Proposta de exploração petroleira na Margem Equatorial, especialmente na bacia da Foz do Amazonas, revelou uma resistência aguerrida e o processo se tornou uma controvérsia
A expansão da fronteira petroleira na Amazônia brasileira
26/08/2025
por
Bianca Dieile da Silva
Este artigo também foi publicado no Le Monde Diplomatique Brasil, em uma parceria editorial que busca ampliar o debate sobre justiça climática. Trata-se de uma versão reduzida; o texto completo pode ser lido no livro Mineração, petróleo e bioeconomia. A publicação integra a coleção Politizando o Clima, editada pela Fundação Rosa Luxemburgo em parceria com a Editora Funilaria. A série reúne quatro volumes que questionam as soluções climáticas hegemônicas e denunciam os impactos da financeirização da natureza sobre territórios do Sul Global.

O mundo anda mesmo muito diferente e deve ficar mais hostil para a nossa existência em razão da crise climática. As principais causas já conhecemos: a extração e a queima exacerbada de combustíveis fósseis que, além deste impacto global, produzem inúmeros outros, como poluição do ar e da água; acirramento dos conflitos com comunidades tradicionais; e a piora dos determinantes socioambientais de saúde, com os recorrentes vazamentos, incêndios e explosões.

Nunca se consumiu tanto petróleo como agora; são 100 milhões de barris consumidos por dia. Ou seja, apesar de todos os problemas socioambientais, a expansão petroleira segue profunda e agressiva, em escalas sempre maiores e definidas pelo ritmo do capitalismo. O seu alastramento rompe novas fronteiras territoriais, em locais nunca explorados, e perfura em profundidades jamais alcançadas.

As atenções agora se voltam para a costa do extremo norte da América do Sul, em países como Brasil, Guiana e Suriname, em uma região conhecida como Margem Equatorial. No entanto, a proximidade desta nova fronteira com a Amazônia tem gerado discussões.

A Amazônia é o local do mundo mais rico em água doce tanto superficial como subterrânea, com 20% de toda a reserva mundial. Mantém ainda uma cobertura florestal considerável, além do maior rio do mundo em vazão de água. Essas características definem seu papel fundamental nos fluxos hídricos do país com os seus rios voadores.[1] Por sua relevância na discussão ambiental do país, e do mundo, a região foi escolhida pela primeira vez para ser sede, no final de 2025, da 30ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas, a COP 30, em Belém. A partir da manifestação de diversos setores da sociedade, pode-se entender melhor a trama territorial transescalar que envolve a exploração de petróleo na Margem Equatorial.

Narrativas governamentais

No Brasil, há uma crença muito forte no petróleo como saída para os problemas sociais. Em 2008, o presidente Lula anunciou a descoberta das reservas na camada do pré-sal da seguinte forma: “Deus não nos deu isso para que a gente continue fazendo burrice. Deus deu um sinal. Mais uma chance para o Brasil”. Essa relação entre a descoberta de bens minerais, a empolgação e o divino é relatada por vários autores, como Horacio Machado Araoz. Ela tem servido para legitimar de forma incontestável a necessidade de sua capitalização.

O principal argumento para a exploração do petróleo do pré-sal era a redistribuição das rendas estatais para ações principalmente de saúde e educação. Atualmente, foram incluídas novas possibilidades de destinações, como a mitigação e adaptação às mudanças climáticas e às calamidades. Assim nos tornamos reféns: “temos” que produzir mais petróleo para podermos nos adaptar aos impactos gerados pela queima dos combustíveis vindos dele.

Com o pré-sal, o Brasil anda em uma escalada na produção marcada com recordes como o de novembro de 2024, de 4,3 milhões de barris por dia. Não sobra muito tempo para discutir impactos diante da pressa da Petrobras, que planeja se tornar a terceira maior petroleira do mundo até 2030, segundo seu ex-presidente Jean Paul Prates, que, empolgado, disse que a companhia vai até a última gota de petróleo.

Diante da crítica a essa pressa, que não é só brasileira, os apoiadores da expansão fóssil na Margem Equatorial lembram os países do Norte global já emitiram muito mais gases do efeito estufa. A produção crescente de petróleo pela Guiana, que fortemente inspirou o Brasil, é baseada nesse argumento.

Crédito: Divulgação Petrobras (2005)

Narrativas do setor petroleiro

Diante da crise climática, para resistir à sua inevitável extinção, ou redução, o setor fóssil reorganiza as suas narrativas. Estas buscam tirar as petroleiras do papel de causadoras do problema para parte da solução, ou seja, responsáveis pela transição justa. Depois das promessas de desenvolvimento social pelo pré-sal, a justificativa agora é gastar os novos recursos do petróleo da Margem Equatorial para fazer a transição energética justa. Nessa linha, a apresentação do Plano Nacional de Transição Energética traz o seguinte enunciado: “O reconhecimento do papel do petróleo na transição energética não reduz em nada nosso compromisso em criar as infraestruturas e soluções de baixo carbono!”

Pensar que os setores petroleiro e estatal, mesmo que seja a Petrobras, vão alterar seus modos de produção de energias voluntariamente parece muito improvável. Primeiro é importante lembrar que a indústria fóssil ampara e fomenta em grande escala o negacionismo climático e mantém estruturas de negação também relacionadas aos impactos locais das suas atividades (Oreskes e Conway, 2010). As petroleiras em geral mantêm um complexo sistema de legitimação ao utilizar ferramentas que reduzem os esforços para a transição energética. A própria Petrobras resiste em ampliar seu portfólio de energias renováveis e tem se tornado cada vez mais voltada aos fósseis, como descrito no seu Plano Estratégico 2024-2028. Petroleiras transnacionais como a BP (British Petroleum Company), a Shell e a Equinor já recuaram nos seus planos de transição energética.

Além disso, elas participam intensamente enquanto grupo das discussões sobre mudanças climáticas, como nas conferências do clima organizadas pelas Nações Unidas. Segundo a coalizão internacional Kick Big Polluters Out, estima-se que foram mais de 7.200 lobistas do setor nos últimos vinte anos. Esse grupo atrasa as ações de restrição às atividades dessas empresas e cria falsas soluções, como o arranjo matemático das emissões líquidas zero, quando emissões são compensadas com projetos que, teoricamente, absorvem carbono.

Outra falsa solução é a injeção de gás carbônico no subsolo. É uma técnica cara que consome muita energia e não garante segurança nem a estabilidade do carbono no subsolo. O projeto Merluza da Petrobras, na bacia de Santos, feito para estudar a captura e estocagem de gás carbônico, apresentou vários problemas, inclusive de viabilidade econômica, pois o tempo e os aparatos de monitoramento tornam o processo desafiador. Além de não resolver o problema definitivamente, as empresas se responsabilizariam por estes reservatórios cheios de COpor um período de até quarenta anos. E depois? Espera-se que o poder público assuma esses passivos, ou seja, eles lucram e nós pagamos.

Outra estratégia para minimizar os riscos climáticos é mostrar somente parte da informação. É o que acontece na Margem Equatorial, quando se contabiliza somente a etapa de produção. Assim, comparado com outras reservas, este petróleo seria prioritário porque emite menos CO2. No entanto, ignora-se que ele vai ser queimado uma hora, e daí sairá a maior parte da sua emissão. Sobre os impactos locais, há um esforço em reduzir todos os riscos a um único cenário, associado somente à perfuração de um poço, principal objeto do licenciamento ambiental. Sem considerar que um poço nunca vem sozinho. Assim, não se reflete sobre as complexidades do local, como as fortes correntezas de suas águas. A Petrobras já teve problemas com isso com a perda de uma sonda em 2011, a 110 km do Oiapoque.

Sobre os riscos de vazamentos, a Total, petroleira francesa que tentou a licença ambiental na Margem Equatorial, não conseguiu comprovar sua capacidade de contê-los em um cenário de ventos e correntes de água fortes, e já se retirou da bacia. Outra questão é que o poço está em um território, ou, neste caso, em um maretório com muita atividade pesqueira e emaranhado com um complexo sistema de marés e floresta. Mais gente chegando, mais infraestrutura, mais barcos, mais poluição, menos biodiversidade e com o boom populacional desigual que o petróleo traz. Depois vem a construção de imensas infraestruturas de apoio e, assim, a floresta tende a ser substituída, seja por cidade, seja por outras atividades para a própria indústria, como refinarias, dutos de transporte e portos.

Uma retrospectiva dos projetos petroleiros na Amazônia em terra também nos traz elementos de reflexão. A produção de petróleo em florestas úmidas é um desafio técnico. No Equador, por exemplo, a Texaco (que foi comprada pela Chevron em 2001) causou uma contaminação imensa pela perfuração de poços de maneira errônea e sem medidas de controle ambiental na década de 1980. O petróleo ainda está espalhado na área e a empresa foi condenada; apesar disso, ela se retirou do país, tornando a sua responsabilização quase impossível (Haller et al., 2007).

Em terras brasileiras, a primeira operação na Amazônia foi há trinta anos: a de Urucu, no município de Coari. Pelo menos dois grandes vazamentos ocorreram: um em 2001, quando 55 mil litros de petróleo vazaram em um duto e contaminaram um dos afluentes do rio Urucu. Em 1999, havia acontecido outro vazamento, ainda maior, com um derramamento de aproximadamente 70 mil litros de petróleo.

Há outros estados amazônicos que já estiveram no foco petroleiro, como o Acre alguns anos atrás, onde os irmãos Viana fizeram vários esforços no campo político. Foram tantos que, em 2013, a Petrobras chegou a comprar um bloco no Estado. Porém a ideia sofreu resistência institucional e local e até hoje a extração de hidrocarbonetos não aconteceu, comprovando que nem sempre as alianças políticas são capazes de vencer as resistências.

Resistências internas e externas

A possibilidade de expansão da indústria petroleira na costa próxima à Amazônia sofre uma resistência antiga, expressa na própria estrutura de controle ambiental no nível federal, o Ibama, que apesar de ter aprovado a inclusão dos blocos, negou por um tempo as licenças ambientais. Para a bacia da Foz do Amazonas, em seus pareceres, há uma série de justificativas, como a sensibilidade socioambiental local e o risco de perda de biodiversidade, além da pouca capacidade de resposta em caso de vazamentos. A Petrobras insistiu na busca pelo licenciamento ambiental do Bloco FZA-M-59, mesmo depois de a BP ter desistido dele em 2021.

Em maio de 2023, o Ibama indeferiu o pedido de licença ambiental feito pela Petrobras para perfuração do poço no bloco FZA-M-59, mas a empresa recorreu e o processo foi reavaliado. No início de 2025, técnicos do órgão emitiram um parecer não recomendando o licenciamento. Diante desse ato, houve uma reação do mundo político. O presidente Lula, apoiador da exploração, prometeu a Davi Alcolumbre, presidente do Senado, que ela seria feita. Para aumentar a pressão política sobre o Ibama a favor da petroleira, em fevereiro de 2025, o presidente Lula cobrou diretamente um posicionamento, insinuando que o órgão estava contra o governo. A aprovação da licença ambiental para a exploração veio em maio de 2025.

Agora são esperadas outras etapas que ainda não foram cumpridas, como as consultas prévias livres e informadas aos povos originários, conforme previstas na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho. A crítica dos povos tradicionais à expansão petroleira é antiga e já foi expressa inúmeras vezes por seus representantes locais. A resistência ao projeto se amplia e hoje abrange movimentos ambientalistas e climáticos,[2] e uma ampla articulação que envolve a classe artística e entidades religiosas. Cientistas também se posicionam contra, como Philip Fernside, um dos mais influentes no mundo no tema das mudanças climáticas, que trabalha no Instituto Nacional de Pesquisa Amazônica e escreveu um contundente editorial na revista Science. Ele define a proposta de expansão petroleira na Amazônia como uma fórmula para um desastre climático.  

Como resultado da ampliação do debate, foi apresentado o Projeto de Lei 1725/2025, pelo deputado federal Ivan Valente, que busca impedir a oferta de novos blocos de exploração de petróleo e gás na Amazônia e obriga a recuperação ambiental nas áreas com atividades de produção desses hidrocarbonetos na região.

Assim se inicia um caminho de esperança. Recentes resistências territoriais aos empreendimentos fósseis, principalmente em áreas com alto risco ambiental ou uma rica biodiversidade, têm acumulado algumas vitórias, mesmo no Brasil. A ideia ventilada em 2013 de fazer fracking[3] no Paraná mobilizou diversos setores a buscar a sua proibição em forma de lei, o que hoje é realidade lá e em Santa Catarina (Silva, 2024). Outro exemplo foi a mina de carvão de Guaíba, no Rio Grande do Sul, projeto abandonado diante da resistência motivada pelos inúmeros riscos locais e climáticos. Outra proposta que sucumbiu foi a exploração de petróleo em campos no mar da Bahia, próximos a Abrolhos, feita em 2019.

A conservação da água e da biodiversidade e a presença de povos originários têm se mostrado como bons motivos para limitar o avanço da exploração de combustíveis fósseis no mundo todo. Cada vez mais, novas áreas são apontadas como sensíveis socioambientalmente e deveriam ser mantidas como livres de petróleo. Inspirados nessa premissa, pesquisadores fizeram um mapa mundial com as reservas de petróleo que nunca deveriam ser exploradas, entre elas, parte da Margem Equatorial. Assim, novas iniciativas conjuntas vão se articulando, como a que tivemos em 2022, na COP 27, com a apresentação do Tratado de Não Proliferação de Combustíveis Fósseis.

O futuro é ancestral, como afirmam Ailton Krenak e Katiúscia Ribeiro. Se não aprendermos outros caminhos a partir das experiências dos povos originários amazônicos das águas e das florestas, e dos quilombolas que convivem com este território/maretório de forma mais sustentável, corremos o risco de impor um modelo já falido para uma região com um potencial enorme de seguir outras trajetórias. Eles já nos apontaram um caminho melhor, devíamos nos juntar a eles.

*Bianca Dieile da Silva é pesquisadora em Saúde Pública do Departamento de Saneamento e Saúde Ambiental da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Bacharel em Química (UNESP) com mestrado em Engenharia Sanitária (USP) e doutorado em Planejamento Urbano e Regional (UFRJ).


Referências bibliográficas

HALLER, Tobias; BLOCHLINGER, Annja; JOHN, Markus; MARTHALER, Esther;

ORESKES, Naomi; CONWAY, Erik M. Merchants of doubt: how a handful of scientists obscured the truth on issues from tabacco smoke to global warming. New York, NY: Bloomsbury Press, 2010.

SILVA, Bianca Dieile. No Coração da Terra: a controvérsia do fracking no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Letra Capital, 2024.

[1] Os rios voadores são “cursos de água atmosféricos”, formados por massas de ar carregadas de vapor de água que são propelidas pelos ventos. Essas correntes carregam umidade da Bacia Amazônica para o Centro-Oeste, Sudeste e Sul do Brasil, atingindo até mesmo outros países.

[2]  WWF-Brasil, Arayara.org, Observatório do Clima, ClimaInfo, 350.org, Iepé, Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Amapá e Norte do Pará (Apoianp) e Conselho de Caciques dos Povos Indígenas do Oiapoque (CCPIO).

[3] Fracking ou “fraturamento hidráulico de alta pressão” é uma técnica de extração de gás natural de reservatórios não convencionais, ou seja, mais fundos. Muitos territórios proibiram o seu uso depois de ver o que se passou nos Estados Unidos e na Argentina, onde a técnica já foi utilizada. Lá os impactos são diversos e cumulativos, principalmente pelo consumo excessivo e poluição da água.

Mais recentes