Roda de conversa entre militantes do movimento negro disseca questões como a naturalização do racismo, a apatia da esquerda quanto à questão racial e as possibilidades de desconstrução da cultura do "padrão branco"
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A relação das opressões no capitalismo
07/12/2016
por
Verena Glass

Roda de conversa entre ativistas do movimento negro discute questões como a naturalização do racismo, a apatia da esquerda quanto à questão racial e as possibilidades de desconstrução da cultura do “padrão branco”

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Mural de Angela Davis nas cercanias de Lyon, França (Foto: Thierry Ehrmann)

Por Verena Glass

“As organizações de esquerda têm argumentado dentro de uma visão marxista e ortodoxa que a classe é a coisa mais importante. Claro que classe é importante. É preciso compreender que classe informa a raça. Mas raça, também, informa a classe. E gênero informa a classe. Raça é a maneira como a classe é vivida. Da mesma forma que gênero é a maneira como a raça é vivida. A gente precisa refletir bastante para perceber as intersecções entre raça, classe e gênero, de forma a perceber que entre essas categorias existem relações que são mútuas e outras que são cruzadas. Ninguém pode assumir a primazia de uma categoria sobre as outras”.

O debate acima, proposto por Angela Davis, filósofa estadunidense e uma das mais conhecidas ativistas do movimento negro, na obra “As mulheres negras na construção de uma nova utopia”, permeou a roda de conversa Angela Davis: raça e gênero na reprodução do capital, que  aconteceu na última quinta, 1, na sede da Fundação Rosa Luxemburgo. O evento, que teve mediação de Christiane Gomes, contou com a participação das integrantes da  Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial (Cojira) Rosane Borges, escritora e professora do Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (CELACC) da USP, e Paola Brandini, fundadora da consultoria AfroEducação e que atua na formação de professores.

Para começar a entender a problematização da questão racial no país, propõe Rosane Borges, é preciso um olhar histórico. Ou seja, diante do fato que, dos nossos pouco mais de 500 anos de história como Estado brasileiro, 320 foram construídos com força de trabalho escravo; e mais, como coloca Angela Davis, visto que a escravidão transatlântica (tráfico dxs negrxs africanxs para as Américas) foi a base constitutiva e de sustentação do sistema capitalista, é emblemático que a tragédia da violência no país tenha maior incidência sobre a população negra. E que esta tragédia social é fruto e expressão do racismo.

Rosane Borges: é preciso desnaturalizar o racismo (Foto: Gerhild Schiller)
Rosane Borges: é preciso desnaturalizar o racismo

Este racismo, prossegue Rosane, que segue intrínseco à exploração capitalista – e, por conseguinte, à cultura brasileira -, terá que ser desconstruído através da desnaturalização da questão de gênero e raça, como propôs Angela Davis. Nesse sentido, explica, Davis se aproxima a Marx quando este propõe a desnaturalização das desigualdades sociais. Ou seja, contra a percepção de que as hierarquias estão postas, são hereditárias, por pertencimento, classe eclesiástica, etc, Marx contrapõe que a exploração de uma classe sobre outra não é eterna,  imutável, imanente; que a desigualdade  social  existe, só não é natural. E isso, defende Angela Davis, também se aplica à questão de raça.

Ou seja, explica Paola Brandini, no padrão cultural brasileiro a branquitude está dada, é norma e padrão, e o que destoa é diferente e estrangeiro. A desconstrução deste senso é imprescindível para se pensar igualdade e equidade. No âmbito da educação, por exemplo, quando aprovada a Lei 10.639/03, que torna obrigatório “o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política do Brasil”, como forma de desconstrução das segregações raciais, um argumento contrário, relata Paola, era que falar das desigualdades sociais já abarcaria o tema da discriminação racial, porque negro e pobre é a mesma coisa.

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Paola Brandini: interseccionalidade nas discussões de gênero e raça é essencial

“Isso faz da questão racial uma não questão, o que é uma falácia. As mulheres negras teriam que subir muito na pirâmide social para chegar ao sofrimento das mulheres brancas”, afirma Paola Brandini. Um exemplo disso, conta, é uma vivência que teve ao trabalhar na obstetrícia do sistema público de saúde. “Era tudo precário, e muitas vezes não havia anestésicos para as parturientes. E quando haviam brancas e negras dando a luz, o anestésico era aplicado nas brancas. Porque os médicos diziam que as negras eram mais fortes, mais resistentes à dor”.

Diante de equívocos como este, muitas vezes naturalizados, afirmam as debatedoras, a interseccionalidade nas discussões de gênero, raça e questão social é essencial, como postulou Angela Davis.

As esquerdas e movimentos sociais teriam que entender que a pauta racial elevou os direitos das mulheres em geral, afirma Paola Brandini, bem como tem impactado positivamente no fortalecimento de uma série de políticas públicas que beneficiam uma parcela ampla da sociedade. “ Quando o movimento negro exige direitos, todos os pobres se beneficiam. Foi assim com as cotas racias no ensino superior, por exemplo, que puxou a criação do Proune”.

Representação

Mas como internalizar estas reflexões no sociedade? Ou ainda, como entender e lidar com nuances complexas que atravessam as questões de gênero e raça e as militâncias de esquerda?

No decorrer do evento, um tema que se destacou no debate foi a participação de figuras negras em espaços públicos nem sempre alinhados à causa. Exemplo: Na TV Globo, símbolo do conservadorismo reacionário para grande parte das esquerdas, no Jornal Nacional, programa icônico da simbologia de direita encarnada pela Globo, no entender destas esquerdas , uma mulher negra e jovem apresenta diariamente a previsão do tempo.

Para negras e negros, a presença da jornalista Maria Júlia Coutinho no programa televisivo possivelmente mais assistido do país, significa empoderamento ou capitulação? Na perspectiva da militância dos movimentos negros, constitui representação positiva ou adesionismo ao sistema?

Pragmaticamente, avalia Rosane Borges, se na televisão ou nos espaços públicos em geral a presença negra fosse comum e corriqueira, ela não seria sentida como diferente e estrangeira. “A esquerda em geral não inclui em sua pauta o tema de raça; considera que a superação do capitalismo levaria à superação das questões de gênero e cor. Assim, termos representação nos espaços capitalistas, para os grupos que tiveram sua humanidade subtraída, é importante”, afirma.

Confira o vídeo com trechos do debate.

Fotos do evento: Gerhard Dilger