São Paulo enfrentou uma crise sem precedentes no início de setembro, superando até mesmo as cidades mais poluídas do mundo, as indianas Begusarai, Guwahati e Déli, no ranking global de qualidade do ar. A cidade permaneceu entre as mais poluídas do mundo por vários dias seguidos, segundo dados da IQAir.
A plataforma suíça se baseia em dados de órgãos públicos, como a Cetesb (Companhia Ambiental do Estado de São Paulo), além de imagens de satélite e sensores de sua própria rede, para calcular o Índice de Qualidade do Ar (AQI). No dia em que alcançou o status de cidade mais poluída (9 de setembro), a capital paulista registrou um AQI de 160, considerado “pouco saudável” e prejudicial à saúde de todos, especialmente para grupos sensíveis.
Fenômeno da “Chuva Preta” no Rio Grande do Sul
No mesmo dia, o Rio Grande do Sul sofreu com o fenômeno da “chuva preta”. Segundo o Centro de Pesquisas e Previsões Meteorológicas da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), o fenômeno foi gerado pela mistura da chuva com a fuligem da fumaça das queimadas, resultando na cor preta.
A situação é grave em todo o país. Em menos de uma semana, a Chapada dos Veadeiros perdeu mais de 10 mil hectares, tanto dentro quanto fora do parque, em Alto Paraíso de Goiás, segundo o ICMBio. Já o Pantanal enfrenta a pior estiagem dos últimos 74 anos. E o Cerrado, segundo dados do Ipam, teve 88 milhões de hectares destruídos nos últimos 39 anos, uma média anual de 9,5 milhões de hectares.
Aquecimento Global e Seus Efeitos nas Queimadas
As mudanças climáticas têm provocado um aumento significativo das temperaturas médias em todo o mundo, incluindo o Brasil. Em algumas regiões, como o Centro-Oeste e o Sudeste, as temperaturas têm atingido níveis recordes, ultrapassando os 40°C. Esse calor extremo contribui para a secagem da vegetação, tornando-a mais inflamável.
Um estudo do INPE indica que o número de dias consecutivos sem chuva no Brasil aumentou de uma média de 80-85 dias, entre 1961 e 1990, para cerca de 100 dias nas últimas décadas. Essa seca prolongada agrava a situação, tornando a vegetação ainda mais seca e vulnerável a incêndios.
O Impacto das Queimadas na Qualidade do Ar
A crise da qualidade do ar e o fenômeno da “chuva preta” estão diretamente relacionados às mudanças climáticas e ao aumento das queimadas no país, alerta Elisangela Soldatelli Paim, coordenadora do Programa de Clima e Energia para a América Latina da Fundação Rosa Luxemburgo.
“O Brasil está passando por uma seca histórica, com recordes de temperaturas tanto aqui quanto no planeta. Os incêndios intensificam tudo isso. É uma combinação entre as mudanças climáticas e a prática criminosa de queimadas, especialmente neste mês de setembro, que é tradicionalmente crítico, mas parece que este ano está ainda pior”, analisa.
Fatores Contribuintes: Agronegócio e Queimadas Criminosas
A expansão desenfreada do agronegócio, os incêndios criminosos para grilagem de terras e a falta de fiscalização ambiental estão entre os principais fatores do aumento dos focos de incêndio, ressalta Paim. Para a pesquisadora, embora tenha havido alguma melhora nos últimos anos, a fiscalização e a prevenção ainda são insuficientes.
“É fundamental uma maior articulação entre os governos federal, estaduais e municipais. O Brasil tem boas leis, mas elas nem sempre são cumpridas. Os principais responsáveis pela destruição ambiental, muitas vezes, não são responsabilizados. Precisamos fortalecer os órgãos ambientais e garantir a fiscalização”, afirma.
Medidas do Governo e Propostas de Reformas
Segundo a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, o Governo Federal defendeu o endurecimento da pena para quem provoca queimadas de maneira criminosa. Ela estuda como usar meios legais para confiscar terras de autores de incêndios criminosos no país. A medida se inspira na lei que permite o embargo de propriedades de quem explora trabalho análogo à escravidão.
Paim ressalta que a situação, que agora alcança o Sul e Sudeste do país, já atinge há tempos as regiões da Amazônia, do Cerrado e do Pantanal.
“São questões antigas. Esses incêndios, muitos deles comprovadamente criminosos, afetam as populações tradicionais, indígenas e quilombolas que vivem nesses territórios já sofrem há muito tempo com os incêndios e a destruição ambiental, mas agora a situação se agrava ainda mais no contexto de crise climática global”, avalia Paim.
O Mato Grosso, conhecido como o “celeiro do Brasil”, lidera o ranking de focos de incêndio em 2024, segundo o INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). O estado teve um aumento de 215% em relação ao ano anterior, impulsionado principalmente pela conversão de áreas de floresta em pastagens e plantações.
O Efeito da Poluição na Saúde Pública
A alta poluição em São Paulo nesta semana é atribuída a diversos fatores, mas principalmente à fumaça proveniente de incêndios em todo o país, especialmente nas regiões Norte e Centro-Oeste. David Shiling Tsai, coordenador de projetos do IEMA (Instituto de Energia e Meio Ambiente), explica que o problema é resultado da combinação das queimadas e a condição meteorológica de seca extrema, que atinge 59% de todo o território brasileiro, segundo o Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais). Segundo o órgão, uma área de 5 milhões de km² está sob algum grau de seca no país.
“Essa combinação das queimadas e das condições meteorológicas causa o transporte e aprisionamento da poluição em diversas regiões do país, fazendo com que mesmo lugares onde não ocorrem focos de incêndio sofram os impactos disso. Então, há uma confluência de uma condição meteorológica desfavorável para dispersão de poluentes e a manutenção da atividade de queimadas”, explica.
A Necessidade de Reformas e Soluções Sustentáveis
A plataforma Monitor do Fogo, do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) e da rede MapBiomas, mostra que uma área de 8,8 milhões de hectares já foi queimada na Amazônia Legal só neste ano, um aumento de 96% em relação ao mesmo período do ano anterior.
O geógrafo Diógenes Rabello, militante do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), afirma que há uma clara correlação entre a expansão agrícola e o aumento dos focos de incêndio. Os dados do INPE e do MapBiomas corroboram essa afirmação, mostrando que as áreas mais afetadas pelos incêndios coincidem com as regiões de expansão da fronteira agrícola, especialmente aquelas voltadas para a produção de commodities.
“Os focos estão concentrados nas áreas de expansão agrícola. Podemos pegar como exemplo Ribeirão Preto, uma das regiões mais tradicionais em termos de produção de cana-de-açúcar. Essa é uma área historicamente moldada pelo agronegócio canavieiro, baseada na exploração da terra e dos recursos naturais. Não por acaso, é também uma das regiões com maiores focos de incêndio e visibilidade dos crimes ambientais”, diz Diógenes.
Desafios e Propostas para um Modelo Sustentável
Apesar de proibida pelo Código Florestal (Lei Federal No 12.651/2012), a “queima controlada” ainda é utilizada como prática de manejo de pasto e agrícola, como para a despalha da cana-de-açúcar.
“As queimadas são economicamente mais vantajosas para o agronegócio do que o desmatamento. Sabemos que, para o desenvolvimento desse setor, a terra precisa estar ‘limpa’, sem árvores, pessoas ou animais. Para o setor, o custo financeiro e social do desmatamento é muito maior do que simplesmente queimar. Quando se usa o fogo, é possível manipular o discurso, jogando a culpa nos ‘incêndios criminosos’ e desviando o foco da responsabilidade do agronegócio”, denuncia Rabello.
Para Diógenes Rabello, o governo federal precisa se posicionar e adotar políticas públicas que incentivem outras formas de uso da terra, como a agroecologia. “O agronegócio e o latifúndio são grandes promotores da crise climática, não apenas pelas queimadas, mas também pelo desmatamento e pela alteração dos regimes hídricos, como o ciclo das chuvas. Isso prejudica o meio ambiente de diversas formas”, diz.
O militante afirma que é preciso ir além de medidas paliativas e atacar a raiz do problema: o modelo de produção do agronegócio. “A solução passa pela reforma agrária, pela demarcação de territórios indígenas e quilombolas, e pela garantia da reprodução socioambiental das comunidades tradicionais”, diz.
“A agroecologia nos permite criar um modelo de desenvolvimento que respeita a natureza, promove a soberania alimentar e preserva nossos ecossistemas e biodiversidade. O agronegócio já se mostrou insuficiente para garantir os direitos sociais e ambientais das populações rurais e urbanas. É preciso ter uma reforma radical e um enfrentamento do agronegócio com alternativas verdadeiras e sustentáveis”, finaliza.