Impactos de obras, secas e enchentes mostram como desigualdade estrutural marca a vida de comunidades na região
Da água que some ao rio que engole: violações de direitos expõem racismo ambiental e moldam cotidiano de mulheres negras amazônidas
25/11/2025
por
Hellen Lirtêz
A ativista Jú do Coroadinho, na favela do Coroadinho, em São Luís (MA)

A ativista Jú do Coroadinho, na favela do Coroadinho, em São Luís (MA)

| Crédito: Maria Eduarda Estrela / foto cedida ao Brasil de Fato

“Posso dizer muito firme e certa: a barragem que está a 800 metros do meu território é racismo ambiental e a insegurança do meu povo, gerada por essa barragem, a diminuição do nosso território em prol da mineradora é racismo ambiental. E isso, nós vivemos diariamente.”

A definição da quilombola Carlene Printes encontra respaldo no conceito teórico que define racismo ambiental. Formulado pelo pesquisador estadunidense Robert Bullard e desenvolvido no Brasil por autoras como Tânia Pacheco e Sueli Carneiro, o termo descreve a exposição desigual de populações racializadas, indígenas e tradicionais a riscos e degradações ambientais.

No caso relatado por Carlene, a instalação de uma barragem a poucos metros da comunidade, a perda de parte de suas terras e a insegurança gerada pela presença da mineradora expressam a continuidade de um modelo de desenvolvimento que trata esses grupos como “zonas de sacrifício”. Essa forma de injustiça ambiental é também expressão do racismo estrutural, que historicamente priva esses povos do direito à segurança, ao território e à autodeterminação.

O Quilombo Boa Vista, onde a quilombola vive, está localizado na cidade de Oriximiná, no Pará, próximo à divisa com o Amazonas. Trata-se do primeiro quilombo a receber título coletivo no país, há 30 anos, em 1995. Mas a titulação não bastou para garantir soberania à comunidade. A barragem à qual a moradora se refere fica em uma vila chamada Porto Trombetas e foi implantada em 1970 pela Mineração Rio do Norte. A empresa é uma das maiores produtoras de bauxita do mundo. A matéria-prima é utilizada na produção de alumínio.

“Eu não lembro da minha vida sem a interferência da mineração”, diz Carlene, hoje com 37 anos, que cresceu em meio aos impactos das atividades minerárias da empresa.

Conforme informações do Mapa de Conflitos Envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), entre os danos ambientais causados na região estão a alteração no ciclo reprodutivo da fauna, alteração no regime tradicional de uso e ocupação do território, assoreamento e poluição de recursos hídricos e contaminação ou intoxicação por substâncias nocivas. A presença da atividade minerária também se relaciona a problemas de saúde da população, como doenças não transmissíveis ou crônicas, doenças respiratórias, insegurança alimentar e piora na qualidade de vida.

Barragem em Porto Trombetas, implantada pela Mineração Rio do Norte (MRN), uma das maiores produtoras de bauxita do mundo
Barragem em Porto Trombetas, implantada pela Mineração Rio do Norte (MRN), uma das maiores produtoras de bauxita do mundo | Crédito: Arquivo pessoal / Carlene Printes

Os impactos da mineração se somam ao isolamento da região, o que torna a vida das pessoas que vivem ali ainda mais difícil. Para sair ou chegar ao seu território, Carlene precisa viajar três dias de barco ou pegar um avião até Santarém (PA) e, de lá, mais 12 a 14 horas de barco.

“Tudo é muito difícil. Mesmo assim, quando há vontade política, é possível fazer. Mas quem tem o poder de decisão não busca compreender a diversidade da nossa região. Nas cidades, há acessibilidade, apoio, socorro. Mas dentro das comunidades, principalmente nesse contexto amazônico, é muito complexo”, explica.

O contexto em que as comunidades estão inseridas acentua vulnerabilidades, especialmente no caso das mulheres.

O estudo intitulado “Vulnerabilidade e Saúde de Mulheres Quilombolas na Amazônia” da Faculdade de Saúde Pública (USP), investigou as condições de saúde e os fatores de vulnerabilidade de 139 mulheres em oito comunidades quilombolas localizadas no município de Oriximiná, nas margens do Rio Trombetas. Os dados evidenciaram que elas são acentuadamente fragilizadas devido à confluência de fatores individuais, sociais e programáticos, como o baixo nível de escolaridade, a desigualdade de gênero e o acesso restrito a trabalho e renda.

No entanto, essa vulnerabilidade histórica é agravada pelos danos socioambientais da mineração. Na perspectiva de gênero, as mulheres são as mais atingidas devido às atividades cotidianas de lavar roupas, coletar comida e usar o líquido para cozinhar. A poluição da água e do ar por resíduos de bauxita é estimada como um fator que contribui para os problemas de saúde mais comuns relatados: afecções do sistema tegumentar (74,8%) e problemas respiratórios, como gripes e pneumonias (61,9%).

Para Carlene Printes, a inércia em relação à promoção de melhorias para essas comunidades também vem do apagamento regional e étnico. Enquanto periferias urbanas sofrem com enchentes e secas, mas têm algum acesso a serviços, os quilombos amazônicos enfrentam apagamento de vozes por meio das grandes distâncias e pouco acesso.

“Racismo ambiental é a ausência do Estado nos nossos territórios. É a ausência de políticas públicas, de cuidado, de zelo. É a falta de títulos, de proteção para as nossas lideranças. O tempo que poderíamos dedicar à preservação da floresta, a gente gasta tentando sobreviver diante de ameaças de fazendeiros, arrozeiros, mineradoras e garimpeiros”, diz.

O estudo sobre a vulnerabilidade das mulheres quilombolas conclui que é urgente a necessidade de políticas públicas de saúde e prevenção específicas, culturalmente adequadas à condição de gênero e ao perfil étnico-cultural das quilombolas. Para Carlene, essa precariedade não é um acaso técnico, mas parte de uma estrutura de exclusão.

“A gente não é visto como gente igual aos outros. É aquele povo quilombola ali, jogado à mercê do sistema, assim como lá na época da Lei Áurea. A lógica é a mesma. Nada mudou”, aponta.

A ativista quilombola Carlene Printes
A ativista quilombola Carlene Printes | Crédito: Anderson Borralho / Foto cedida ao Brasil de Fato

Responsabilidade pública

Operando na região, a Rio do Norte (MRN) assume papéis que tradicionalmente seriam de responsabilidade pública em comunidades quilombolas e ribeirinhas impactadas por sua operação de extração de bauxita – como fornecimento de água potável, energia elétrica e apoio à infraestrutura social.

A mineradora obteve a concessão para lavrar bauxita em Oriximiná em 6 de novembro de 1975, por meio do decreto nº 76.559 emitido pelo governo brasileiro.

Em 2024, a mineradora obteve licença prévia do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama) para o Projeto Novas Minas (PNM), que prevê investimentos de R$ 5 bilhões em cinco anos. A ideia seria ampliar a vida útil de sua mina por mais 15 anos, de 2027 a 2042, mantendo a produção média atual de 12,5 milhões de toneladas anuais de bauxita.

O licenciamento foi condicionado à construção do Plano de Gestão Ambiental (PGA) e Plano Básico Quilombola (PBAQ) junto às comunidades dos Territórios Boa Vista e Alto Trombetas II, que busca prevenir, mitigar e compensar os impactos levantados no Estudo de Componente Quilombola.

Conforme relatório divulgado pela empresa, em 2024 a MRN apontou que foi registrada uma taxa de 84% de aproveitamento de água nas operações da MRN. No mesmo ano, a empresa informou ter investido R$ 42,2 milhões em “ações e programas sociais” em 62 comunidades, segundo seu relatório. Em 2025, no primeiro semestre, a MRN disse que o montante de investimento foi superior a R$ 35,5 milhões em iniciativas socioambientais. Questionada especificamente sobre as denúncias de impactos apresentadas na reportagem, a empresa não retornou.

Brasil de Fato também entrou em contato com o governo do Pará e com o Ministério da Igualdade Racial (MIR) para comentar sobre a ausência de infraestrutura nas comunidades da região do Quilombo Boa Vista. Se houver retorno, o texto será atualizado.

Corpo político

Em meio à “estrutura racista” de seu território, Carlene se define como “a mulher que se rebelou”. Hoje, de Belém, capital do Pará, onde cursa universidade, Carlene é coordenadora de Diversidade e Gênero da Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Pará (Malungu) e conselheira titular de Promoção de Igualdade Racial no Ministério da Igualdade Racial. Segundo ela, sua atuação política nasce da ancestralidade e da recusa em aceitar a naturalização da desigualdade.

“Meu corpo é político. Eu fui criada para me tornar liderança, sem saber que estava sendo criada para isso”. Estar na universidade, diz, é parte da luta.

“Eu não estou aqui para ter um diploma, mas para entender como funciona o sistema e poder enfrentá-lo.”

O rio que engole

“Eu sou uma mulher negra e sempre sofri, a gente sempre sofre preconceito, eu sempre sofri preconceito.”

Em 2023, a bibliotecária Edileuza Souza de Alencar, de 58 anos, moradora do Conquista, em Rio Branco (AC), acordou com sua casa alagada pelo igarapé São Francisco. Naquele ano, o bairro foi apenas um dos 36 que alagaram na cidade, sendo que destes, 28 eram periféricos, de acordo com dados da Defesa Civil municipal.

A inundação do Rio Acre prejudicou diretamente mais de 38 mil pessoas de bairros periféricos e comunidades ribeirinhas na capital acreana. O rio ficou a 6 centímetros da segunda maior cota já registrada, de 17,72 metros, e 74 centímetros para a maior marca da série histórica, de 18,40 metros, atingida em 4 de março de 2015.

Rua em que Edileuza Alencar mora em Rio Branco (AC) submersa pelas águas do igarapé São Francisco, em 2023
Rua em que Edileuza Alencar mora, em Rio Branco (AC), submersa pelas águas do igarapé São Francisco, em 2023 | Crédito: Arquivo pessoal / Edileuza Alencar

Edileuza conta que no seu bairro as enchentes ocorrem anualmente. Em 2024, por exemplo, ano seguinte, o rio atingiu 17,89 metros, mas ainda assim, ela descreve a cheia de 2023 como a mais “violenta”.

“Foi uma enchente muito rápida. Acordamos, e a água já estava dentro de casa. Estado de calamidade. Nós já passamos por muitas enchentes assim. No meu bairro, as enchentes vêm todo ano”, relata.

Em 2023, meses após a enchente, a cidade enfrentou a seca, e o Rio Acre ficou abaixo de 1,50 metros. Em 2024, foi registrada a menor cota em 53 anos: 1,23 metros. E, desde então, esse ciclo tem exigido resiliência e adaptação às mudanças do clima.

“Passamos por uma seca terrível, porque os poços secaram. Ficou difícil até para eles mandarem a água, porque o Rio Acre ficou tão seco que ficamos, assim, numa calamidade. Era pouca água que ia para as casas, porque era bem difícil, ficou realmente uma calamidade mesmo”, conta.

De acordo com os dados do Censo Demográfico de 2022, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a Amazônia Legal – composta pelos estado do Acre, Amapá, Amazonas, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins – abriga cerca de 9,8 milhões mulheres negras, considerando as categorias pretas e pardas. Essas mulheres representam aproximadamente 72% da população feminina total da região, proporção superior à média nacional, que é de quase 55%.

Mulher negra e mãe solo, Edileuza se encaixa no perfil de mulheres do estudo da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), divulgado em 2023, que apontou que 56% das famílias chefiadas por mulheres negras reduziram o número de refeições em razão dos efeitos prolongados da seca.

Nutricídio, conceito introduzido pelo médico Llaila Afrika, destaca a relação entre racismo e alimentação, que afeta 6,2% de lares chefiados por mulheres negras no Brasil, revelando a desigualdade alimentar e a urgência de reformas sociais. Isso também significa menos água disponível para uso doméstico: beber, cozinhar, higiene, lavar roupas. Em muitos casos, é necessário ir mais longe para ter acesso ao recurso ou usar água de qualidade duvidosa. O estudo aponta que esses fatores aumentam a carga de trabalho para mulheres, pois elas são tradicionalmente responsáveis pelas tarefas domésticas.

“E aí, gente, veio a fumaça”

Quando Edileuza achou que retornaria ao cotidiano, veio a fumaça. Em 2023, o estado concentrou 91% do total registrado de focos de incêndio em 12 meses. Com isso, a concentração de poluentes no ar respirado na capital acreana estava 40 vezes acima do limite aceitável pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

“Nós passamos tanta dificuldade com a fumaça, tivemos que parar as aulas. Ficamos tempos com as aulas paradas, porque ninguém podia tirar as crianças de casa, os adolescentes”, lembra.

Para Edileuza, tudo o que aconteceu e ainda acontece em looping com ela até hoje está ligado ao lugar onde ela mora e se relaciona ao fato de ser uma mulher negra, o que, para ela, aumenta a invisibilidade. “Por ser mulher negra, a gente sofre mais. Tem gente que consegue ajuda, mas nem tudo chega para a gente”, desabafa.

Fumaça registrada em Rio Branco em setembro de 2024, em decorrência do elevado número de focos de calor
Fumaça registrada em Rio Branco em setembro de 2024, em decorrência do elevado número de focos de calor | Crédito: Foto: Pedro Devani/Secom governo do Acre

A água da torneira é um sonho

“A seca, as enchentes, sempre afetaram a gente. Assim, é transgeracional. Desde a minha avó, que também morou aqui no bairro – uma das primeiras moradoras – a minha mãe e a mim.”

A ativista Kássia Julianna, mais conhecida como Jú do Coroadinho, prenuncia na voz o que milhões vivenciam no Brasil: “Quando alaga, perdemos tudo”. Ela mora no Coroadinho, periferia localizada em São Luís (MA). O que para muitos é “desastre climático” ou “enchente isolada”, para Julianna é história familiar.

“Meu avô pegou enchente, minha mãe perdeu móveis, casas desmoronaram”. E a cada nova chuva, a comunidade reconstitui perdas e medos.

O Coroadinho, é a 8ª maior favela do Brasil e a maior da região Nordeste, com cerca de 51.050 moradores, de acordo com o Censo de 2022 do IBGE. A favela também se destaca por ser a sexta maior em extensão territorial no país.

Ela nasce às margens do rio Bacanga, cortada pelo rio das Bicas. Algumas das maiores áreas de preservação da região estão no Coroadinho, mas a comunidade não possui parques ambientais. Sobre a realidade invisível das periferias, Julianna descreve que no Coroadinho muitas casas não têm água encanada: dependem de poços artesianos ou da compra do recurso.

“Significa não conseguir tomar um banho. A minha mãe, para ter água dentro de casa, vai ter que colocar um poço ou muitas vezes encher [um recipiente e trazer] água na cabeça, ou, por muitas vezes, não vai conseguir sair de casa porque aquela rua está alagada”, conta.

Universalizar a água tratada é um dos objetivos da justiça climática. Reduzir perdas, ampliar cobertura e garantir qualidade estão entre as metas do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 6 estipulado pela Organização das Nações Unidas (ONU).

Para Julianna, não dá para falar de clima sem falar de racismo e nem falar de racismo sem falar de gênero. Racismo, gênero e desigualdade, segundo ela, estão entranhados em cada casa que inunda, cada torneira seca ou cada esgoto a céu aberto. A vivência no bairro mostrou para a moradora que o racismo ambiental incide com intensidade particular sobre mulheres negras nas periferias.

“Nós, mulheres negras, estamos na base da pirâmide. Enfrentamos racismo, machismo, desigualdade social. Estamos tentando sobreviver”, diz.

Na região do Coroadinho, um laudo pericial judicial do Ministério Público do Maranhão determinou que “a precária rede não chega a 50% das áreas periciadas e, nas áreas que existe, chega a atender apenas 7% das moradias”.

Em decisão judicial de novembro de 2024, o Tribunal de Justiça do Maranhão (TJMA) confirmou que a Companhia de Saneamento Ambiental do Maranhão (Caema) e a prefeitura do município têm obrigação solidária de construir rede de esgoto no polo Coroadinho, no período de cinco anos, sob pena de multa. A sentença cita que, em bairros vizinhos (Parque dos Nobres e Pindorama), 100% dos imóveis não contam com rede de esgoto funcional, evidência da precariedade estrutural. O Brasil de Fato procurou a Caema e a Prefeitura de São Luís para obter informações sobre o andamento das obras, mas até o fechamento dessa reportagem não houve resposta.

Esgoto a céu aberto na favela do Coroadinho
Esgoto a céu aberto na favela do Coroadinho | Crédito: Maria Eduarda Estrela / Foto cedida ao Brasil de Fato

“Tudo isso para mim é racismo ambiental: quando a coleta de lixo não passa, e nossas tias queimam o lixo no quintal. Há um acúmulo de desigualdade também, de racismos, que vão proferindo, alcançando essas mulheres negras. Eu trago muito a reflexão das mulheres negras da minha família”, destaca em referência à perpetuação dos desafios enfrentados há gerações.

“Sonhamos, sim, com a política de reparação, com a política de acessibilidade para as periferias, com políticas de moradia, com políticas de proteção ao território. A gente sonha com política de saneamento básico, que é o básico, acessar a água, ter acesso a água, ali na torneira, sem ser água de poço artesiano. A gente tem sonhos, né? Sonhos do bem viver”, ressalta.

Para resistir às violências raciais e ambientais no Coroadinho, Julianna fundou A Casa das Pretas, que trabalha contra todas as formas de desigualdades, preconceitos e discriminações que afetam diretamente as mulheres negras. O coletivo atua, entre outras frentes, na preparação da comunidade para emergências climáticas.

“Preparar lideranças comunitárias para serem líderes climáticos, porque a galera que tá no território sempre soube o que é desastre ambiental, o que é justiça climática, o que é racismo ambiental, talvez não com esses nomes, mas sabe na pele, no dia a dia, o que é passar por todos esses atravessamentos, essas injustiças, essa falta de acesso”, pontua.

Da COP à Marcha das Mulheres

O tema da justiça climática ocupa lugar de destaque na 2ª Marcha Nacional das Mulheres Negras, realizada nesta terça-feira (25) em Brasília (DF). No manifesto “Quando a Terra Clama, Somos Nós”, as organizadoras denunciam que a crise climática não é neutra: ela atravessa cor, gênero e território para atingir de forma desproporcional mulheres negras, quilombolas, comunidades tradicionais e periféricas. Segundo o texto, a poluição — seja por queimadas na Amazônia, pela contaminação da água e do solo por agrotóxicos, ou pela mineração predadora — é parte de um “modus operandi do racismo ambiental”.

A pauta da justiça climática na marcha reflete também uma proposta de reparação concreta: o manifesto exige que o Estado reconheça o racismo ambiental como eixo central de políticas públicas, garantindo direitos básicos como ar limpo, água potável, alimentação saudável e uma vida digna para populações negras, indígenas e historicamente excluídas.

Na esteira dessas lutas, a COP 30, realizada em Belém, representou um passo histórico: pela primeira vez, os documentos finais da conferência citaram explicitamente os afrodescendentes em temas centrais como Transição Justa, Plano de Ação de Gênero, Objetivos Globais de Adaptação e no “Mutirão” das negociações. Além disso, na Cúpula de Líderes, foi assinada a Declaração de Belém de Combate ao Racismo Ambiental, com participação direta de chefes de Estado e articulação do Ministério da Igualdade Racial.

Esse reconhecimento formal dos impactos específicos enfrentados por populações negras abre caminho para políticas climáticas mais inclusivas, embora ainda haja demanda por ações concretas que traduzam esse avanço discursivo em justiça material.

Para a liderança quilombola e agricultora ribeirinha Claudete Costa, conselheira do Instituto Mapinguari e presidente da associação dos agricultores do Curiaú (AP), essa lacuna se traduz na falta de escuta real.

“Você não enxerga dentro da comunidade nenhuma política afirmativa. Dão alguns cursos, dão algumas formações, porém eles não vêm fazer a escuta da comunidade. Porque o que vale de uma política pública é ela ser afirmativa, ela precisa ter a escuta da comunidade. Se não tem a escuta da comunidade, não tem como essa política ser afirmativa”, atesta.

Segundo Claudete, para combater o racismo ambiental na Amazônia contra mulheres negras, o que se precisa desenvolver não é apenas a política — mas o cidadão que possa enxergar e escolher essas políticas como ferramenta de mudança.

“As políticas afirmativas que vêm para dentro das comunidades vêm com cunho partidário. Ela não é uma política social ou de governo; ela é uma política de partido.”

Nos últimos anos, o governo federal brasileiro retomou a articulação de uma agenda voltada ao enfrentamento do racismo ambiental e à promoção da justiça climática no âmbito da Amazônia Legal.

Em 2023, com a criação do Ministério da Igualdade Racial (MIR), políticas públicas foram retomadas com enfoque racial, ainda que sem o recorte específico de gênero. Em agosto de 2023, foi instituído o Comitê de Monitoramento da Amazônia Negra e Combate ao Racismo Ambiental, em parceria entre o MIR e o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA).

O colegiado foi criado como instância interministerial e participativa, voltada a formular medidas concretas que priorizem populações negras e tradicionais atingidas por desmatamento, secas e enchentes.

*Reportagem produzida no âmbito do programa de microbolsas de jornalismo Marcha das Mulheres Negras 2025, promovido pelo Brasil de Fato e pela Fundação Rosa Luxemburgo.

Editado por: Geisa Marques

Mais recentes