Atualmente, os Munduruku são um povo formado por cerca de 14 mil pessoas, distribuídas pelas terras indígenas Munduruku, Sai Cinza e Kayabi, no alto curso do rio Tapajós e no rio Teles Pires; pelas terras Sawré Muybu e Sawré Bap’in, além das reservas Praia do Índio e Praia do Mangue, no médio curso da bacia do Tapajós. Há ainda grupos Munduruku que lutam pelo reconhecimento de seus territórios no Baixo Tapajós, nas proximidades de Santarém, e ao longo do rio Madeira, no estado do Amazonas. Um povo que vem lutando há anos pela demarcação das suas terras, autonomia e a defesa dos seus territórios, florestas e rios contra empreendimentos hidrelétricos como a Usina de São Luiz do Tapajós e Belo Monte, o garimpo ilegal, o agronegócio e a ferrovia Ferrogrão.
O povo Munduruku, como muitos povos indígenas no Brasil, luta agora contra os projetos de REDD+ no seu território, além do REDD+ jurisdicional que o governo do Pará busca avançar sem a devida consulta aos povos que serão atingidos. Inclusive, o Ministério Público Federal (MPF) e o Ministério Público do Estado do Pará (MPPA) expediram a recomendação nº 07/2025 visando a anulação do Acordo de Compra de Redução de Emissões (Emission Reduction Purchase Agreement – ERPA) celebrado entre Governo do Pará, por meio da Companhia de Ativos Ambientais e Participações do Pará S.A (CAAPP), e a entidade internacional Emergent Forest Finance Accelerator (Emergent). Trata-se do anúncio feito em 24 de setembro de 2024 pelo governo do estado, da venda de quase R$ 1 bilhão em créditos de carbono e garantia de financiamento da Coalizão Reduzindo Emissões por meio da Aceleração do Financiamento Florestal (Coalizão LEAF, na sigla em inglês). No entendimento do MPF e do MPPA, como também do povo Munduruku, além de outros povos, comunidades e organizações, o Acordo de venda de crédito de carbono entre CAAPP e Emergent é ilegal e deveria, portanto, ser anulado.
Nesse processo de luta, conhecemos Alessandra Korap Munduruku, coordenadora da Associação Indígena Pariri, que representa o povo Munduruku do Médio Tapajós, no município de Itaituba, Pará. Alessandra é uma importante referência de luta contra a mineração e madeireiras e em defesa dos territórios e direitos indígenas, reconhecida nacional e internacionalmente. Em razão desse enfrentamento, grandes empresas de mineração – como a Anglo American e a Vale – e madeireiras foram forçadas a desistir de projetos de exploração no território indígena. Pelo seu papel de liderança, essa mulher guerreira já ganhou diversos prêmios internacionais de direitos humanos como o Prêmio Goldman de 2023, considerado um “Nobel verde”. Nos últimos anos, mesmo sofrendo ameaças, a luta da Alessandra no seu território, em espaços nacionais e internacionais, tem sido, também, contra os projetos e políticas de REDD+ que avançam sobre os territórios indígenas, assediando diversos povos e comunidades, inclusive o dela.
Alessandra nos falou da 24ª Sessão do Fórum Permanente das Nações Unidas sobre Questões Indígenas, onde, além de diversas ameaças às terras indígenas, como a mineração, os indígenas também debateram sobre o crédito de carbono e o REDD+. E está também acompanhando os debates em torno da COP 30, 30ª Conferência das Partes das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, a ser realizada em novembro na cidade de Belém.
No contexto brasileiro atual, quais você considera serem as maiores ameaças aos territórios indígenas?
A gente tem enfrentado vários problemas enquanto povos indígenas no Brasil, como a proposta de mineração nas nossas terras, a ausência de demarcação e o marco temporal. São assuntos que nos afetam, mas que não estão sendo discutidos com a gente por nenhum governo. O estado do Pará, através inclusive do próprio governador Helder Barbalho, por exemplo, está falando dos povos indígenas, falando sobre crédito de carbono, mas não está falando do marco temporal, nem de mineração nas terras indígenas, ou sobre os ataques às nossas terras. Os deputados estaduais também estão falando sobre mercado de carbono, organizando audiência pública para debater, inclusive exigindo a presença da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), mas não sobre os outros temas que nos afetam. Estamos enfrentando um retrocesso muito grande no Brasil, com os nossos direitos sendo violados, mas estão discutindo sobre “REDD+ jurisdicionais”, dizendo que vão apresentar na COP 30 e falando das consultas que fizeram. Mas onde estão essas consultas?
Falando sobre esses processos de consulta, como o povo Munduruku compreende o direito à consulta livre, prévia e informada?
Nós, Munduruku, temos nosso protocolo de consulta dentro dos territórios. Nesse protocolo incluímos também os ribeirinhos, com quem dialogamos, e falamos também sobre quem pode ser consultado. Não é só o cacique, não é só uma liderança, mas o povo em geral: são as crianças, as mulheres, os professores, os enfermeiros, os pajés. E esse tipo de consulta não temos visto no caso de REDD+ e do mercado de carbono. Os nossos direitos à consulta, ao consentimento prévio, livre e informado estão sendo violados. Os cientistas, as COPs, ainda não entenderam qual é o nosso papel. E a gente tem que aceitar esses debates que eles fazem sobre as mudanças climáticas, esse mecanismo de crédito de carbono. Como é que nós, indígenas, nós povos – não só do povo Munduruku, os outros povos, ribeirinhos, os quilombolas –, como é que estamos sendo consultados quando nos territórios nem todo mundo está sabendo o que é o mercado de carbono, como funciona e como vai nos afetar?
E como você avalia a forma como essas consultas são conduzidas pelo governo e por outras instituições?
É uma violência muito grande. As consultas não estão sendo feitas, e quando acontecem é com grupos bem pequenos e não levam as informações certas, as informações que precisamos saber. Porque consulta, para mim, é quando o Estado paga toda a despesa, e vai a todos os territórios. Não pode ser em dias de comemoração, nem nos dias em que estamos na roça. O governo tem que definir várias questões, como quem vai traduzir, como vão filmar, com base em que interesses, quantos dias podem estar dentro do território. Uma consulta que aconteça até o povo entender o que significa crédito de carbono e REDD.
Levando em consideração esses pontos sobre os processos de consulta às comunidades, como você enxerga a questão de projetos de crédito de carbono em territórios indígenas?
Para nós, não existe uma solução quando se fala de mecanismo de mercado, de mercadoria. Vale lembrar que a mercadoria não é só o carbono que estão vendendo: estão vendendo nós junto. Quando a gente fala de contrato, a gente tem que ler, reler, ler, reler, para entender o que está escrito, para não cair em armadilhas. Quando vem um contrato que a gente não entende, muitas vezes com palavras técnicas, caímos em uma armadilha. Nessas armadilhas têm muitas palavras técnicas, o que viola o direito do povo de entender os processos, na sua língua mãe, no seu conhecimento tradicional. Tem contrato de projeto de carbono de trinta anos. Imagina, trinta anos de contrato: meus filhos já estão grandes, mas meu neto vai sentir as consequências por muito tempo. Por trinta anos vou ter que dizer para ele que não pode fazer uma roça, que não pode plantar batata, que não pode plantar feijão, que não vai plantar arroz, que não vai fazer uma aldeia, um roçado que seja de agricultura sem veneno, que vai ter que receber algum dinheiro para comprar comida de fora, com veneno, com agrotóxico. Fico imaginando: o que é que vão plantar para a gente em troca desses créditos de carbono? Porque, que eu saiba, são os povos indígenas que plantam alimentos há milênios de anos. Para isso temos todo um conhecimento, a partir do qual a gente vem plantando. Aí, de repente, a gente vai deixar de plantar porque vem um recurso para a gente preservar uma natureza que as empresas estão destruindo? Não tem condições assim. Quando vejo esses projetos entendo que eles estão nos dizendo que temos que parar de plantar, de fazer a nossa própria fiscalização, de ensinar aos nossos filhos a nossa cultura tradicional. E em troca disso temos que ensiná-los a pensar só em dinheiro, porque a empresa está pagando superbem? Assim, vai chegar na mente dos nossos filhos e netos a ideia que as empresas querem que chegue: “vamos vender nossa terra, porque é o dinheiro que vale mais, porque a empresa está pagando”. Com isso então vamos comprar comida industrializada. Mas é essa comida com veneno que está chegando na mesa do povo brasileiro que vão trazer para os nossos territórios? Com os projetos não vamos conseguir plantar, porque somos proibidos de plantar, de caçar, de ir para o mato. E os locais sagrados? Vou ter que deixar de ir até eles, porque temos que preservar tudo por conta do planeta, do aquecimento global que está acontecendo? Está acontecendo, mas será que é por conta de nós?
Sobre esse último ponto, como você avalia a forma como os povos indígenas têm sido responsabilizados no debate sobre as mudanças climáticas e o mercado de carbono? Que impactos essa responsabilização gera para os territórios e modos de vida indígenas?
Fico pensando, como é que eles querem botar a culpa na nossa conta, responsabilizando os povos indígenas, os povos tradicionais? Como é que vou pegar um dinheiro para que as empresas continuem destruindo? Como é que eles vão amenizar o desmatamento se eles querem mais plantação de soja, uma ferrovia como a Ferrogrão, que vai carregar toneladas de grãos de soja, de milho, passando pelos nossos rios? Estão dragando os rios da bacia do Tapajós, estão dando pedaços de terra para grandes empresas, para destruir, para fazer grandes silos. Como é que vamos observar uma mineradora dentro do nosso território sem poder lutar contra aquilo, porque estão pagando muito bem através dos créditos de carbono? E onde está a cultura? Cadê o modo de vida tradicional para passarmos para os nossos filhos e filhas? Isso para mim é genocídio da cultura, genocídio da língua, genocídio cultural do povo, que não vai poder mais ensinar aos seus filhos como surgiu uma batata. Ou vai ser só uma história no museu? Assim parece que o museu é mais importante do que a própria realidade hoje. Parece que eles querem nos ver no museu, em Portugal, na Alemanha, em qualquer lugar do mundo, menos olhar para a realidade que nós estamos vivendo, e como estamos pedindo socorro. Será que os líderes mundiais estão preparados para isso? Ou nós que temos que brigar entre nós por conta de dinheiro?
Diante desse cenário, como você percebe que o mercado de carbono chega nas comunidades, considerando as disputas e os desafios enfrentados pelos povos indígenas na luta pela terra e por seus direitos?
O que eu vejo é que com a chegada de REDD+ e do mercado de carbono em terras indígenas, que já enfrentam a mineração e as madeireiras, além de outros projetos e empresas, as empresas e o governo geram uma briga entre povos indígenas, com povos indígenas. Nós, os Munduruku, sempre falamos: “Não queremos isso, queremos o nosso território, queremos demarcações, queremos ser livres”. Eu vejo muito discurso, “ah, indígena é pobre”. Gente, a gente não é pobre! Temos território, temos rios, temos florestas. Quando se fala que os indígenas são pobres, por que é que eles criam leis para tomar nosso território então? Por que é que eles estão querendo marco temporal? Por que é que eles querem paralisar a demarcação das terras indígenas? Por que é que eles querem mineração nas terras indígenas? Se nós somos tão pobres assim, cadê as políticas públicas para os nossos territórios? Cadê as políticas? Porque nós somos capazes, sim! Hoje, nós temos um trabalho. Agora mesmo, eu estou aqui na ONU, mas o meu povo está lá, fazendo, ensinando os jovens sobre apicultura, como criar abelhas no quintal para tirar mel e também ter sustentabilidade. Isso também é sustentabilidade. Como tirar o óleo de copaíba, andiroba, como trabalhar com a floresta sem degradar. Isso somos nós que fazemos.
Como você vê o destaque que o crédito de carbono tem ganhado no debate sobre as mudanças climáticas?
Hoje, com todos os problemas que temos, como é o problema gravíssimo do mercúrio, estamos discutindo o mercado de carbono. Ninguém quer discutir sobre o mercúrio, sobre como as mulheres estão sendo envenenadas nos seus úteros, envenenadas com mercúrio, ou como o leite materno está envenenando seus filhos e filhas. Ninguém quer discutir sobre esse assunto, porque são as mulheres que estão sendo violadas. É o direito delas de dar o leite materno para seus filhos que está sendo violado. Isso é grave. Mas querem discutir sobre o crédito de carbono. O grave também é a gente olhar e dizer: “É solução ter mineração nas terras indígenas? É solução ter crédito de carbono?” Ou é uma solução só para a imprensa internacional, para passar uma mensagem para a mídia que está tudo bem? Mas não está tudo bem! Nosso Pará está numa situação grave; a seca no ano passado foi tão enorme que a gente viu os rios sumirem, a gente viu os peixes sendo mortos, a gente respirou fumaça. É isso que o crédito de carbono vai trazer para a gente? Será que vai salvar a gente, a gente vai voltar a respirar? Não vai ter mais desmatamento, mais queimada, não vai ter mais destruição dos territórios com os créditos de carbono? Acreditamos que não; que o mercado de carbono não vai resolver nada disso.
E como você avalia o crescente interesse por atores envolvidos em projetos de crédito de carbono em terras indígenas?
Eles não querem territórios que são do sojeiro, que são das mineradoras, que são das fazendas. Eles querem o quê? Os nossos territórios. Os nossos territórios! Eles querem negociar o nosso ar, mercantilizar o ar que respiramos, nossa floresta. E floresta não é só floresta em pé como eles falam, é a gente, nós povos indígenas que estamos dentro da floresta. Não adianta falar sobre mudanças climáticas se as empresas continuam destruindo. Não adianta falar sobre os povos indígenas, se são a favor do petróleo. Não adianta dizer que salva o meio ambiente, se quer mineração nas terras indígenas.
Diante de tantas ameaças, como você avalia a atuação do governo brasileiro na proteção dos direitos indígenas, especialmente em termos das políticas ambientais e territoriais?
A gente faz o trabalho do governo. Mudança climática tem a ver com petróleo e desmatamento, certo? Pois nenhum governo furou um poço dentro do nosso território. A gente faz o trabalho do governo, fiscalizando o território, porque o governo mesmo não tem coragem. É triste ouvir dizer que não tem dinheiro para demarcar nossas terras, mas tem dinheiro para crédito de carbono. Não temos autonomia mais por conta da Lei 14.701 que estabelece o marco temporal para a demarcação de terras indígenas, impedindo a demarcação de terras que não eram tradicionalmente ocupadas ou disputadas em 5 de outubro de 1988. Isso favorece a ideia que eles dizem que nós não precisamos de consulta. Isso é gravíssimo! Quem é que está brigando para dizer: “Vamos derrubar essa Lei 14.701”? Ninguém! Só os povos indígenas, principalmente o Munduruku, entram nessa briga. E nós estamos lá, com criança, com mulheres grávidas, com os pajés, com os idosos, lá no meio da rua, passando sofrimento. Estão fazendo contratos e contratos em cima das nossas cabeças, sem consulta.

Para encerrar, como você enxerga a realização da COP 30 no Pará, considerando todo esse cenário? Qual deve ser o papel dos povos indígenas, da sociedade e do governo diante desse evento?
A gente nem sabe o que vai acontecer depois da COP 30. O que será? Porque agora está todo mundo focado na COP 30, mas o que será depois? O que vão discutir sobre o nosso território? O que eles vão trazer para nós? Já foram trinta anos de COP, trinta anos dessas conferências, desses líderes mundiais se reunindo para resolver esse problema, que só piora. Porque a cada ano a gente vê mais uma seca. Isso que a gente vê: seca. Isso que a gente vê: fumaça, morte. Os rios estão secando. O que será daqui até novembro, nessa COP? Vão querer botar na mídia que está tudo bem, tudo cheio de floresta, enquanto o povo está lá, tentando apagar o fogo. As comunidades também deveriam se manifestar mais, indígenas ou não indígenas, pessoas da cidade, porque eu vejo que as pessoas da cidade são abandonadas mesmo, não tem uma política, o saneamento básico é precário. Mas estão vendendo o Pará, com todo mundo dentro. Não vai ser só o Pará. Vai ser toda a região do Amazonas, do Amapá, vai ser Mato Grosso, que já quase não tem mais floresta… Mas estão negociando. É preciso questionar essa lei que foi aprovada criando o mercado de carbono no Brasil porque isso não é solução.
Fabrina Furtado é professora do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (UFRRJ/CPDA) e membra do Coletivo de Pesquisa Desigualdade Ambiental, Economia e Política.
Marina Lobo é mestre pelo Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (UFRRJ/CPDA).



