Modelo de negócios das big techs estimula engajamento e desinformação, criando ambiente favorável ao crescimento da extrema direita nas redes sociais
Big techs desafiam a democracia e favorecem a extrema direita
11/02/2025
por
Katarine Flor

Leia também no Le Monde Diplomatique

Do Brasil à Alemanha, a interferência das big techs na política tem despertado preocupação. No país Latino Americano, Elon Musk, proprietário do X (antigo Twitter), confrontou o Supremo Tribunal Federal (STF) ao desafiar decisões que determinavam o bloqueio de contas ligadas a redes de desinformação e ataques à democracia. Em meio ao conflito, o bilionário chegou a sugerir  que os brasileiros burlassem restrições judiciais, acirrando o embate entre a plataforma e o Judiciário. 

Na Alemanha, Musk escancarou seu alinhamento com a ultradireita ao apoiar o partido Alternativa para a Alemanha (AfD), participando de eventos políticos e normalizando discursos extremistas. 

Trabalho do artista Evyrein “Elon Mask” no muro  em Pádua critica a saudação nazista de Elon Musk durante a posse de Donald Trump e sua subsequente aparição em um evento de extrema direita da AfD na Alemanha. @evyrein_official
Trabalho do artista Evyrein “Elon Mask” no muro  em Pádua critica a saudação nazista de Elon Musk durante a posse de Donald Trump e
sua subsequente aparição em um evento de extrema direita da AfD na Alemanha. @evyrein_official

Nos Estados Unidos, integrantes da “elite tecnológica” tiveram lugar de destaque na posse de Donald Trump em janeiro de 2025. Durante a cerimônia, gestos de Musk, que remeteram à saudação nazista, geraram indignação internacional e reforçaram temores a respeito da influência das big techs na ascensão de governos autoritários. 

No mesmo mês, o CEO da Meta – companhia que controla Facebook, Instagram e Whatsapp – Mark Zuckerberg afirmou que vai trabalhar com o presidente estadunidense para impedir o avanço de países que buscam regular o ambiente digital. E fez insinuações sobre a existência de “tribunais secretos” na América Latina.A declaração foi interpretada, no Brasil, como uma referência indireta ao Supremo Tribunal Federal (STF), que tem julgado casos de desinformação envolvendo as plataformas digitais no país.

Solo fértil para desinformação 

As redes sociais se tornaram terreno fértil para a desinformação. Estudos indicam que setores alinhados à extrema direita se beneficiaram dessas plataformas, transformando-as em espaços de criação e fortalecimento de “bolhas informativas” — ambientes onde os usuários interagem predominantemente com conteúdos que reforçam suas convicções e limitam o debate plural.

Esse fenômeno é intensificado pelos algoritmos das das plataformas, que priorizam conteúdos com alto potencial de engajamento. Notícias falsas e sensacionalistas, por despertarem emoções como medo e indignação, tendem a se espalhar mais rapidamente do que conteúdos informativos. Isto é o que aponta uma pesquisa do Massachusetts Institute of Technology (MIT). O estudo revelou que notícias falsas populares atingem até 100 mil pessoas, enquanto as verdadeiras raramente ultrapassam o alcance de mil indivíduos. Esse descompasso evidencia o papel dos algoritmos na amplificação de conteúdos polarizadores, tornando as plataformas peças-chave no ecossistema da desinformação.

Esse ciclo cria um ambiente propício para a manipulação da opinião pública, com impactos diretos sobre processos democráticos. Segundo pesquisa do Instituto DataSenado, 81% dos brasileiros acreditam que as fake news podem afetar significativamente o resultado das eleições. evidenciando a necessidade de mecanismos de combate à desinformação.

Fake news: uma ameaça ao processo eleitoral

O impacto das fake news na democracia não se limita à percepção popular. Já se manifestou de forma bem concreta nas últimas eleições brasileiras. Um estudo de Margareth Vetis Zaganelli e Simone Guerra Maziero, publicado na Revista Eletrônica de Direito Eleitoral e Sistema Político, aponta que a disseminação de desinformação eleitoral ganhou força a partir de 2018, tornando-se um instrumento de manipulação política. 

A disseminação de desinformação eleitoral ganhou força a partir de 2018, tornando-se um instrumento de manipulação política.

As eleições de 2018 e 2022 foram marcadas pelo uso de fake news com a intenção de deslegitimar o sistema eleitoral. Informações falsas sobre as urnas eletrônicas foram amplamente compartilhadas, alimentando a desconfiança no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Vídeos manipulados, memes e mensagens de áudio circularam massivamente em aplicativos como WhatsApp e Telegram, criando um ambiente de descrença e instabilidade.

Além disso, uma análise conduzida pela Agência Lupa, em parceria com a USP e a UFMG, examinou 347 grupos públicos de WhatsApp durante o segundo turno das eleições de 2018. O estudo revelou que, entre as 50 imagens mais compartilhadas, apenas quatro eram verdadeiras. Isso demonstra como conteúdos manipulados e retirados de contexto foram amplificados, influenciando diretamente o processo democrático e aprofundando a polarização política.

O papel dos algoritmos e o modelo de negócios das big techs

As grandes plataformas digitais, como Facebook, WhatsApp, Telegram e X (antigo Twitter), não só facilitam a disseminação de desinformação, como também lucram com ela. O modelo de negócios dessas empresas é baseado na “economia da atenção“, em que conteúdos que geram forte reação emocional — como medo, raiva ou indignação — são priorizados para maximizar o tempo de permanência dos usuários.

O professor da UFABC Sérgio Amadeu, em seu artigo Plataformas se convertem em estruturas geopolíticas da extrema direita, publicado no Brasil de Fato, argumenta que as redes sociais aplicam na prática o princípio de Goebbels: “uma postagem é verdadeira se for replicada um milhão de vezes”. O pesquisador explica que as plataformas digitais operam com base na coleta massiva de dados dos usuários, permitindo que conteúdos polarizadores sejam direcionados com precisão para maximizar o engajamento. Esse ciclo vicioso favorece a radicalização política e dificulta o combate à desinformação.

As redes sociais aplicam na prática o princípio de Goebbels: “uma postagem é verdadeira se for replicada um milhão de vezes”.
– Sérgio Amadeu, pesquisadora da UFABC

Conflitos entre big techs e instituições democráticas no Brasil

A influência das big techs na política não se limita à disseminação de desinformação durante as eleições. Essas plataformas também ocuparam um espaço central na mobilização de ações antidemocráticas. O episódio mais emblemático desse uso estratégico pela extrema direita no Brasil ocorreu em 8 de janeiro de 2023, quando apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro invadiram a Praça dos Três Poderes, em Brasília.

Apoiadores de Bolsonaro invadem a Praça dos Três Poderes, em Brasília, em 8 de janeiro de 2023 - Marcelo Camargo/Agência Brasil
Apoiadores de Bolsonaro invadem a Praça dos Três Poderes, em Brasília, em 8 de janeiro de 2023 – Marcelo Camargo/Agência Brasil

Investigações revelaram que aplicativos como Telegram e WhatsApp foram utilizados para coordenar as ações, enquanto o X (antigo Twitter) serviu como espaço para disseminação de mensagens extremistas e incitações à insurreição. Segundo Zaganelli e Maziero, a desinformação viralizada nas redes sociais, além de moldar a opinião pública, incentiva narrativas que questionam a legitimidade das instituições democráticas.

O Relatório Final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) do 8 de Janeiro de 2023 reforça essa análise ao descrever como milicianos digitais foram empregados para disseminar medo, desqualificar adversários e atacar o sistema eleitoral. O documento destaca que “os golpes modernos (…) não usam tanques, cabos e soldados”. Os ataques seguiram uma estratégia de guerra híbrida, que combina desinformação massiva com ações políticas e sociais. Esse modelo, impulsionado pelas redes sociais, intensificou a radicalização e incentivou ações violentas contra as instituições democráticas.

“Os golpes modernos não usam tanques, cabos e soldados”.
– Relatório Final da CPMI do 8 de janeiro de 2023

STF versus X: a crise entre justiça e a big tech

O embate entre o Supremo Tribunal Federal (STF) e a plataforma X tornou-se um dos maiores confrontos entre uma big tech e o Estado brasileiro. O conflito remonta a investigações anteriores sobre redes de desinformação, mas ganhou força após os atos de 8 de janeiro de 2023, quando grupos bolsonaristas tentaram depor o governo democraticamente eleito. 

Após os ataques às sedes dos Três Poderes, a Corte determinou o bloqueio de contas dos envolvidos na disseminação de fake news e incitação à violência contra as instituições democráticas. Essas suspensões foram baseadas em investigações já em andamento, como o Inquérito das Milícias Digitais (Inq. 4.874) e o Inquérito das Fake News (Inq. 4.781), que apuram o uso de redes sociais para organizar ataques ao regime democrático.

Em abril de 2024, o conflito escalonou quando Elon Musk, dono da plataforma X, criticou publicamente o STF e ameaçou reativar as contas bloqueadas por decisões judiciais. Musk acusou o ministro Alexandre de Moraes de censurar a plataforma e sugeriu que usuários brasileiros utilizassem redes privadas virtuais (VPNs) para burlar as restrições impostas pela Justiça. 

Em resposta, Moraes determinou a inclusão de Musk como investigado no Inquérito das Milícias Digitais, sob suspeita de obstrução de Justiça, incitação ao crime e desobediência a decisões judiciais. O ministro também instaurou um novo inquérito para apurar especificamente a conduta do empresário.

O caso alcançou seu ápice em 30 de agosto de 2024, quando o ministro determinou a suspensão da plataforma X em todo o território nacional. A decisão foi referendada por unanimidade pela Primeira Turma do STF em 2 de setembro, após a Corte considerar que todas as tentativas de fazer com que a plataforma cumprisse as ordens judiciais e pagasse as multas impostas haviam sido esgotadas.

O Supremo autorizou o retorno da plataforma X ao Brasil em 8 de outubro de 2024, após a empresa cumprir as exigências estipuladas pelo tribunal. Entre as condicionantes para a retomada do serviço, a empresa:

  • bloqueou os perfis que disseminavam fake news e incitação à violência;
  • nomeou um representante legal no Brasil, requisito obrigatório para empresas estrangeiras que operam no país; e
  • pagou integralmente as multas impostas, que totalizaram R$ 28,6 milhões.

A influência das big techs no debate global sobre redes sociais

A influência das big techs na política e o apoio à extrema direita global se intensificou nos últimos anos. E Elon Musk tem desempenhado um papel ativo. Em dezembro de 2024, ele declarou publicamente seu apoio ao partido alemão de extrema direita Alternativa para a Alemanha (AfD), afirmando na plataforma X que “apenas a AfD pode salvar a Alemanha“. Pouco tempo depois, em janeiro de 2025, Musk participou virtualmente de um evento de campanha do partido, onde incentivou os alemães a “superarem a culpa do passado” e se orgulharem de sua cultura.

Nos Estados Unidos, a posse de Donald Trump como presidente, em janeiro de 2025, evidenciou ainda mais a conexão entre as big techs e a radicalização digital. CEOs e donos de empresas do setor tiveram lugar de destaque na cerimônia, consolidando sua proximidade com a nova administração. Durante o evento, Elon Musk protagonizou um momento de grande repercussão ao fazer gestos que remetem à saudação nazista, gerando um “show de horrores” que rapidamente viralizou nas redes.

“Tribunais secretos” na América Latina

Alegando “censura nas redes sociais”, a Meta anunciou que vai se aliar à Trump, para pressionar países que buscam regular o ambiente digital em suas regiões.“Vamos trabalhar com o presidente Trump para pressionar os governos ao redor do mundo que estão perseguindo empresas americanas e pressionando para censurar mais”, disse Zuckerberg. Nas palavras do empresário, “a única maneira de resistir a essa tendência global é com o apoio do governo dos EUA”. E acredita que a Europa está “institucionalizando a censura”, e que os países latino-americanos têm “tribunais secretos que podem ordenar que empresas retirem coisas discretamente” . 

Embora Zuckerberg não tenha citado o STF explicitamente, membros do governo brasileiro entenderam a fala como uma crítica às decisões da Suprema Corte que envolvem remoção de conteúdos e moderação de plataformas digitais. 

Fim da moderação: um convite ao discurso de ódio

 O contexto da declaração ocorreu durante o anúncio do fim do programa de checagem de fatos da Meta e sua substituição por um sistema de “notas da comunidade”, semelhante ao adotado por Elon Musk no X (antigo Twitter). A decisão gerou críticas de especialistas e organizações que alertam para os desafios das plataformas no combate à desinformação em um ambiente político já polarizado.

Em resposta à declaração do CEO da Meta, o Secretário de Políticas Digitais da Secretaria de Comunicação da Presidência, João Brant, criticou o fim da checagem profissional por meio de um post no LinkedIn: “significa um convite para o ativismo da extrema direita reforçar a utilização dessas redes como plataformas de sua ação política“. Brant destaca: “Facebook e Instagram vão se tornar plataformas que vão dar total peso à liberdade de expressão individual e deixar de proteger outros direitos individuais e coletivos“. 

O anúncio gerou forte reação por parte de instituições como o Ministério Público Federal (MPF) e a Advocacia-Geral da União (AGU), que exigiram esclarecimentos da Meta sobre a moderação de conteúdos no país. Alguns dias depois, a Meta comunicou que manterá a checagem de fatos no Brasil, mas encerrará o programa nos EUA. Informou ainda que a empresa implementou mudanças na Política de Conduta de Ódio, o que gerou preocupação no governo

Diante do fato, a AGU convocou uma audiência pública em Brasília para discutir as novas políticas de moderação de conteúdo das plataformas digitais. De acordo com o órgão público, 45 agentes de instituições ligadas ao tema foram convidados, incluindo representantes de plataformas digitais, especialistas, agências de checagem de fatos, acadêmicos e organizações da sociedade civil. Apesar de convidadas, as plataformas digitais não compareceram.

Audiência pública discute as novas políticas de moderação de conteúdo das plataformas digitais - © Emanuelle Sena/AscomAGU
Audiência pública discute as novas políticas de moderação de conteúdo das plataformas digitais – © Emanuelle Sena/AscomAGU

A audiência pública reforçou a necessidade de regulação das big techs para evitar abusos, garantir a transparência na moderação de conteúdo e proteger os direitos fundamentais dos usuários. Especialistas apontaram que a falta de regras claras favorece a desinformação, o discurso de ódio e a exploração comercial dos usuários. 

Defesa da regulamentação das plataformas digitais

Partidos de esquerda, setores progressistas da sociedade, movimentos sociais e organizações da sociedade civil defendem a criação de um arcabouço regulatório que imponha maior transparência às plataformas, responsabilize empresas por conteúdos impulsionados e crie mecanismos eficazes contra a disseminação de fake news.

É preciso afirmar sempre que a promoção da integridade da informação não é censura e a regulação democrática não é uma restrição ilegítima da liberdade de expressão. E é preciso ter coragem para ir além do que a Europa conseguiu fazer com o DSA [Digital Services Act, lei de regulamentação de serviços digitais]”, defendeu Bia Barbosa, representante da organização Repórteres Sem Fronteiras, durante audiência pública.

Regular as big techs: um passo essencial para frear a extrema direita

A influência das big techs na democracia brasileira e global evidencia o papel central dessas empresas na disseminação de desinformação e na radicalização política. O modelo de negócios dessas plataformas, baseado no engajamento e na priorização de conteúdos polarizadores, favorece diretamente a extrema direita, criando um ambiente digital propício à manipulação da opinião pública e à erosão das instituições democráticas.

No Brasil, os impactos desse fenômeno foram visíveis nas eleições recentes e em eventos como a invasão de 8 de janeiro de 2023, demonstrando como a desinformação se tornou um instrumento estratégico para movimentos autoritários. O embate entre governos e big techs, evidenciado no caso do STF contra a plataforma X, reforça a necessidade urgente de regulamentação para evitar que essas empresas continuem operando sem transparência e sem mecanismos eficazes de responsabilização.

A mobilização de setores progressistas e a defesa de um arcabouço regulatório para as plataformas digitais são passos essenciais para restaurar o equilíbrio do debate público e proteger a democracia. O desafio, contudo, é enfrentar o forte lobby das big techs, que utilizam sua influência global para tentar barrar qualquer tentativa de regulação. 

Garantir transparência, responsabilidade e justiça na moderação de conteúdo é fundamental para impedir que a lógica do lucro continue se sobrepondo à integridade da informação e ao direito da sociedade a um ambiente digital democrático e plural. Concluo com uma reflexão de Isabel Loureiro, professora de filosofia, durante a aula “Socialismo ou Barbárie” do curso “O Legado Revolucionário de Rosa Luxemburgo”.

“Rosa Luxemburgo propõe que os partidos de esquerda não abram mão de seus princípios, mesmo que corram o risco de perder seguidores”.

*Katarine Flor é jornalista e coordenadora de comunicação no escritório de São Paulo da Fundação Rosa Luxemburgo.