Documentário reflete sobre o transporte público como eixo de exclusão urbana e racial e apresenta a tarifa zero como alternativa concreta de justiça social e ambiental
A mobilidade como projeto de vida digna
16/06/2025
por
Katarine Flor

Publicado no Le Monde Diplomatique

“O que melhor define o transporte público hoje é o cansaço.” A frase introduz o minidocumentário Tarifa Zero: cidade em disputa. Ela resume não apenas a experiência cotidiana de milhões de brasileiros, mas também a lógica brutal que estrutura as cidades brasileiras. Trata-se de um sistema que consome o tempo, a energia, a renda e a saúde de quem depende do transporte coletivo para trabalhar, estudar, acessar o lazer ou, simplesmente, viver. 

Produzido pela Fundação Rosa Luxemburgo em parceria com o Brasil de Fato, o filme documenta com sensibilidade e rigor analítico a rotina de usuárias e usuários que passam até cinco horas por dia em trânsito. Atravessam linhas lotadas, esperam ônibus que não chegam, gastam um terço do salário com passagens, enfrentam insegurança, sobrecarga e o apagamento de sua dignidade. O minidoc, porém, não se limita às denúncias. Ele aponta para alternativas concretas. 

Tarifa zero como proposta política 

A tarifa zero, proposta central da narrativa, aparece como peça chave de uma transformação ampla: não só do modelo de mobilidade, mas da relação entre cidade e cidadania. Ao eliminar o custo direto do deslocamento, amplia-se o acesso a serviços, oportunidades e ao próprio direito de circular. Mais do que uma medida técnica, trata-se de uma escolha política: colocar o bem-estar coletivo acima dos interesses privados. A quem interessa manter as catracas fechadas? 

A produção inclui entrevistas com Lúcio Gregori, ex-secretário de Transportes de São Paulo durante a gestão de Luiza Erundina, conhecido por idealizar o projeto Tarifa Zero; Gisele Brito, coordenadora da área de Clima e Cidade do Instituto de Referência Negra Peregum; Jô Pereira, presidenta da União de Ciclistas do Brasil; Daniel Santini, mestre e doutorando pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e coordenador na Fundação Rosa Luxemburgo; e Elisangela Paim, coordenadora do Programa de Clima e Energia na América Latina na Fundação Rosa Luxemburgo, além de usuários e especialistas que ajudam a compreender como a atual estrutura de mobilidade urbana reforça desigualdades profundas. 

Mobilidade, saúde e justiça social 

O documentário discute ainda os impactos profundos da tarifa nas diversas dimensões da vida urbana. O acesso ao trabalho, à escola e ao lazer torna-se mais viável quando o custo do transporte não consome parte significativa do salário – realidade para muitas mulheres negras, mães solo, jovens e trabalhadores periféricos. A dificuldade de deslocamento também tem efeitos diretos na saúde mental e física das pessoas, que enfrentam longas jornadas diárias sem tempo para descanso, cuidado pessoal ou convivência social. 

As consequências do transporte precário se espalham: alimentação comprometida, sono insuficiente, ausência de tempo para o autocuidado, isolamento social e sofrimento psíquico são efeitos colaterais que se acumulam. O transporte público caro impacta, ainda, o acesso à saúde: consultas são desmarcadas, exames são adiados, terapias são interrompidas porque não há como pagar a passagem. A tarifa zero, nesse contexto, aparece como política redistributiva, que amplia o acesso não só à cidade, mas à vida com dignidade. 

Crédito: Guilherme Santos/Sul21

Racismo e urbanismo segregador 

O filme escancara o papel do transporte na manutenção de um modelo de cidade racialmente e socialmente segregado. São as pessoas negras, pobres e periféricas que enfrentam os maiores deslocamentos, as piores condições de viagem e o maior custo relativo. A lógica de distribuição dos modais – ciclovias, metrô, bicicletas e patinetes compartilhados – revela um planejamento urbano feito sob a ótica da branquitude e da elite econômica, voltado a atender prioritariamente os territórios centrais. 

Ao tratar o transporte público como instrumento de dominação social, a obra denuncia as catracas como símbolos de um racismo estrutural urbano. A segregação territorial é um eixo estruturante da desigualdade, que impede grande parte da população de acessar os bens comuns da cidade. 

A falácia do carro elétrico e a crise ambiental 

No plano ambiental, o filme faz um contraponto essencial à lógica dominante da “modernização verde” baseada na eletrificação da frota individual. A substituição de carros a combustão por veículos elétricos é apresentada de forma crítica, ao mostrar que essa transição, quando descolada da mudança no modelo de mobilidade, apenas desloca os impactos socioambientais para outros territórios. A produção de baterias, baseada na mineração intensiva de lítio, gera novas zonas de sacrifício – frequentemente em comunidades do Sul Global. 

Além disso, o documentário denuncia o colonialismo verde interno: o uso da retórica ambiental para justificar soluções técnicas centradas no transporte individual, sem enfrentar as causas estruturais da exclusão urbana. A transição modal – do individual para o coletivo – é apresentada como a única alternativa real de sustentabilidade, justiça social e saúde pública. A tarifa zero, nesse sentido, não é apenas uma medida de gestão de mobilidade: é um projeto civilizatório. 

Tarifa Zero: Cidade em Disputa é um convite a imaginar. E a construir, com coragem e consciência, cidades verdadeiramente nossas. 

Exibições confirmadas: 

  • 6 de junho, 16h30: Lançamento na I Conferência Internacional Tarifa Zero e Saúde Pública — Mariana (MG). Clique aqui e confira a programação completa! 
  • 23 de junho, 9h30 às 12h: Exibição seguida de debate na PUC Minas — Campus Lourdes, Belo Horizonte (MG).  Auditório 1 | Prédio 1 | Rua Sergipe, 790 – Bairro Funcionários, Belo Horizonte (MG) Realização do evento: Psicologia Lourdes, Faculdade de Psicologia, Arquitetura PUC Coração Eucarístico e PUC Lourdes. Apoio: Núcleo Anne Frank, PROSA e Fórum das Juventudes da Grande BH. Produção do documentário: Fundação Rosa Luxemburgo e Brasil de Fato.
  • 17 de julho, 17h: Exibição na Cinemateca Brasileira, Sala Oscarito — São Paulo (SP). A atividade é realizada em parceria com a Cinemateca Brasileira e com a Sociedade Amigos da Cinemateca (SAC). 
  • 24 de julho, 18h: Exibição especial na Casa Carlito Maia — Sede do Brasil de Fato, São Paulo (SP) 
  • 22 de setembro: Sessão especial no Dia Mundial Sem Carro, com transmissão ao vivo pelos canais da Fundação Rosa Luxemburgo e do Brasil de Fato no YouTube 

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