O TFFF converte a preservação das florestas tropicais em ativo financeiro e expõe a contradição entre clima e capital
A floresta na Bolsa de Valores
03/11/2025
por
Katarine Flor

O Brasil anunciou, em setembro de 2025, um aporte inicial de US$ 1 bilhão no Fundo Florestas Tropicais para Sempre (Tropical Forests Forever Facility – TFFF), durante evento paralelo à Assembleia Geral da ONU. O mecanismo, que deve ser oficialmente lançado na COP30 em Belém, promete mobilizar até US$ 125 bilhões em recursos públicos e privados para remunerar países que preservem suas florestas tropicais, segundo dados da Global Foundation.

O modelo propõe que os recursos sejam aplicados em um portfólio de investimentos, sendo que apenas os rendimentos líquidos serão repassados aos países participantes, mediante critérios de desempenho ambiental. Seus defensores celebram o fundo como uma saída pragmática para enfrentar a escassez de financiamento climático.

Crédito: Lucas Ninno / Diálogo Chino

Aos olhares mais críticos, como o da professora Fabrina Furtado (CPDA/UFRRJ), o TFFF é um exemplo de financeirização da política pública ambiental, que transforma direitos coletivos em ativos financeiros condicionados ao mercado.

O que está em jogo?

O TFFF estabelece pagamentos anuais estimados de US$ 4 por hectare conservado, com penalidades em caso de desmatamento, conforme informado pelo WWF. Segundo o Ministério do Meio Ambiente, 20% dos recursos devem ser destinados a povos indígenas e comunidades tradicionais.

É possível fazer a floresta valer mais em pé do que derrubada”, resumiu o presidente Luiz Inácio Lula da Silva na Cúpula da Amazônia. Na ONU, Lula reforçou que o fundo “vai mudar o papel dos países de florestas tropicais no enfrentamento à mudança do clima por meio de incentivos econômicos reais”.

O alerta da financeirização

A professora Fabrina Furtado alerta que o TFFF não é apenas um mecanismo de financiamento, mas sim um laboratório de financeirização da política pública ambiental. “Quando a política pública é estruturada por meio de instrumentos do mercado financeiro, o direito coletivo à preservação se torna dependente do retorno de investimentos.”

Essa lógica se expressa em três frentes:

  • Portfólio de investimentos: os pagamentos dependem do rendimento das aplicações.
  • Condicionalidades externas: países só acessam os recursos se cumprirem critérios de elegibilidade e auditorias internacionais.
  • Pagamentos por desempenho: a floresta só gera retorno se os indicadores atenderem ao padrão definido pelos gestores globais do fundo.

Apoio internacional e a COP30

A iniciativa brasileira rapidamente ganhou tração internacional. Em setembro de 2025, 34 países lançaram o Forest Finance Roadmap for Action, citando o TFFF como ação prioritária para destravar recursos para as florestas tropicaisChina também declarou apoio oficial ao mecanismo.

O site oficial da COP30 apresenta o TFFF como um “modelo inovador de conservação florestal”.

Mas críticos alertam: ao ocupar o centro das negociações, o fundo pode ofuscar debates estruturais sobre soberania, demarcação de terras, direitos indígenas e combate à grilagem.

“O discurso do financiamento climático costuma vir embalado em promessas de preservação, mas o que vemos é a floresta convertida em moeda de troca. Nesse sentido, o TFFF reforça a lógica que retira das comunidades o poder de decidir sobre seus territórios e entrega às engrenagens do mercado a definição de futuro. É a natureza transformada em ativo – e os povos da floresta reduzidos a figurantes em um jogo global de investimentos”, analisa Verena Glass, coordenadora de projetos na Fundação Rosa Luxemburgo.

Promessas e contradições

O governo brasileiro sustenta que o TFFF complementa, e não substitui, a cooperação internacional tradicional. ONGs como o WWF o descrevem como “um avanço para o financiamento florestal”.

Por outro lado, Furtado analisa que o fundo é uma aposta na crença de que o capitalismo pode “salvar o planeta”, ao custo de reforçar desigualdades e submeter países tropicais ao capital global. Organizações como a Global Forest Coalition advertem para o risco de “soluções falsas”, que não enfrentam as causas estruturais do desmatamento.

Entre os riscos mais citados:

  • Dependência dos mercados: se os investimentos tiverem baixo retorno, os repasses caem.
  • Injustiça distributiva: comunidades locais podem receber apenas uma fração do prometido.
  • Perda de soberania: países ficam sujeitos a regras externas que nem sempre refletem suas realidades.
  • Substituição da cooperação: fundos financeiros podem reduzir compromissos tradicionais de países ricos, em vez de somar a eles.

Nesse mesmo sentido, a pesquisadora Elisangela Soldateli Paim, coordenadora do Programa Latinoamericano de Clima e Energia da Fundação Rosa Luxemburgo, alerta que “traduzir uma crise ecológica e social em toneladas de CO₂ equivalente – que podemos medir, contar, precificar e comercializar – não só restringe a nossa visão em termos de ações transformadoras, como permite que os interesses por trás do sistema sigam sem ser contestados”.

Um futuro negociado

O TFFF é celebrado como inovação, mas também criticado como um laboratório de financeirização da política pública. Para seus defensores, oferece recursos em escala inédita para proteger as florestas tropicais. Para críticos, inaugura uma era em que direitos ambientais só valem se forem rentáveis.

A contradição permanece: é possível salvar as florestas tropicais pela mesma lógica financeira que historicamente aprofundou desigualdades e pressionou territórios?

*Katarine Flor é jornalista e coordenadora de comunicação na Fundação Rosa Luxemburgo, atuando em projetos voltados à justiça social, ao direito à cidade e à democratização da comunicação no Brasil. Especialista em Comunicação Organizacional pela Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), é coautora das coletâneas Mobilidade antirracista Energia e neocolonialismo. Coordenou a comunicação do relatório “Em nome do clima: mapeamento crítico”.

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