Carta aberta à Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e à Academia Brasileira de Ciências
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Ciência deveria estudar alternativas para os transgênicos
16/11/2015
por
Grupo de Pesquisa em Filosofia, História e Sociologia da Ciência e da Tecnologia do IEA/ USP

Carta aberta à Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e à Academia Brasileira de Ciências

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O objetivo desta carta é exortar a SBPC e a ABC a organizarem um amplo diálogo a respeito de: 1) questões ligadas à segurança dos transgênicos e à alegação de serem imprescindíveis para satisfazer as necessidades alimentares da humanidade; 2) a respeito do envolvimento da ciência no desenvolvimento de práticas como a agroecologia, enquanto alternativa para a agricultura baseada em transgênicos.

Vem ficando cada vez mais claro nos últimos tempos que deixa muito a desejar a maneira como se desenvolvem as controvérsias sobre os transgênicos. Elas parecem opor dois fundamentalismos: há falta de entendimento mútuo, as mesmas firmes convicções são repetidas vezes sem conta; diferenças relevantes não são identificadas e discutidas criticamente, e as pesquisas científicas que poderiam decidir pontos-chave de desacordo não são realizadas. Não há verdadeiro debate entre os adeptos e os críticos do uso de transgênicos. Cada lado sente que o outro entendeu equivocadamente suas alegações, ações e motivações. Os adeptos estão convencidos de que suas alegações têm a seu favor o peso da autoridade científica; os críticos se queixam de que suas objeções não são respondidas, e com frequência desconsideradas de maneira condescendente e cientificamente inapropriada. A frustração decorrente tende a fazer cada lado representar o outro de forma que este julga desleal, e a trocar insultos eticamente carregados: os adeptos agindo segundo interesses comerciais em vez de científicos; os críticos enquanto motivados simplesmente por concepções “ideológicas” ou “anticientíficas”.

Nossa proposta à SBPC e à ABC é uma tentativa de superar esse lamentável estado de coisas. Ela teve origem na polêmica de que participamos, em meados deste ano, em debate com representantes da CTNBio, da SBPC e da ABC. (1)

Como deixamos claro, discordando da posição majoritária na CTNBio, sustentamos haver, no cerne das controvérsias sobre o uso dos transgênicos, questões científicas em disputa. Essa tese é compartilhada com uma minoria considerável de membros da CTNBio, numerosos agrônomos, agricultores e trabalhadores rurais, além de filósofos e sociólogos da ciência como nós. Entre tais questões, encontram-se:

(1) o papel que devem desempenhar as contribuições científicas nas deliberações sobre a maneira de lidar com riscos, e sobre políticas públicas, e às pesquisas que precisam ser conduzidas, usando que tipos de metodologia, para fundamentar essas contribuições;

2) resultados estabelecidos pela pesquisa científica no que se refere a danos e riscos do uso de transgênicos, e às formas de agricultura viáveis e necessárias; e

3) alegações frequentes de que o uso de transgênicos não causa danos, ou riscos de danos sérios, e de que são dotados de autoridade científica os estudos de risco conduzidos antes da liberação de variedades transgênicas para usos comerciais.

Essas questões se desdobram em várias outras, sendo uma das mais importantes a relativa ao glifosato, e às variedades transgênicas cujo cultivo exige a aplicação desse agrotóxico. Tal foi o tópico central de nossa última contribuição – que ficou sem resposta – na polêmica em pauta. De acordo com a divisão de competências estabelecida pela legislação em vigor, no que se refere à avaliação de riscos, cabe à CTNBio lidar apenas com os impactos diretos e específicos dos transgênicos, sendo a ANVISA e o MAPA (Ministério da Agricultura) responsáveis pelos impactos dos agrotóxicos. Partindo de uma análise dessa separação, concluímos que “fornecer evidência de que não existem efeitos diretos não implica que seu uso [dos transgênicos resistentes ao glifosato] na agricultura seja seguro. Implicaria no máximo que os danos de fato causados não são um efeito direto das plantas transgênicas, mas sim de outros aspectos da maneira como são cultivadas. Se o mandato da CTNBio é limitado aos efeitos diretos dos transgênicos, não é de sua competência fazer afirmações sobre a segurança de seu uso na prática.” (2)

Nosso questionamento refere-se à adequação científica dos procedimentos e métodos utilizados quando se extraem conclusões sobre a segurança do uso de transgênicos, não às motivações e intenções pessoais dos membros da CTNBio. A nosso ver, a utilização de tais procedimentos atende aos interesses do agronegócio e das políticas governamentais voltadas para a exportação. Os defensores da CTNBio afirmam: “A separação dos dois procedimentos analíticos não é uma manobra antidemocrática ou reducionista, mas é um posicionamento técnico aceito e referendado no mundo todo e em sintonia com os tratados e acordos internacionais de comércio e de proteção à saúde e ao ambiente.”(3) Entretanto, a questão de se os procedimentos são, ou não, cientificamente adequados precisa ser respondida independentemente dos interesses a que servem e os requisitos de acordos internacionais.

Também é importante tratar das questões metodológicas associadas à alegação de que, de acordo com a ciência, os transgênicos são “necessários para alimentar o mundo”. A alegação é frequentemente repetida, com o objetivo de justificar a concentração da pesquisa no desenvolvimento de transgênicos, atribuindo a eles um papel central nas políticas agrícolas nacionais e internacionais. Por outro lado, é cada vez mais contestada por órgãos internacionais voltados para a solução dos problemas de fome e subnutrição em áreas empobrecidas do mundo(4), bem como numerosos movimentos que defendem políticas e práticas de soberania alimentar, especialmente a agroecologia, como essenciais para a realização da segurança alimentar (e outros direitos humanos). Tais contestações devem ser consideradas pelas organizações científicas e, se forem mantidas, as prioridades de pesquisa científica precisarão ser repensadas. Não se trata de restringir a pesquisa científica, mas sim introduzi-la mais ampla e rigorosamente em áreas hoje marginalizadas.

É neste espírito que sugerimos à SBPC e à ABC que organizem um diálogo à altura das complexidades e importância das questões em jogo. A iniciativa situa-se no âmbito de suas atividades, enquanto responsáveis pela proteção e integridade da ciência e o fortalecimento da pesquisa no Brasil. Além disso, a SBPC tem uma ampla rede, cobrindo boa parte do país. Há uma oportunidade única para organizações científicas brasileiras tomarem a dianteira no tratamento dessas questões, que têm implicações globais.

As formas específicas que o diálogo pode assumir ficam abertas à discussão – mas não podem se limitar a trocas de artigos curtos na imprensa ou no JC Notícias, ou ainda a um seminário ocasional nos encontros anuais da SBPC. Ampla discussão envolvendo um grande número de participantes será necessária para que haja respostas substantivas para as posições em disputa.

São Paulo, 10 de novembro de 2015

Pablo Rubén Mariconda, Hugh Lacey, Marcos Barbosa de Oliveira, José Corrêa Leite e Márcia Tait Lima, membros do  (Instituto de Estudos Avançados) – USP (pesquisa.ct.iea@gmail.com)

Notas

[1] As intervenções foram publicadas no JC-Notícias e na Folha de S. Paulo. Além das mencionadas a seguir, elas incluíram: Walter Colli, Helena Nader e Jacob Palis Junior, “Ciência, sociedade e a invasão da CTNBio”, Folha de S. Paulo, 8/4/2015; Hugh Lacey, José Corrêa Leite, Marcos Barbosa de Oliveira, e Pablo Rubén Mariconda, “Transgênicos: malefícios, invasões e diálogo”, JC-Notícias, 30/4/2015, item 9.
[2] Hugh Lacey, José Corrêa Leite, Marcos Barbosa de Oliveira, e Pablo Rubén Mariconda, “Transgênicos: diálogo”, JC-Notícias, 22/5/2015, item 27. Sobre os danos e riscos dos agrotóxicos e transgênicos, v. Fernando F. Carneiro et al (orgs.), Dossiê ABRASCO: Um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde (Rio de Janeiro / São Paulo: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio e Expressão Popular, 2015 e Gilles Ferment et al., Lavouras transgênicas: riscos e incertezas: mais de 750 estudos desprezados pelos órgãos reguladores de OGMs. Brasília: Ministério de Desenvolvimento Agrário, 2015.
[3] Paulo Paes de Andrade, Francisco G. Nóbrega, Zander Navarro, Flávio Finardi Filho e Walter Colli, “Transgênicos: benefícios e diálogo,” JC, 4/5/2015, item 9.
[4] Um exemplo representativo de tais contestações é Olivier De Schutter, “The transformative potential of the right to food”. Report of the Special Rapporteur on the right to food. Human Rights Council, General Assembly of the United Nations, 24/1/2014. <http://www.srfood.org/images/stories/pdf/officialreports/20140310_finalreport_en.pdf>.