Aos 82 anos, ativista é figura central na articulação de agendas que abriram caminho para políticas públicas no país
Neusa das Dores, a feminista que fez da luta lésbica negra um caminho de reparação e memória
25/11/2025
por
Camila Marins
A ativista Neusa das Dores

Neusa das Dores durante o lançamento da segunda edição da Revista Brejeiras, sobre visibilidade lésbica, na Casa das Pretas, em 2019

| Crédito: Divulgação/ Revista Brejeiras

“Por isso também busco a primeira narração, a que veio antes da escrita. Busco a voz, a fala de quem conta, para se misturar à minha”, escreve Conceição Evaristo no livro Becos da Memória.

Inspirada por Conceição Evaristo, esbocei a lesboescrevivência, como costumo definir a minha escrita com Neusa das Dores, feminista lésbica negra, que aos 82 anos é presidenta de honra da Casa das Pretas, organização que que atua na promoção de liderança e igualdade para mulheres negras.

Comecei a frequentar a casa da idealizadora do histórico 1º Seminário Nacional de Lésbicas no início de 2024, a partir de um convite da coordenadora da Casa das Pretas, de Edmeire Exaltação, para um trabalho de memória, que consistia em visitar Neusa todas as segundas-feiras, lhe mostrar fotos do acervo e legendar por escrito no verso. 

Eu saía do centro do Rio de Janeiro (RJ) em direção a Copacabana, onde me encontrava com Neusa. Ali, a oralidade fez-se lesboescrevivência. Atualmente, Neusa vive acamada e fazemos dessa escavação de arquivos um exercício de memória e reparação à sua luta e à luta de lésbicas negras.

Filha de trabalhadora doméstica, Neusa das Dores, quando menina, sonhava ser piloto de avião. Ouvia que isso era para os meninos. Quis, então, ser aeromoça, mas isso era para as brancas. Nasceu em uma família muito pobre e morou em um barracão de zinco. 

“Quando eu nasci, minha mãe estava muito doente e fomos ajudadas por outras mulheres”, conta Neusa em uma de nossas conversas, que sempre ressalta a sabedoria de sua mãe, que nunca deixou que a filha fizesse o trabalho doméstico nas casas onde trabalhava. “Venho com a minha filha, mas a senhora não vai ter duas empregadas por uma. A minha filha só vai estudar”, relembra. 

Anos depois, Neusa se tornou professora e, diferentemente da maioria das mulheres de sua época, não cumpriu o protocolo de casamento e dona de casa. Durante a ditadura civil-militar, trabalhou na biblioteca da escola e se apaixonou pelas mãos ao volante de uma colega de trabalho. 

No movimento sindical dos professores, Neusa conheceu Lula e ficou admirada. “Ele dizia: ‘professores são trabalhadores junto com merendeiras e com todos os profissionais da educação’, que foi como surgiu o Sepe [Sindicato Estadual de Professores do Rio de Janeiro]. Os professores tinham aquela visão de que não eram trabalhadores, de que estavam em outra classe, como se fossem intelectuais. E somos todos classe trabalhadora”, lembra Neusa.

Oficina sobre “amor entre mulheres” e Lobby do Batom

Na prática, Neusa já articulava uma política interseccional entre raça, classe e gênero, perpassando a luta pelos movimentos sindical, feminista, negro, lésbico.

“Aqui, no Rio de Janeiro, nós fazíamos oficinas sobre ‘amor entre mulheres’ dentro dos movimentos negros e feministas, mas dávamos outros nomes por uma questão de estratégia. Em 1988, no 1º Encontro de Mulheres Negras, em Valença (RJ), eu estava na comissão organizadora. Os homens aqui no Rio de Janeiro fizeram uma reunião com as mulheres pedindo para elas não irem, porque eram um bando de sapatão ou para terem cuidado no banheiro. O encontro era para discutir racismo, mas os caras cismaram que nós iríamos discutir a pica deles”, revela Neusa sobre as lesbofobias que permanecem nos tempos atuais.  

“Como negra, estou em espaços negros e, como mulher, estou junto com muitas mulheres heterossexuais.  Meter o pé ali significava meter o pé enquanto negra e lésbica. Não era fácil, mas eu tive aliadas fantásticas, como a Schuma  [Maria Aparecida Schumacher], Marisa Fernandes, Alice Oliveira” conta.  

Após a ditadura civil-militar, Neusa atuou no Lobby do Batom, durante a Constituinte de 1988, para reivindicar as pautas das mulheres lésbicas. A articulação reuniu deputadas em defesa da ampliação dos direitos das mulheres.

Manifestação de mulheres, que apresentaram a Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes
Manifestação de mulheres, que apresentaram a Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes | Crédito: Reprodução / Câmara dos Deputados

“Meu trabalho sempre foi de impulsionar quem estava na Constituinte. Não fui a Brasília, mas nossas reuniões foram na Uerj [Universidade Estadual do Rio de Janeiro] – que sempre foi nossa aliada – e eram sempre lotadas. Havia as feministas e as feministas negras”, pontua.

Ela ressalta que as políticas dirigidas para as mulheres à época eram principalmente em torno do eixo “não nos matem, não matem nossas mulheres”.

“Não tinha discussão sobre sexualidade, a não ser direito ao aborto. Tinha muita sapatão no Lobby do Batom, quase todo mundo, mas se escondiam. Nós falávamos: amor entre mulheres, amor que não se ousa dizer seu nome e sempre havia os véus.” 

Neusa se empenhou em fortalecer as aliadas que estavam atuando em Brasília e citou especificamente Schuma Schumacher, uma das mulheres da coordenação do Lobby do Batom no Brasil. 

“Estava imbricada a sexualidade no Lobby do Batom e nos juntamos às mulheres”. Já no movimento negro, ela conta que houve complicações, uma vez que diziam que “lésbica e viado eram coisa de branco”. Nessa esteira de mobilização do pós-Constituinte e emergência dos movimentos sociais, Neusa também acompanhou e mobilizou pela campanha de autodeclaração racial do movimento negro. 

“O Censo colocou os pingos nos is com a campanha ‘Não deixe passar em branco’, e tiveram que engolir as cotas. Conduzi algumas plenárias na Uerj. Lembro que estavam pautando apenas 10 a 15%. Eu fui contra, defendi 50% e disse que não abria mão. Coloquei o auditório abaixo e pensava: ‘meu deus do céu, que audácia’. Eu era muito ousada e tinha uma mulherada que me acompanhava, como Jurema Batista, Clátia Vieira. Sempre me acompanharam e me aplaudiram”, recorda Neusa.

Autodeclarada feminista negra e sapatão, Neusa sempre pautou a sexualidade.

“Eu sou uma feminista acima de tudo. Eu amo e respeito as mulheres. No feminismo, as feministas lésbicas sempre se esconderam. As mulheres pretas que trouxeram a sexualidade. Eu pautei no movimento feminista e no negro o tema da aids, feminização e pobreza, e foi a maior discussão. Sexualidade é tabu”, afirma.

1º Encontro de Mulheres Negras Latino-Americanas e Caribenhas

Em 1992, Neusa integrou a delegação de mulheres que participaram do 1º Encontro de Mulheres Negras Latino-Americanas e Caribenhas, realizado entre 19 e 25 de julho de 1992, em Santo Domingo, na República Dominicana. Foi desse encontro que saiu a resolução que deu origem ao 25 de julho, Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha. 

A ativista, coordenadora do Fórum Estadual de Mulheres Negras no Rio de Janeiro e uma das organizadoras da Marcha Nacional de Mulheres Negras, Clátia Vieira, conta que conheceu Neusa no 2º Encontro de Mulheres Negras, época em que começou a participar do Coisa de Mulher. A organização criada por Neusa, que fazia trabalho e formação com mulheres encarceradas, oficinas para mulheres aprenderem a serem pedreiras, chaveiras, dentre outras ocupações. 

“Neusa esteve na República Dominicana, participando das discussões e na sua volta, ela fez reunião com mulheres negras e entregou a demanda de criar o 25 de julho, que ela trouxe como tarefa para o Brasil. Começamos pelo Rio de Janeiro e somos a primeira lei estadual, aprovada na Alerj [Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro]. Foi uma tarefa política que Neusa trouxe do encontro e isso muda tudo – quando pensavam que o 25 de julho era mais um feriado que a ‘negrada queria’. Grande engano, porque queríamos pautar a mulher negra na Casa Legislativa, e foi o embrião para muitas políticas”, destaca Clátia, que guarda carinho e respeito por Neusa, a quem chama de “griot das lésbicas”. 

“Neusa é muito alegre e tem um linguajar sapatão. Além de ela ter aberto caminho e me impulsionado para a faculdade, foi ela quem me ensinou que devemos chegar impactando nos locais e não cairmos no canto da branquitude”, ressalta.

As contribuições de Neusa das Dores também são rememoradas pela antropóloga feminista decolonial Ochy Curiel, mulher lésbica dominicana, que, ao lado da ativista brasileira, também esteve na organização do histórico encontro no país caribenho. Ela conta que as brasileiras eram uma referência para os processos organizativos. 

“Uma das nossas referências fundamentais eram vocês, as brasileiras. Para mim, foi uma escola muito importante porque vocês tinham muito mais experiência em coletivos. Uma das coisas que eu acho que foi um ponto de reflexão foi a organização do 1° Encontro de Mulheres Negras da América Latina e do Caribe. Ou seja, antes do encontro eu já tinha bastante articulação com companheiras no Brasil como Sueli Carneiro, a própria Neusa das Dores”, conta. 

1º Seminário Nacional de Lésbicas 

O ano era 1996 e não havia internet, WhatsApp ou redes sociais para a divulgação de eventos. Tudo era feito na política do boca a boca. Neusa e sua então companheira e namorada, Elizabeth Calvet (já falecida), decidiram organizar o 1º Seminário Nacional de Lésbicas (Senale). O Brasil atravessava, por um lado, o aprofundamento do neoliberalismo e, por outro lado, a resistência e a luta dos movimentos sociais. 

Um ano antes, em 1995, elas fundaram o Coletivo de Lésbicas do Rio de Janeiro (Colerj). Neusa lembra que, à época, havia um grupo de mulheres que queria o nome de “Meninas do Rio”, mas ela foi contra, afirmando que deveriam “mostrar a cara” e se nomear lésbicas. Assim, surgiu o Colerj, a partir da necessidade da criação de um espaço autônomo de discussão, de formação de opinião pública e de pressão política, e que implementasse formas de dar visibilidade às questões das lésbicas e, em especial, das lésbicas negras. 

Mas não foi fácil. Elas não tinham sede, nem estrutura e nem dinheiro para organizarem o encontro. Enviaram cartas cujos selos foram doados por parlamentares; conseguiram emprestado a sala das Abyomi e foram passando o chapéu até conseguir um financiamento do Ministério da Saúde. 

A expectativa era reunir cerca de 30 lésbicas, mas 101 pessoas assinaram a lista de presença, fora as que não assinaram por medo de lesbofobia

A abertura contou com a apresentação cultural da atriz e escritora Elisa Lucinda – que era parceira e aliada do movimento – e do grupo Mulheres de Ilu. Com o tema “Saúde, visibilidade e organização”, o Senale reuniu profissionais da saúde, órgãos públicos  parlamentares, instâncias do Executivo,  movimentos sociais e artísticos com uma programação que debateu desde políticas públicas de saúde, como a questão da aids e a feminização da pobreza até oficinas de poesia e terapia do abraço. 

Divulgação do 1º Seminário Nacional de Lésbicas
Divulgação do 1º Seminário Nacional de Lésbicas | Crédito: Acervo Casa das Pretas

A assistente social Sheila Corrêa foi uma das participantes do seminário. Ela soube do evento ao ouvir, no rádio, o Grupo Atobá anunciar que um coletivo de mulheres lésbicas e bissexuais organizaria o Seminário Nacional de Lésbicas no Rio de Janeiro.

“Entramos em contato com a equipe do Coletivo de Lésbicas do Rio de Janeiro, e foi amor à primeira vista por Neusa das Dores e Beth Calvet. Para quem jamais pensou que pudesse existir um movimento social e político com aquela dimensão, Neusa me mostrou um leque de possibilidades, e pude participar do primeiro 29 de agosto, quando foi criado o Dia da Visibilidade Lésbica. Desde então, ganhei uma amiga para a vida e nunca mais nos separamos”, relata.

Sheila integrou a coordenação do Centro de Documentação e Informação Coisa de Mulher (Cedoicom) e trabalhou com Neusa em uma pesquisa do Ministério da Saúde sobre prevenção às DST/aids, voltada para mulheres profissionais do sexo. Também participou do lançamento da revista Visibilidade e foi coordenadora do Colerj por um período pré-estabelecido.

“Participei ativamente de atividades da Rede Nacional Feminista e elaboramos encontros de mulheres lésbicas e bissexuais na sede do coletivo, sempre pensando em um espaço de acolhimento, escuta e trocas de afetos. Junto com Neusa, trabalhei nos três presídios femininos do Rio e, como devolutiva, elaboramos a cartilha ‘Solto a Voz da Prisão’, com a colaboração das mulheres em privação de liberdade, além de termos realizado um seminário para as agentes prisionais (atualmente denominados Polícia Penal).”

Ela acrescenta que Neusa justificava o seminário ao perceber que a combinação entre “o rígido controle institucional e a presença simultânea do patriarcado e do machismo no sistema prisional”.

Neusa das Dores em passeata com faixa do Colerj, no Rio de Janeiro.
Neusa das Dores em passeata com faixa do Colerj, no Rio de Janeiro. | Crédito: Acervo Casa das Pretas

Lei de combate à LGBTQIAfobia 

Foi no ano do Senale que também foi aprovada a Lei 2.475/1996, de autoria da então vereadora Jurema Batista (PT-RJ), na Câmara Municipal, que prevê a punição de estabelecimentos comerciais por LGBTQIAfobia. 

“Conseguimos aprovar a lei 2.475/96 que eu redigi. E, logo depois, conquistamos o direito de que o benefício previdenciário se estendesse para casais homossexuais no serviço público”, diz Neusa.

A ex-vereadora Jurema Batista, cria do Morro do Andaraí, conta que conheceu Neusa militando no Movimento Negro, nas reuniões do Instituto de Pesquisas das Culturas Negras. 

“Ser parlamentar negra nos anos 1990, defendendo as pautas que eu defendia, não era fácil, e eu combatia e combato a LGBTfobia. Me lembro de Neusa muito à frente da luta e ela dava a linha no meu mandato. Eu a homenageei em vida com a medalha Pedro Ernesto [mais importante honraria do município do Rio de Janeiro], título de cidadã da cidade e diversas moções”, relembra Jurema.  

Abertura do 1º Seminário Nacional de Lésbicas com a então vereadora do Rio de Janeiro Jurema Batista
Abertura do 1º Seminário Nacional de Lésbicas com a então vereadora do Rio de Janeiro Jurema Batista
| Crédito: Alice Oliveira/Acervo Casa das Pretas

Neusa se reconhece com uma grande parceira de Jurema Batista, praticamente uma assessora da ex-parlamentar. 

“Conquistamos a principal lei desse município contra a LGBTfobia. Lembro até hoje que Jurema aproveitou um dia movimentado na Câmara, que os vereadores nem perceberam, e conseguimos aprovar, e eles nem viram. Essa lei serviu de base para outros municípios e estados, e fui eu que assessorei Jurema”, pontua Neusa.

Em 2026, completam-se 30 anos do Senale, com caminhos pavimentado por Neusa, que resultaram em conquistas políticas. A história da ativista lésbica octagenária se confunde com as muitas lutas históricas dos movimentos negros, LGBTQIAPN+, de mulheres e feministas. Honrar a sua história em vida pela lesboescrevivência é um ritual de reparação e memória. 

*Agradecimento especial para Edmeire Exaltação e à Casa das Pretas.

**Reportagem produzida no âmbito do programa de microbolsas de jornalismo Marcha das Mulheres Negras 2025, promovido pelo Brasil de Fato e pela Fundação Rosa Luxemburgo.

Edited by: Geisa Marques

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