desses “acertos” para a continuidade dos seus modos de vida, fato muito comum na região Baixo Tocantins, próxima a Belém. Por exemplo, o povo indígena Suruí-Aikewara, cujas aldeias estão localizadas na mesorregião Sudeste do Pará, teve suas imagens postadas por uma empresa de consultoria desconhecida deles para oferecer créditos de carbono a grupos econômicos do Brasil e do exterior. E a empresa Carbonext, ligada a Shell, foi denunciada por violar direitos de povos indígenas em contratos de crédito de carbono. Por outro lado, protocolos comunitários baseados na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) têm sido ignorados. Com isso, o direito à Consulta, Prévia, Livre e Informada não se materializa. Isso sem falar nos escândalos de corrupção e outros crimes praticados pelos corretores do clima, como os ocorridos no município de Portel (PA).

A propaganda em torno da bioeconomia se utiliza da captura simbólica dos modos de vida ancestrais e/ou tradicionais para conquistar legitimidade junto a diferentes públicos. Além disso, busca mostrar como novo algo praticado há milênios ou séculos por povos e comunidades. A captura também alcança parcela dos movimentos sociais, lideranças e ONGs que muitas vezes servem de intermediários para a cooptação dos segmentos defensores das florestas e dos seus direitos socioterritoriais. Portanto, a luta por alternativas que verdadeiramente enfrentem as causas estruturais das crises climática e ambiental é também uma luta em defesa da democracia, bem como pela superação do modelo hegemônico de des-envolvimento.

Bioeconomia, desenvolvimento sustentável, agrocombustíveis, biocombustíveis, capital humano, capital-economia, biotecnologia, mercado limpo, empresas verdes, certificação verde e outras mais são denominações que reproduzem a lógica da exclusão de grandes parcelas da população mundial. A bio do mercado nada tem a ver conosco, simplesmente porque não é da vida que se trata, mas de lucro e poder.

Guilherme Carvalho é doutor em Ciência do Desenvolvimento Socioambiental do Trópico Úmido pelo Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará (NAEA/UFPA) e educador popular da ONG FASE Programa Amazônia. A reflexão aqui apresentada não reflete necessariamente o posicionamento da instituição da qual faz parte.


Referências bibliográficas

BISPO DOS SANTOS, Antônio. A terra dá, a terra quer. São Paulo: Ubu Editora/PISEAGRAMA, 2023.

CASARA, Rubens. Estado Pós-Democrático: neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.

FURTADO, Celso. Introdução ao Desenvolvimento: enfoque histórico-estrutural. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

NEVES, Eduardo Góes. Sob os Tempos do Equinócio: oito mil anos de história na Amazônia Central. São Paulo: Ubu Editora / Editora da Universidade de São Paulo, 2022.

RANGEL, Alberto. Inferno Verde: scenas e scenarios do Amazonas. 4ª ed. Tours Typographia Arrault & Cª, 1927.

SILVA, José Guilherme Carvalho da. Hidrelétricas em Rondônia: tempos e conflitos nas águas do Madeira. Tese de Doutorado. Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará (NAEA/UFPA), 2012.

TOLEDO, Vitor M.; BARRERA-BASSOLS, Narciso. A Memória Biocultural: a importância ecológica das sabedorias tradicionais. Tradução Rosa L. Peralta. São Paulo: Expressão Popular, 2015.

[1] “A presença humana na Amazônia é tão antiga quanto em outras áreas da América do Sul, pelo menos no que se refere à época da transição entre o Pleistoceno e o Holoceno, ao redor de 12 mil anos atrás. Essas evidências são importantes porque mostram que não houve impedimento à ocupação da floresta tropical por grupos que não praticavam a agricultura, ao contrário do proposto por antropólogos como Bailey e Headland nos anos 1980”. (Neves, 2022, p. 55)

[2] Os próximos três artigos deste especial tratam justamente dos mecanismos de mercado defendidos enquanto “alternativas” às crises climática e ambiental.

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