A foto da capa mostra um trem queimado. Seu casco enferrujado jaz sobre as vias de um cemitério de trens na Bolívia. Se pode adivinhar que o trem da capa foi em algum momento um carro tanque: de combustível, de água? Ambos líquidos a ponto de se converterem em luxos para as pessoas, em necessidade imperiosa, pela escassez que estão alcançando conforme a crise climática avança implacável apesar das declarações conciliadoras e condescendentes de governos que, na realidade, em seu cinismo, insistem em proferir mentiras com objetivo de favorecer seus sócios. Que siga a festa enquanto dure o petróleo, o gás, a energia, enquanto a água não se transforme em motivo de guerra sem quartel ou levantamento de alguma comunidade, comarca, região ou país inteiro.
As pessoas se dão conta de que tudo está relacionado. Dão-se conta da crise climática como um fenômeno provocado por irresponsabilidade e voracidade. Não é suficiente que as empresas tapem o sol com a peneira, enquanto lucram com o cuidado ancestral que as comunidades têm tido com tudo, porque essa é sua tarefa no mundo.
Mais e mais pessoas e comunidades vamos entendendo que devemos fazer algo livremente para frear o mais rápido possível. O que ocorrerá se ninguém fizer nada?
A Via Campesina proclama que a agricultura camponesa pode esfriar a terra, além de dar de comer a mais pessoas, e o melhor é que é verdade. Estudo após estudo, as evidências se somam para dar razão a esta vastíssima confluência de comunidades e organizações que nos cinco continentes declaram orgulhosas, ser parte dela.
O Tribunal Permanente dos Povos, em sua permanência de três anos no México, documentou os danos ao povo mexicano – que coincidem com tantos outros povos irmãos da América Latina e do mundo -, e com grande tino evidenciou as acusações e a maneira de apresentá-las e pode reconhecer, talvez pela primeira vez na história, a integralidade do ataque à vida camponesa. Pôde este tribunal demonstrar a noção, cada vez mais contundente, de que a economia pretende submeter o direito em mais e mais entrelinhas, e pretende impor reformas (chamadas neoliberais, ou de ajuste estrutural) que desabilitam as potencialidades das pessoas e dos coletivos para fazer frente a seu destino, a sua história, para exercer uma maior subordinação. E isto já não pode permitir.
Dispara a migração e o exílio. Invadem-se mais e mais territórios. Se concentram as terras, se impõem reformas para privilegiar a exploração. Além disso, o Estado tira a máscara e assume um rosto cada vez mais criminoso porque, injustamente, se descartam leis e normas com o objetivo de privilegiar os interesses corporativos e impulsionar acordos comerciais e uma série de regulações não constitucionais associadas a eles, quer dizer, estranhas aos fundamentos das nações soberanas e supostamente democráticas, onde os congressos, e afinal de contas, as populações, teriam que ter a última palavra de como se legisla e quais são as leis legítimas.
Não é só que se legisla em favor das corporações: hoje vamos entendendo, dolorosamente, a chamada arquitetura da impunidade, quer dizer, que muitos Estados são mais e mais propensos, ainda que se chamem progressistas, a promoverem os grupos delinquentes e a entremear suas estruturas com as destes grupos, porque assim convém a seus lucros e interesses “doa a quem doer”.
E então, a violência. O acossamento, a criminalização contra qualquer um que se queixe contra quem não se submete. A repressão sem nenhuma consideração, a prisão, a desaparição, o assassinato. E a violência como moeda de troca. Que a vida cotidiana seja violenta. Que as relações se resolvam através da violência. Neste cenário, o mais terrível é que todos e todas perdemos até mesmo as pessoas que promovem este clima de ofuscamento e confusão.
E tudo está exagerado. Para alguns governos, incomoda muito que o Epovo se organize e atue, e tentam tudo para desarticular a atuação das organizações e indivíduos. Um exemplo direto e recente aconteceu por conta da Conferência dos Povos que se realizou em paralelo à Conferência Climática de Lima, quando o governo “progressista” de Equador impediu a passagem da Caravana Climática Continental que ia do México a Lima, confiscando seu caminhão com pretextos administrativos e pressionando seus integrantes, entre os quais se encontrava um grupo de Yasunidos, defensores do Yasuní contra as pretensões do governo de extrair o petróleo desta região.
Acontece que a Conferência dos Povos devia de ser um momento de denuncia e articulação entre os coletivos dos rincões de diversos continentes para denunciar os ataques das corporações contra a natureza: mineração, extração de petróleo cru e gás com, ou sem fraturação hidráulica. Utilização, contaminação e privatização da água, construção de represas, um embate contra as matas e florestas e contra quem cuida deles, porque além de lhes roubar com supostos pagamentos e compensações, se fortalece a concentração pela via da alienação dos territórios submetidos aos serviços ambientais e REDD. Está o enorme pacote do sistema agroalimentar industrial global com sua promoção de sementes de laboratório (híbridos, transgênicos e outros mais) e pacotes tóxicos, de venenos e fertilizantes.
A crise hídrica no Brasil, um dos países que possui as maiores reservas de água do mundo, onde o agronegócio, o desmatamento, as represas e a mineração estão deixando todo o sudeste do país sem água, demonstra às claras, a perversidade deste sistema.
Outro exemplo da repressão desatada, muito mais execrável ainda, são os fatos ocorridos em Honduras no dia 26 de janeiro último, quando a comunidade garífuna recuperada de Nova Armênia, a poucos quilômetros da cidade de Ceiba, foi atacada a tiros por desconhecidos, crime que deixou um saldo de uma pessoa ferida. Jesus Flores Satuye sofreu um ferimento na cabeça e um no braço. Um dia antes, a sede da Via Campesina em Tegucigalpa foi alvejada com mais de 15 disparos. O mesmo sofreram simpatizantes da FNRP e do Partido Livre que regressavam a suas comunidades depois de uma grande mobilização. Só por defender seus territórios.
A resistência cresce. A guerra contra os jovens desencadeada em Avárias partes do mundo, com particular sanha no México e Centro América, teve uma repercussão inusitadamente mundial, que vem articular muitas outras lutas e resistências que estavam aí. O embate contra os jovens vem fortalecer uma renovada mobilização nas ruas, mas também uma busca por entender mais, entender com outras e outros, trabalhar por nossa reabilitação como sujeitos, como atores e atrizes da nossa própria problemática e circunstância, recuperando saberes, a memória territorial do nosso entorno e suas estratégias de trabalhar para produzir alimentos próprios, nos educar, cuidar da nossa saúde, recuperar formas da justiça mais próximas e reais. E, no final das contas, construirnos um futuro próprio de todos e todas, um futuro praticável e de prazo perpétuo, mais justo para toda a Natureza, com a que estamos entremeados todos (todas as pessoas, todos os seres humanos).
BIODIVERSIDADE
Sustento e cultura
Edição 83, janeiro de 2015
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Organizações Coeditoras: Ação Ecológica, Ação pela Biodiversidade, Campanha das Sementes da Via Campesina – Anamuri, Centro Ecológico, CLOC-Vía Campesina, GRAIN, Grupo ETC, Grupo Sementes, Rede de Coordenação em Biodiversidade, REDES-AT Uruguay, Sobrevivência
Administração: Lucía Vicente
Edição: Ramón Vera Herrera
ISSN: 07977-888X
Biodiversidade, sustento e culturas é uma publicação trimestral de informação e debate sobre a diversidade biológica e cultural para o sustento das comunidades e culturas locais. O uso e a conservação da biodiversidade, o impacto das novas biotecnologias, patentes e políticas públicas são parte da cobertura. Inclui experiências e propostas na América Latina, e busca ser um vínculo entre aqueles que trabalham pela gestão popular da biodiversidade, da diversidade cultural e do autogoverno, especialmente das comunidades locais: mulheres e homens indígenas e afroamericanos, camponeses, pescadores e pequenos produtores.