Em entrevista, a ativista alemã fala sobre sua visão política e seus objetivos, dentro e fora do parlamento
Carola Rackete é candidata do Die Linke para o Parlamento Europeu
23/04/2024
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A ativista Carola Rackete ganhou as manchetes da Alemanha pela primeira vez em 2019, quando, como capitã do navio humanitário Sea-Watch 3, teve negada a autorização de atracar em Lampedusa, na Itália, após um impasse com o então ministro do Interior italiano, o provocador de extrema direita Matteo Salvini. Ainda que as atenções tenham se voltado mais para Rackete graças a sua luta pelos direitos das pessoas migrantes, a ativista já tinha uma atuação profunda em outras campanhas — sobretudo no combate às mudanças climáticas — há muito mais tempo, buscando construir articulações entre ambientalistas, pessoas que lutam por justiça social e a militância antirracista para promover um movimento maior e mais forte para todas as pessoas. Como explicou no livro de 2021 que publicou pela Fundação Rosa Luxemburgo, É hora de agir, “Estamos em um ponto de virada na história da humanidade. Para impedir o colapso climático e a extinção, os movimentos ambientais precisam ser ativamente antirracistas e se unir às lutas por justiça social”.

No ano passado, Rackete surpreendeu apoiadores e críticos ao anunciar que concorreria nas eleições europeias como candidata independente pelo Die Linke, partido da esquerda alemã. Desde então, ela passou a viajar pelo país — e pelo continente — defendendo que a Alemanha precisa de uma voz militante independente no Parlamento Europeu. A equipe da Fundação Rosa Luxemburgo em Berlim conversou com com Rackete durante a campanha para conhecer melhor sua visão política e seus objetivos, dentro e fora do parlamento.

Carola, você é conhecida principalmente por sua atuação militante com movimentos sociais. Por que está concorrendo agora ao parlamento da UE pelo Die Linke?

Para fazer com que partidos e governos implementem mudanças, os movimentos sociais precisam criar pressão nas ruas. Isso funciona melhor quando há aliados no parlamento. Eu gostaria de ajudar os movimentos da Europa e do Sul Global a serem ouvidos.

Também gostaria de usar minha candidatura para chamar atenção ao fato de que a guinada à direita que estamos vendo no momento impõe uma necessidade urgente para os partidos de esquerda com uma pauta progressista nos parlamentos. Se vamos interromper a crise climática e a extinção das espécies, precisamos chegar ao coração da injustiça. Como não há nenhum outro partido que se oponha ao capitalismo e esteja disposto a discutir propriedade pública e desapropriações por utilidade pública, o Die Linke é a única opção, até onde sei.

Em que questões você vai se concentrar se for eleita para o Parlamento Europeu?

Eu atuo na área de conservação ambiental há muitos anos, sobretudo em campanhas da sociedade civil para proteger o meio ambiente e os direitos humanos. Como parlamentar, continuarei trabalhando pela justiça climática e a conservação/biodiversidade, incluindo também a agricultura, na interseção entre as duas questões. Meu foco estará na justiça social e global, em um esforço para combater as causas que estão na raiz dos problemas ambientais.

Há três questões específicas aqui: pagar pela transformação, tornar pública a infraestrutura de energia e aquecimento e garantir a conservação justa de recursos. Precisamos sensibilizar a população a respeito da influência do lobby na política e fazer uma campanha por mais democracia e transparência nas instituições da UE.

Como seria uma política climática socialmente justa pensando no nível da Europa?

Uma reforma tributária seria uma forma de pagar pela mitigação da crise climática e, ao mesmo tempo, levar em conta questões de justiça social. Precisamos introduzir novos impostos para empresas transnacionais e multinacionais. Um imposto sobre transações financeiras e uma tributação unitária para empresas no nível da UE com um imposto de 25% sobre os lucros das empresas ajudaria a unificar a tributação em toda a UE. Esse dinheiro deveria então ser investido em medidas para a justiça climática e para transformar setores relevantes, como o transporte público local. O transporte público deve ser gratuito e sua infraestrutura deve ser massivamente ampliada, pois um sistema de transporte público maior e melhor leva tanto à redução do uso do transporte privado e a mais mobilidade para todas as pessoas. A receita tributária também pode ser utilizada para transformar a agricultura.

A expansão do uso de energias renováveis é outra área em que podemos avançar no combate à crise climática, além de trazer alívio para consumidoras e consumidores. A geração de energia e aquecimento deve ser tirada das empresas e colocada nas mãos de cooperativas ou do Estado para que a administração do serviço não tenha fins lucrativos. Todas as pessoas devem ter acesso a energia barata e produzida localmente, oferecida por empresas municipais ou cooperativas de energia que operem seguindo princípios de uma economia social com uma escala de preços variáveis.

“É preciso honestidade para tratar da situação dramática da catástrofe climática e da desigualdade de riqueza, e afirmar que não podemos continuar como estamos.”

A proteção da justiça climática e social também pode andar de mãos dadas no setor habitacional, se evitarmos sua inclusão no Comércio Europeu de Licenças de Emissão. Como quem aluga não têm influência no tipo de aquecimento que o apartamento onde mora terá nem na sua boa manutenção, a definição de preços fixos aqui é socialmente desigual. Em princípio, o Fundo Social para o Clima que foi proposto é um passo na direção certa, mas seu financiamento é insuficiente, e ele necessita de um orçamento maior. Esse dinheiro deveria ser utilizado para ampliar o setor habitacional sem fins lucrativos para garantir a promoção de maior igualdade na moradia.

Uma lei de conservação de recursos promoveria políticas climáticas com equidade social, como, por exemplo, disponibilizar água potável para todas as pessoas. Em um nível muito básico, precisamos limitar com urgência nossa demanda por recursos e reduzi-la ano a ano. Isso também ajudaria a interromper a exploração do Sul Global e contribuiria para desmantelar as estruturas neocoloniais.

Como é possível implementar os passos necessários para combater a crise climática de modo que a sociedade aceite?

Com honestidade e aprovando leis que proíbam a queima de combustíveis fósseis, que obriguem os poluidores a pagarem e que diminuam o fardo sobre a população mais pobre. Não é possível confiar que as empresas privadas vão implementar voluntariamente medidas radicais e se responsabilizar por vontade própria. O lobby delas é poderoso demais, e os interesses empresariais são consistentemente atendidos dentro das estruturas que existem.

Isso mostra que precisamos de leis, mas, no limite, também de um sistema econômico diferente. Não existe isso de “capitalismo verde” que se manteria dentro dos limites do planeta. É preciso honestidade para tratar da situação dramática da catástrofe climática e da desigualdade de riqueza, e afirmar que não podemos continuar como estamos. A solução está na redistribuição radical de riquezas e na transformação das relações de poder.

Nossa única chance é construir alianças que reúnam sindicatos, o partido e os movimentos sociais. Estou concorrendo para ajudar a fazer isso acontecer.

Há meses os protestos de pessoas agricultoras na Alemanha e em outros países europeus têm chamado a atenção dos políticos. De que formas a política agrícola da UE precisa mudar?

É bem simples: as pessoas agricultoras precisam ter condições de viver do próprio trabalho. Precisamos interromper a tendência cada vez maior de agricultores e agricultoras que desistem de suas lavouras por conta de pressões econômicas. Isso leva a um aumento contínuo no tamanho da exploração agrícola, porque a terra é comprada por grandes operações. Jovens agricultoras e agricultores precisam ter condições de adquirir terras para instalar suas produções próprias.

Precisamos enfrentar o fato estarrecedor de que 60% das terras agrícolas da Alemanha não pertencem mais a agricultoras e agricultores, mas sim a investidores e grandes empresas. Isso levou a um aumento substancial nos preços — a terra agrícola hoje custa o dobro do que custava 15 anos atrás. A terra se tornou objeto de especulação. Precisamos introduzir limites de tamanho, para que as empresas e os investidores, alguns sem nenhuma conexão com a agricultura, não provoquem o aumento dos preços da terra. Fatores sociais e ambientais devem ser centrais e prioritários no arrendamento da terra — o bem comum deve ser a pauta aqui, não o lucro.

A escolha de quem arrenda a terra determina se o apoio será dado a propriedades pequenas e diversificadas ou somente a grandes operações agrícolas industriais. Isso significa que os proprietários têm uma ferramenta poderosa, que podem utilizar para ajudar a combater a crise climática.

E mais importante que isso, os subsídios não devem estar vinculados ao tamanho da terra, e sim devem ser concedidos para práticas sociais e ambientais. É o dinheiro dos nossos impostos que é repassado a fazendas na forma de subsídios. Esses subsídios devem ser aplicados nos interesses da sociedade, e a sociedade quer uma pecuária orientada para o bem-estar, cultivos diversos e produção sustentável, conservação das águas e esforços para aplacar a crise climática. As pessoas agricultoras podem implementar isso, desde que a política agrícola seja direcionada para o bem comum em termos de distribuição de subsídios. E a Política Agrícola Comum da União Europeia deve disponibilizar recursos financeiros para as transformações agrícolas necessárias, como a redução do número de animais e o cultivo e comércio de leguminosas.

As agricultoras e os agricultores que estão protestando têm os mesmos interesses das associações do setor?

Até certo ponto, sim, mas as associações, em geral, atuam sobretudo pelos interesses das grandes empresas e da agroindústria. Hoje, são principalmente fazendas com grandes explorações agrícolas que se beneficiam de recursos pagos pela UE, e não produções orgânicas e outras com áreas menores.

A imensa maioria das pessoas agricultoras quer viver da venda de seus produtos, não de subsídios. No entanto, hoje elas são muitas vezes obrigadas a vender seus produtos abaixo do preço de custo para as quatro maiores redes varejistas do ramo de alimentos, Edeka, Rewe, Aldi e Lidl, que controlam mais de 75% do mercado, porque, por exemplo, faltam estruturas alternativas de processamento e distribuição. Em países como França e Espanha, é proibido vender os produtos abaixo do preço de custo — isso poderia ser implementado em toda a UE.

“Sem uma política agrícola focada na mitigação da crise climática, não há nenhuma chance para a política climática e a justiça climática.”

Mas há também famílias agricultoras e pequenas e médias produtoras e produtores de orgânicos que compreendem que a crise climática — que veem no campo todos os dias — está impondo a necessidade urgente de uma transformação ampla, e essas pessoas estão protestando para que o governo apoie mais sua contribuição para essa transição. Seus interesses não são os mesmos das associações: são pessoas que estão preocupadas com questões como sistemas alimentares regionais, apoio à agricultura orgânica e financiamento para medidas de conservação que querem implementar.

Há diferenças nesse sentido também quando se fala em regulamentação da engenharia genética. A Associação de Produtores Rurais Alemães fala expressamente a favor das propostas atuais de diminuir a regulamentação na área. Por outro lado, produtoras e produtores orgânicos estão revoltados, porque os organismos geneticamente modificados podem contaminar os produtos orgânicos em toda a cadeia de produção de alimentos: as sementes de plantas geneticamente modificadas podem facilmente ser levadas pelo vento ou por animais para plantações próximas; compartilhar maquinário, algo que não é incomum, também traz riscos; e os grãos geneticamente modificados podem arruinar a colheita orgânica em usinas e estruturas de armazenagem. Portanto, a desregulamentação da legislação já existente representaria um problema para a agricultura orgânica, e também é rejeitada pela maioria das consumidoras e dos consumidores da Alemanha.

Qual é o papel da política agrícola na política climática?

A política agrícola é extremamente importante para a política climática. Na Alemanha, a agricultura gera cerca de 65 milhões de toneladas de dióxido de carbono equivalente, ou 7,5% das emissões do país. Se considerarmos também as emissões resultantes da drenagem de pântanos para uso agrícola, da aragem de pastos, da queima de combustíveis fósseis na agricultura e da produção de pesticidas e fertilizantes, já são mais 43 milhões de toneladas, o que representa 12,5% das emissões da Alemanha.

Mas além dessas emissões diretas, a política agrícola também trata do uso e da poluição da água, do uso de agrotóxicos e da preservação de solos saudáveis. Esses problemas estão todos relacionados à pecuária, que gera um quinto das emissões de carbono da agricultura. Trinta por cento da terra agricultável do mundo é utilizada para a produção de soja, trigo e milho para ração animal. Na UE, esse índice chega a 60%. A agroindústria é uma força motriz por trás da catástrofe climática e da perda de biodiversidade.

Sem uma política agrícola focada na mitigação da crise climática, não há nenhuma chance para a política climática e a justiça climática. É preciso pensar em escala global. O acordo do Mercosul é um bom exemplo: ele busca facilitar e, portanto, aumentar o comércio dos mesmos produtos que levam a uma agricultura que utiliza a prática das queimadas na Amazônia e em outras florestas tropicais biodiversas e promove a expulsão de populações indígenas e a violação de direitos humanos. O plano de relaxar restrições sobre a exportação de certos produtos da UE também é problemática, pois inclui, por exemplo, agrotóxicos de empresas químicas europeias que, em alguns casos, sequer foram autorizados na UE. Facilitar as exportações e aumentar o uso desses produtos químicos colocaria a saúde da população local em situação de risco grave — e teria um impacto desastroso na natureza. Eu gostaria de atuar para combater isso no Parlamento Europeu.

Foto: Carola Rackete na Audiência no Parlamento Europeu, 2019, CC BY-SA 2.0, The Left, via Flickr

Traduzido do inglês por Aline Scátola.