Derrubada da floresta, queimadas, grilagem de terras e conflitos fundiários: esta é a realidade da AMACRO, uma região encravada nas divisas dos estados do Acre, Amazonas e Rondônia
AMACRO: a violência do agro na Amazônia
19/09/2023
por
Verena Glass*

Região vendida como novo "polo sustentável" na gestão Bolsonaro é campeã de desmatamento e conflitos (foto: Verena Glass)
Região vendida como novo “polo sustentável” na gestão Bolsonaro é campeã de desmatamento e conflitos (foto: Verena Glass)

Derrubada descontrolada da floresta, queimadas, grilagem de terras e conflitos fundiários: esta é a realidade de uma região encravada nas divisas dos estados do Acre, Amazonas e Rondônia que, em 2022, foi responsável por um terço do desmatamento na Amazônia Legal e que vive a face mais violenta do agronegócio predatório.

No final de janeiro de 2021, o então vice de Bolsonaro (e presidente do Conselho Nacional da Amazônia), general Hamilton Mourão, se reuniu, no marco da edição virtual do Fórum Econômico Mundial, com uma série de investidores internacionais para apresentar um projeto de novas oportunidades na Amazônia. Tratava-se do chamado AMACRO, um “programa-piloto para promover o desenvolvimento sustentável em uma área de 450 mil km² entre os Estados do Amazonas, Acre e Rondônia”.

A iniciativa havia sido construída com os governadores dos três estados, Wilson Miranda Lima (AM, União Brasil), Gladson Cameli (AC, Progressistas), e Coronel Marcos Rocha (RO, União Brasil), e pretendia “estabelecer um cinturão de proteção da floresta, oferecendo alternativas para os desafios socioeconômicos da população, potencializando as vocações produtivas e econômicas locais, assim como os recursos humanos”. Monitoramentos socioambientais da região no último período, porém, escancararam uma realidade diametralmente inversa à propagandeado pelo general e seus aliados.

Abarcando 32 municípios, a região AMACRO engloba 96 áreas protegidas, 53 Terras Indígenas, 374 comunidades indígenas e 255 assentamentos de reforma agrária. E, em 2022, contabilizou um recorde de 36% de todo o desmatamento na Amazônia Legal, de acordo com levantamento do Instituto de Pesquisas Espaciais (INPE)

A causa desta tragédia, explica o relatório Dinâmica do desmatamento na região AMACRO com o Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD), é a expansão da fronteira agropecuária na região, “caracterizada pela conversão florestal descontrolada e por uma tendência de aumento da devastação a cada ano. Nos últimos quatro anos observados, esse valor continua crescente e sem atingir estabilidade”.

Desmatamento na região AMACRO – Fonte: INPE

Trocando em miúdos, de 2020 a 2022, o rebanho bovino do Acre, segundo o IBGE, teve o maior aumento em toda a Amazônia ( 8%), chegando a 3,8 milhões de cabeças. Em Lábrea, no Amazonas – município que, por três anos consecutivos, liderou o ranking de desmatamento na AMACRO e em todo o bioma -, o rebanho bovino passou de 28 mil cabeças em 2017 para 328 mil em 2021. Nesse mesmo período, Porto Velho, RO, maior produtor de gado da AMACRO, passou de 416 mil cabeças para 1,3 milhão. Já em relação à soja, Rondônia passou de 280 mil ha plantados em 2017 para 489,5 ha em 2022; o Acre, de 127 ha em 2017 para 6.570 ha em 2022; e o Amazona, de zero hectares registrados pelo IBGE em 2017 para 5.900 ha em 2022.

TERRITÓRIOS SOB PRESSÃO

Traduzidos estes números para a realidade das Unidades de Conservação, dos territórios indígenas e de comunidades tradicionais e de pequenos agricultores na AMACRO, o que se tem é uma explosão da violência expressa por um aumento exponencial da grilagem, do roubo de madeira, do desmatamento ilegal, das queimadas e dos conflitos por terra  – que, em 2022, chegaram a 150 casos, segundo o Relatório de Conflitos no Campo da Comissão Pastoral da Terra (CPT).

Estes fatores levaram o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) a promover, em parceria com a CPT e a Cáritas de Rondônia (e apoio da Fundação Rosa Luxemburgo), o “Encontro sobre os Impactos da Fronteira Agrícola, Desmatamento e Mineração na Região AMACRO”, que aconteceu em meados de agosto em Porto Velho e reuniu representantes das etnias Aikanã, Kanoe, Amondawa, Kwazá, Karitiana, Karipuna, Arara (Karo), Oro Mon, Oro Wari, Puruborá, Guarasugwe, Kassupá e  Kaorowaje, de Rondônia; Apurinã, Jamamadi, Jaminawa, Huni Kuī, Nukini, Nawa e  Manchineri, do Acre; Torá, Mura, Munduruku, Tenharin e Apurinã, do Amazonas; Bororo, Enawene Nawe, Maimandé, Myky, Rikbaktsa e Kuikuro, do Mato Grosso, e comunidades ribeirinhas e de agricultores de Rondonia.

A partir dos relatos das lideranças indígenas, o principal diagnóstico a que se chegou é que a violência e os crimes ambientais e fundiários se devem, por um lado, à falta de implementação de políticas públicas primárias, como a demarcação, homologação e proteção de inúmeras terras indígenas nos quatro estados, e por outro, à leniência passiva ou o incentivo ativo aos ilícitos por parte das autoridades públicas. Isso aliado a políticas “compensatórias” de economia verde, como projetos de REDD+, que têm efeitos extremamente nocivos nas comunidades, de acordo com denúncias feitas durante o evento, e a projetos de infraestrutura, como usinas hidroelétricas, PCHs (pequenas centrais hidrelétricas), estradas e ferrovias.

“Estes projetos de crédito de carbono, onde chegam, acabam com a harmonia das aldeias. Oferecem dinheiro para algumas pessoas, que vão ficar mais ricas, e outros não, e dizem que agora são donos das nossas árvores. E os projetos de infra, acabam com a paz dos territórios. Por facilitar a produção e o escoamento de minérios, boi e soja, só fazem aumentar a grilagem e o desmatamento na região. Facilita os fazendeiros plantar e criar gado, e exportar pra fora. E a gente fica só com a violência”, explica uma liderança Huni Kui do Acre.


TERRA INDÍGENA KARIPUNA: UM EXEMPLO DA TRAGÉDIA

Desmatamento para formação de pasto é um dos principais problemas enfrentados pelo povo Karipuna de RO (foto:Verena Glass)

A Terra Indígena Karipuna, localizada a cerca de 100 km de Porto Velho, foi homologada em 1998 com 153 mil hectares, e hoje é uma das mais invadidas do estado. Em 2022, aponta um relatório do Observatório da BR 319, foi também a mais desmatada entre as 69 áreas indígenas que ficam no entorno da rodovia federal.

De acordo com o relatório de Violências contra Povos Indígenas 2022, do CIMI,  uma análise feita em parceria com o Greenpeace identificou pelo menos 31 cadastros particulares sobrepostos à TI, cobrindo 2,6 mil dos 153 mil hectares dos karipuna. O mesmo monitoramento detectou que, de outubro de 2020 a outubro de 2021, o desmatamento ilegal atingiu cerca de 850 há do território.

Foto: Verena Glass

Para chegar à pequena comunidade onde os karipuna, acuados pela violência, vivem às margens do rio Formoso, vai-se atravessando enormes áreas desmatadas, salpicadas de boi branco. A poucos minutos da aldeia, vê-se na beira da estrada uma placa pregada a uma árvore, onde um madeireiro deixou seu recado: “por favor não mexa na minha madeira”.

“Já faz anos que estamos enfrentando a grilagem e o roubo de madeira, e nada muda”, explica o cacique André Karipuna.  Em maio deste ano, por exemplo, a Polícia Federal fez uma operação na TI que identificou 12 pontos de desmatamento, além de 20 madeireiras e serrarias que ficam nas proximidades da área indígena. Mais de 7,4 mil m³ de madeira foram apreendidos, um suspeito foi preso e 14 empresas fechadas. Mas a operação não resolveu, diz André. “Nosso território ainda continua todo invadido pelo grileiro, sem falar nas ameaças que sofremos dia a dia. Todos nós aqui somos ameaçados. Ainda não foi tomada nenhuma medida que resolvesse o nosso problema”, afirma o cacique.

Luis Ventura (CIMI, esq) e André Karipuna (dir) conversam sobre ameaças ao território (foto: Verena Glass)

Para Luis Ventura, secretário adjunto do CIMI, o conceito geográfico de AMACRO “não é mais do que uma nova regionalização do capital”. Para ele, a forma pela qual o capital está avançando para o interior da Amazônia tem essas diversas facetas: o agronegócio, o desmatamento, a grilagem de terras, o garimpo, grandes obras de infraestrutura, como estradas e hidrelétricas, e, de uma forma particularmente intensa nos últimos anos, a chamada “economia verde”. “Estamos aqui justamente dialogando com outras organizações aliadas, como a CPT e a Caritas, e principalmente com os povos e comunidades tradicionais, tentando compreender quais são os impactos desse avanço do capital, e sobretudo quais são as possibilidades de resistência articuladas pelos povos e comunidades tradicionais”.

Clique aqui para ler o documento final do “Encontro sobre os Impactos da Fronteira Agrícola, Desmatamento e Mineração na Região AMACRO”

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* Verena Glass é coordenadora de projetos do escritório de São Paulo da Fundação Rosa Luxemburgo.