Em evento em São Paulo, o filosofo italiano Toni Negri e o economista equatoriano Alberto Acosta trocam impressões, a partir de suas reflexões mais recentes, sobre o papel e a força de movimentos emancipatórios anticapitalistas no Norte e no Sul global
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A multidão de Negri, o Bem Viver de Acosta e um árabe no centro
04/11/2016
por
Verena Glass

Em evento em São Paulo, o filósofo italiano Antonio Negri e o economista equatoriano Alberto Acosta trocam impressões, a partir de suas reflexões mais recentes, sobre o papel e a força de movimentos emancipatórios anticapitalistas no Norte e no Sul global

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Antonio Negri (centro) e Alberto Acosta (direita) no restaurante Al Janiah

Por Verena Glass (texto e fotos)

Na noite de 26 de outubro, o pequeno restaurante Al Janiah, localizado numa ruazinha escura no centro de São Paulo nas cercanias do metrô Anhangabaú, estava abarrotado. Chuviscava lá fora, e dentro uma pequena turba alegre e ruidosa se acotovelava, se misturava e atravancava as vias entre mesas e cadeiras, tornando quase impossível o atendimento “normal” da clientela faminta. Cerveja se pedia diretamente no balcão, mas assim que a garrafa chegava à mesa, qualquer um que a alcançasse se servia sem cerimônia nem preocupação sobre como seria paga a conta.

Na maior mesa, onde iam sentando e levantando num fluxo contínuo boa parte dos presentes, apenas duas figuras mantinham assento cativo. De frente para a porta, o filósofo italiano Antonio Negri, 83 anos, dava atenção, sempre gentil e sorridente, a quem puxasse conversa à sua direita ou esquerda. Do lado oposto, de cara para o balcão, o economista, ex-ministro e ex-presidente da Assembleia Constituinte equatoriana, Alberto Acosta, 68 anos, seguia o exemplo. Quando havia tempo, trocavam algumas palavras enquanto se serviam de pita com homus de um prato entrincheirado entre ambos, cujo conteúdo era disputado por quem mais estivesse ali naquele momento.

O pequeno pedaço de tempo que juntou Negri e Acosta em um espaço criado e gerido por refugiados palestinos – o Al Janiah se tornou símbolo de resistência e solidariedade entre migrantes e seus apoiadores em São Paulo – se configurou como que numa mágica conjunção e confirmação das duas teses – nem sempre convergentes – que cada um vem trabalhando no último período, e que, pouco antes, haviam debatido no evento-diálogo “A Revolta da Multidão e a Constituição do Bem Viver”, na Biblioteca Mario de Andrade.

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Negri: “Levantes organizaram a multidão contra o capital financeiro e sua centralização do poder”

Em parceria com Michael Hardt, Negri escreveu uma trilogia (Império, Multidão e Bem-estar comum), apresentando novas teses para o debate sobre como pensar a política e as revoltas no mundo de hoje. Entre os temas mais candentes, e que abriu o diálogo com Acosta naquela noite, destaca-se a questão: como entender os levantes recentes da chamada Primavera Árabe? Como esses fenômenos dialogam com os movimentos Occupy, nos EUA, ou os Indignados na Espanha? Qual o papel destas revoltas na reconfiguração das lutas emancipatórias e anticapitalistas da atualidade?

Para Negri, a motivação das insurgências massivas na Europa e nos Estados Unidos transpassou – só que de forma mais potente – os levantes nos países árabes: a busca da liberdade em termos mais radicais, de uma forma como nunca havia ocorrido antes. Um movimento que visava destruir uma restauração autoritária, totalitária, religiosa e liberal para os ricos. Que questionou o poder acumulado na mão do capital transnacional e o consequente enfraquecimento das democracias. Um levante contra o capital financeiro e sua centralização do poder, perpetrado não por uma massa indistinta, mas por uma camada de pessoas com estudo e alto nível de formação (principalmente na Síria e no Egito), onde cada singularidade poderia se expressar e se tornar uma manifestação política. Mas também um levante que resultou em um dos mais brutais processos de repressão, e, consequentemente, na pior crise humanitária da história recente frente a onda de migrações forçadas pela guerra.

Mas o fenômeno das mobilizações massivas em si desafia a pensar sobre o que simbolizam, em termos de força política, as revoltas recentes no mundo, propõe Negri. Ou seja, se, como escreveu, “a multidão é composta de inúmeras diferenças internas que nunca poderão ser reduzidas a uma unidade ou identidade única – diferentes culturas, raças, etnias, gêneros e orientações sexuais; diferentes formas de trabalho; diferentes maneiras de viver; diferentes visões de mundo; e diferentes desejos”, nos tempos atuais não é mais possível pensar a sociedade em temos de classes homogêneas, em operariado de chão de fábrica; mesmo porque hoje se trabalha de forma criativa, cognitiva (“mesmo quando se é comandado, há participação criativa”). Assim, “vamos pegar o termo de multidão como base política para construir uma democracia”, propõe Negri. A questão é conseguir interpretar essa multidão em todos os níveis em que as diferenças estejam presentes, pondera.

Outro paradigma?
Mas, e se tentássemos responder à crise civilizatória do nosso tempo, agudizada pelo sequestro do poder e da democracia pelo capital, com um outro paradigma?, propõe Alberto Acosta, cujo último livro, O Bem Viver, foi lançado no Brasil em fevereiro deste ano.

“Grande parte do pensamento dominante da atualidade provém da Europa: o liberalismo, o conservadorismo, o socialismo, o comunismo; e dentro dessa colonialidade do poder, do ser e do saber, encontramos [os brancos ocidentais] respostas aos nossos problemas. Mas, na Amazônia e nos Andes, outros grupos sociais emergiram, que não se encaixam exatamente nessas categorias da modernidade política. São os movimentos indígenas, que abrem a porta para visões muito mais plurais e transcendentais”.

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Acosta: “Os povos tradicionais passam a exigir, além de protagonismo, reconhecimento de sua visão de mundo”

De acordo com o economista equatoriano, o outro paradigma proposto pelas populações indígenas (e não apenas as latino-americanas, mas também povos da África ou da Índia) é o viver no mundo de acordo com outros horizontes e sentidos não euro ou antropocêntricos, que diferem das lógicas da modernidade. E é neste sentido que tem tomado força o debate acerca dos horizontes e paradigmas do Bem Viver.

Com o fortalecimento das organizações indígenas, prossegue Acosta, um amplo setor que até então era considerado pelas esquerdas como o proletariado explorado do campo, a ser defendido nas lutas revolucionárias, passou a reivindicar não apenas um protagonismo político mas também o reconhecimento do direito à própria visão de mundo, de gestar suas próprias propostas a partir de suas próprias realidades.

Nesta nova configuração do movimento emancipatório de base indígena, não há uma ruptura total com as lutas populares; há a presença do marxismo e do socialismo, mas são incorporados outros horizontes, como a ecologia, os direitos da natureza, a descolonização, a despatriarcalização, o feminismo. Explica Acosta: este processo de questionamento dos paradigmas civilizatórios ocidentais se dá em meio a uma crise do Estado-nação, colonial, neoliberal. Ou seja, são os indígenas e outros setores populares que lideram na América Latina a luta contra o neoliberalismo em sua fase mais avançada, como o extrativismo predatório e em grande escala, intrinsecamente violador de territórios, direitos humanos, culturas e da própria sobrevivência. “Assim, nesse contexto na America Latina quando o conceito de desenvolvimento entra em crise e o conceito de progresso deixa de ser a promessa mobilizadora para as populações tradicionais, aparecem as teses do Bem Viver”. Os povos tradicionais passam a exigir um reconhecimento social e cultural, e apresentam uma série de códigos de conduta que nos parecem, aos de origem ocidental, complexos. Apresentam uma proposta que vai além do antropocentrismo e do utilitarismo, que requer o reconhecimento da plurinacionalidade, da pluri e interculturalidade, novos conceitos que propõem uma ruptura na civilização moderna e capitalista

Em outras palavras, se propõe, enquanto Bem Viver, o encontrar com a natureza e reconhecer seus direitos. Reconstruir o comunitário e romper o individualismo baseado no consumo. Voltar a reencontrar-se no comunitário. “Não se trata só de sociedade, mas de comunidade. E nesse sentido não pode haver apenas um bem viver, temos que falar em bons conviveres”, afirma Acosta.

Ma in che modo?
É certo que sim, retruca Negri. Mas e como fazer? “O poder é forte e duro, e está na mão do capital. O discurso do Alberto tem que ser repetido na luta, não é uma utopia, mas uma organização do desejo. Mas entre a organização do desejo e o possível existe a política…”

A questão-chave, prossegue Negri, é o fato de que o desejo não se concretiza sempre. Pessoas vão presas quando se rebelam. Princípios fundamentais da democracia estão em perigo. A crise mundial é uma realidade. Enquanto se luta, é preciso viver. O capital incide sobre a nossa vida. Existem operários que trabalham em fabricas que poluem, mas que têm medo de ficar sem trabalho. “A vida está toda organizada sem a natureza, nascemos em hospitais, temos empregos e relação com o capital e os patrões, há um sistema de educação ao qual estamos submetidos. Existe uma política para o fazer viver, que te coloca em condição de ser extorquido pelo capital. A relação homem-natureza é complexa, mas esse não é o problema. O problema é como fazer para chegar no Bem Viver, uma vida boa”, desafia Negri.

Ao que responde Acosta: “O Bem Viver não é uma teoria, mas uma prática. O Bem Viver está presente em muitas partes do planeta como prática e cultura. Nessa perspectiva, não se trata de construir um programa político, mas de compreender formas de vida que estão em prática”. Simples assim.

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Pequeno mundo possível
No Al Janiah, um pedacinho de vida reconstruída por e para quem vivenciou, de alguma forma, a violenta repressão que se seguiu à Primavera Árabe, naquele 26 de outubro uma pequena multidão que havia acompanhado o debate na Mário de Andrade se acotovelou harmoniosamente nas suas diversidades de debates políticos ao redor da mesa de Negri e Acosta. Compartilhou-se comida e cerveja sem combinações prévias, só foi assim. De alguma maneira, pagaram-se contas sem calculadoras e equacionaram-se consumos à margem das regras do capitalismo gastronômico. Enquanto chovia em São Paulo, naquele pedacinho da cidade praticou-se o bem viver em multidão. Um dos muitos tipos de bem viver, tudo junto e misturado.

negriacosta_GRAF-2Veja a íntegra do debate A Revolta da Multidão e a Constituição do Bem Viver. O evento foi organizado pelo Departamentos de Ciência Política, Filosofia e Sociologia da FFLCH/USP em parceria com a Fundação Rosa Luxemburgo e a Editora Autonomia Literária. O encontro fez parte da série de conferências Diálogos com Antonio Negri, onde ocorreu o lançamento do livro “Marx além de Marx: ciência da crise e da subversão. Caderno de trabalho sobre os Grundrisse”.

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