No final de 2024, o governo aprovou as regras do Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE), regulando, assim, o mercado de carbono no país. De acordo com a lei 15.042, o Brasil passa a estar “submetido ao regime de limitação das emissões de GEE (Gases de Efeito Estufa) e de comercialização de ativos representativos de emissão, redução de emissão ou remoção de GEE”; ou seja, o processo pelo qual empresas e países compensem as emissões por meio da compra de créditos vinculados a iniciativas de preservação ambiental passa a estar regulado.
Apesar de prometer mais segurança, porém, a nova legislação não tem dirimido os problemas que ha tempos têm suscitado denúncias de grilagem de carbono, contratos ilegais e ausência de consulta prévia às comunidades tradicionais. A constatação foi reforçada durante a Formação Técnica e Jurídica sobre Mercado de Carbono e REDD+, realizada nos dias 23 e 24 de setembro na sede da Fundação Rosa Luxemburgo, em São Paulo.
De acordo com o SBCE, o mercado de crédito de carbono no país é dividido em dois setores: o regulado – ou jurisdicional, que envolve iniciativas do poder público – e o voluntário, operado pela iniciativa privada. Na primeira modalidade, um estado ou município (jurisdição), por exemplo, podem criar projetos de REDD+ (que estariam evitando ou diminuindo o desmatamento e a liberação de GEE na atmosfera) relativos às matas desta jurisdição. Os créditos de carbono gerados com estes projetos poderiam ser comercializados pelo ente estatal, sendo que a distribuição dos devidendos entre a jurisdição e as comunidades que tem a posse da área florestada dependerá dos acordos de cada projeto. Ja na segunda modalidade, os projetos de REDD+ são firmados entre uma empresa e uma comunidade, sendo que as regras seriam definidas por ambos de forma privada.
Pará: exemplo de problemas
Em meados de 2024, o Governo do Pará anunciou um acordo bilionário de REDD+ jurisdicional, firmado com a Coalizão LEAF (composta por corporações como Amazon, Bayer, BCG, Capgemini, H&M Group, Fundação Walmart e os governos da Noruega, Reino Unido, Estados Unidos e República da Coreia) e colocando sobre balcão cerca de 84 milhões de hectares de florestas, grande parte das quais habitadas por povos indígenas, quilombolas e tradicionais.
A reação do Ministério Público Federal (MPF) ao anúncio foi imediata, em forma de recomendação de anulação do contrato, uma vez que a transação apresentava várias ilegalidades. Segundo o procurador-chefe do MPF-PA, Felipe de Moura Palha, o governador Helder Barbalho havia ofertado ao mercado créditos ainda não existentes, propondo assim uma compra futura, atualmente vedada por lei. O governo estadual também estava contabilizando florestas em áreas federais (terras indígenas, quilombolas e RESEX) e, o mais importante, não havia efetuado a Consulta Previa, Livre e informada às populações que vivem nas áreas compreendidas pelo projeto. Segundo o procurador, de acordo com a legislação vigente uma comunidade não apenas tem o direito à Consulta Prévia, Livre e Informada antes de qualquer acordo que vise viabilizar um projeto que a afete, mas também tem o direito ao veto. Ou seja, o governo do estado não pode incluir arbitrariamente uma área em um projeto de carbono, uma vez que a comunidade pode dizer não. Esta prerrogativa garante à população de uma área o direito de não querer nenhum projeto de REDD+ em seu território, ou ainda de fazer um acordo privado com uma empresa de sua escolha.
De acordo com a advogada Bruna Balbi, da ONG Terra de Direitos, o Pará está transformando territórios tradicionais em ativos financeiros para emissão de créditos de carbono, sem respeitar a Convenção 169 da OIT. Em junho deste ano, a Terra de Direitos lançou uma Nota Técnica sobre o projeto de REDD+ Jurisdicional do estado destrinchando as irregularidades. “(…) em toda a condução, mesmo que inicial, do processo administrativo da possível venda futura de créditos de carbono não houve participação representativa em quantitativo adequado de povos e comunidades tradicionais para debater o projeto. As oficinas informativas registradas como realizadas nos documentos cobriram apenas parte dos povos que serão atingidos (…). Ademais, a linguagem nos documentos é puramente técnica, o que pode prejudicar o entendimento de informações essenciais.”
Segundo a Terra de Direitos, “a comercialização de créditos de carbono em territórios tradicionais tende a provocar mudanças extremas no modo de vida das populações, uma vez que as áreas verdes estarão bloqueadas para uso tradicional por força de adesão ao mercado jurisdicional do crédito de carbono, causando limitação na autonomia das comunidades para gerir os recursos naturais de seus territórios de forma sustentável, como sempre fizeram”. Por fim, a ONG alerta que, para os créditos serem negociados no mercado de carbono, as áreas precisam estar devidamente regularizadas para dar garantia aos compradores dos “títulos verdes”. “A lógica mercantilista do mercado de carbono traz à tona a possível movimentação do Estado com manobras de aceleração de regularização de territórios com instrumentos jurídicos precários, como é o caso da Cessão de Uso em territórios quilombolas, ao invés da propriedade definitiva. Isso faz com que a propriedade continue sendo do Estado, para que seja ele o titular efetivo dos benefícios dos projetos florestais”.
Grilagem do carbono
Pioneiros no Brasil, os projetos privados de REDD+ – ou de mercado voluntario de carbono – têm se mostrado ainda mais problemáticos, adicionando à falta de transparência e consulta contratos abusivos, coação de lideranças, imposição de regras exógenas à comunidade, conflitos internos, entre outros. Para a defensora pública do estado do Pará (DPE-PA), Andréia Macedo Barreto, doutora em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Pará, no entanto, um dos crimes mais complexos é o a chamada Grilagem do Carbono, a apropriação ilícita de terras públicas, em áreas de florestas públicas, mediante a elaboração de documento que simule a propriedade privada da terra. Com isso, explica, o grileiro se apropria ilicitamente da titularidade do crédito de carbono florestal, enquanto ativo financeiro transnacional e fruto civil das florestas, para auferir lucro financeiro na sua comercialização.
Em 2023, por exemplo, a DPE denunciou cinco empresas brasileiras e três estrangeiras (uma americana, uma canadense e uma britânica), que usaram terras públicas na Amazônia para lucrar, de forma irregular, com a venda de créditos de carbono para gigantes multinacionais. Até hoje, explica Andreia Barreto, 61 matrículas em projetos de REDD+ no Pará foram canceladas e 600 bloqueadas entre 2023 e 2025.
Medida inócua
Além dos problemas gerados pelas diversas iniciativas do mercado de carbono no Brasil, ha também o fator da ineficácia deste processo para enfrentar a crise climática, avalia a professora Fabrina Furtado, do CPDA/UFRRJ. Ou seja, o mercado de carbono e os projetos REDD+ não são eficientes para reduzir o desmatamento, como mostrou o primeiro grande projeto de REDD jurisdicional do país. Em 2012, quando foi assinado o contrato do Programa REDD Early Movers (REM), uma iniciativa de cooperação alemã com o Estado do Acre, por exemplo, o desmatamento anual era de 305 km²; em 2016, aumentou para 372 km², explica a pesquisadora. “E segue aumentando… é um financiamento de atividades que não reduzem desmatamento, repleto de problemas, em cuja gestão a participação das comunidades não é efetiva”.
Segundo Fabrina Furtado, o caso do Pará é exemplo da financeirização da natureza sem garantias democráticas. “O Estado avança com o mercado de carbono como se fosse apenas uma oportunidade de negócios, mas ignora as obrigações internacionais assumidas pelo Brasil. A Convenção 169 da OIT exige consulta prévia e respeito à autodeterminação dos povos — e isso não está sendo cumprido. A ausência de escuta às comunidades transforma os territórios em meros ativos climáticos, reduzindo a floresta a um instrumento de especulação”.

*Katarine Flor é jornalista e coordenadora de comunicação na Fundação Rosa Luxemburgo, atuando em projetos voltados à justiça social, ao direito à cidade e à democratização da comunicação no Brasil. Especialista em Comunicação Organizacional pela Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), é coautora da coletânea Mobilidade antirracista e Energia e Neocolonialismo. Coordenou a comunicação do relatório “Em nome do clima: mapeamento crítico”.



