As investigações sobre o caso Marielle revelam uma realidade flagrante: as milícias estão imbricadas no próprio Estado. Policiais, parlamentares e empresários fazem parte de um mesmo esquema criminoso que controla territórios, elege candidatos e manipula políticas públicas para manter seus interesses. O assassinato de Marielle Franco é um símbolo desse modelo – e sua elucidação expôs uma rede de poder que vai do crime organizado aos mais altos cargos do governo.
Segundo denúncia da Procuradoria Geral da República (PGR), o deputado Chiquinho Brazão (sem partido-RJ), seu irmão Domingos Brazão, conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro, e o delegado Rivaldo Barbosa planejaram o assassinato da vereadora Marielle Franco. A motivação do crime estaria ligada à atuação de Marielle contra a grilagem de terras em áreas controladas por milícias na zona oeste do Rio de Janeiro.
Em 24 de março de 2024, os três foram presos preventivamente sob a acusação de serem os mandantes do crime. Atualmente, aguardam julgamento, mas ainda não há informações atualizadas sobre uma data específica.
Contexto político do ano do assassinato
Após o golpe contra a ex-presidenta Dilma Rousseff, o Brasil passou por um período de forte instabilidade política. Em 2018, o Brasil estava sob o comando da Garantia da Lei e Ordem (GLO), decretado em maio de 2018. A norma, que transfere poderes de polícia a militares, foi decretada pelo presidente Michel Temer em 16 de fevereiro de 2018.
Em 28 de fevereiro de 2018, Marielle foi nomeada relatora da comissão que acompanharia a intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro. Conhecida por sua atuação em defesa dos direitos humanos e por criticar a violência policial nas favelas, assumiu a relatoria com o objetivo de monitorar e fiscalizar as ações das forças militares durante a intervenção. Quinze dias após sua nomeação, em 14 de março de 2018, Marielle e o motorista, Anderson Gomes, foram assassinados.
Em outubro do mesmo ano, Jair Bolsonaro foi eleito presidente pelo Partido Social Liberal (PSL). Sua campanha foi marcada por um discurso de incentivo ao armamento, à militarização e à atuação de grupos paramilitares, agenda consolidada durante seu mandato, entre 2019 e 2022.
Quem matou Marielle?
Após quase um ano sem respostas, a investigação teve seu primeiro avanço em março de 2019. Dois ex-policiais militares, Ronnie Lessa e Élcio de Queiroz, foram presos sob a acusação de terem executado o crime.
Ronnie Lessa, ex-policial militar e ex-integrante do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope), é apontado como o autor dos disparos. Ele possuía ligações com milícias e mantinha um arsenal particular que incluía 117 fuzis M16 incompletos, guardados na residência de um amigo a seu pedido. Já Élcio de Queiroz, expulso da Polícia Militar anos antes, atuou como motorista do veículo utilizado na execução.
Em 31 de outubro de 2024, após dois dias de julgamento, os ex-policiais militares Ronnie Lessa e Élcio de Queiroz foram condenados respectivamente a 78 anos e 9 meses e a 59 anos e 8 meses de reclusão.
Por quê?
Marielle foi morta porque sua atuação política representava um obstáculo direto ao império econômico das milícias. Em depoimento, Ronnie Lessa, hoje preso, afirmou que a vereadora atuava contra os interesses mobiliários dos irmãos Brazão em áreas dominadas pela milícia.
Segundo Lessa, em matéria publicada no Jornal GGN, “um dos ápices da irritação dos irmãos Brazão foi o movimento feito pela então parlamentar na votação do PLC n.º 174/2016, de autoria do próprio Chiquinho Brazão, então vereador do Rio, que tratava da regularização de terras em áreas dominadas pela milícia.”
Já de acordo com investigações feitas pela Polícia Federal (PF), é possível que haja mais motivações para o crime também.
A partir de então, a questão central da investigação mudou…
Quem mandou matar Marielle?
A resposta, no entanto, demoraria anos, não por falta de indícios, mas porque os responsáveis tinham poder suficiente para desviar e manipular a investigação.
Os primeiro anos de investigações após o assassinato foram marcados por tentativas de destruir provas e eliminar testemunhas. Em 2021, Edmilson “Macalé”, suspeito de ser o intermediário da contratação de Lessa, foi morto a tiros. O sargento reformado da Polícia Militar (PM) foi citado em delação por Élcio de Queiroz como responsável por intermediar a contratação de Ronnie Lessa.
Lucas do Prado Nascimento da Silva, conhecido como Todynho, foi executado em 3 de abril de 2018, menos de um mês após o assassinato de Marielle e Anderson, em um possível caso de queima de arquivo. Investigado pela Delegacia de Homicídios da Capital, ele teria sido responsável por alterar a documentação do Cobalt prata usado pelos assassinos no dia 14 de março de 2018 e era suspeito de clonar o veículo. As investigações indicam que sua execução pode ter sido ordenada para impedir que revelasse informações sobre o crime e seus mandantes.
Enquanto isso, dentro do próprio aparato de segurança, a investigação estava sendo sistematicamente desviada. Em novembro de 2018, o então ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, revelou que a Polícia Federal investigaria a atuação de um grupo criminoso infiltrado no Estado, suspeito de tentar obstruir as investigações. Essa decisão foi tomada após a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, solicitar a intervenção da PF devido a indícios de que agentes públicos, milicianos e outros criminosos estariam atuando para dificultar o esclarecimento do caso.
Um destes agentes era o delegado Rivaldo Barbosa. Ele foi nomeado chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro em 8 de março de 2018 e tomou posse em 13 de março de 2018, um dia antes dos assassinatos. As investigações subsequentes revelaram que o delegado teria atuado para proteger os mandantes do crime, manipulando provas e impedindo que as apurações chegassem aos verdadeiros responsáveis.
De acordo com as acusações, Rivaldo Barbosa teria recebido propina para garantir que o caso não avançasse contra os irmãos Domingos e Chiquinho Brazão, apontados como mandantes do assassinato. Em março de 2024, ele foi preso junto com os dois políticos e, em junho de 2024, tornou-se réu no Supremo Tribunal Federal (STF) por homicídio qualificado e obstrução da Justiça.
O cerco aos mandantes
Apenas em 2023, sob o governo Lula, a investigação foi federalizada de fato. O ministro da Justiça, Flávio Dino, anunciou prioridade absoluta para a elucidação do caso, e a PF passou a conduzir as apurações com mais independência.
Foi nesse contexto que surgiram as delações premiadas que mudariam o rumo da investigação. Em 2023, Élcio de Queiroz decidiu colaborar e apontou Domingos Brazão como mandante. Alguns meses depois, em março de 2024, Ronnie Lessa também fechou a delação e confirmou a participação de Chiquinho Brazão e Rivaldo Barbosa no planejamento do crime.
Com essas novas provas, o Supremo Tribunal Federal autorizou a operação que culminou na prisão dos mandantes. Em 24 de março de 2024, a Polícia Federal prendeu Domingos Brazão, Chiquinho Brazão e Rivaldo Barbosa. No mês seguinte, a Procuradoria-Geral da República os denunciou ao STF por homicídio qualificado e organização criminosa.
Os nomes de Domingos e Chiquinho Brazão, no entanto, haviam surgido como suspeitos em 2019, mas as evidências contra eles foram sistematicamente suprimidas. No entanto, apenas em 2023-2024, com as delações e a federalização do caso, é que se pôde comprovar seu envolvimento direto no planejamento do assassinato.
Em 18 de junho de 2024, o STF aceitou as denúncias contra os irmãos Brazão e Rivaldo Barbosa, tornando-os réus. Caso condenados, eles poderão pegar penas superiores a trinta anos de prisão.
Mulher negra, mãe, filha e “cria” da favela
Marielle era “cria” do Conjunto de Favelas da Maré, localizado na Zona Norte do Rio de Janeiro. Estudou no curso pré-vestibular comunitário do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (Ceasm), organização que já ajudou mais de mil moradores da Maré a entrar em universidades públicas e particulares do Rio e do país, ciências sociais na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (Puc-Rio) e fez mestrado em Administração Pública pela Universidade Federal Fluminense (UFF), tendo dissertação com o tema “UPP: a redução da favela a três letras”.
A vereadora era referência para os movimentos de favelas, negro e feminista; era mãe, irmã, filha. Estava prestes a se casar com a Mônica Benício, hoje também vereadora no Rio de Janeiro. Marielle foi a quinta vereadora mais votada do Rio nas eleições de 2016, com 46.502 votos em sua primeira disputa eleitoral e se destacava por defender a vida e os direitos dos favelados.
Sete após o crime, Marielle se tornou um símbolo da luta por democracia no Brasil. Sua morte foi um ataque direto ao Estado de Direito, e seu caso escancarou a fusão entre política e crime organizado.
Gizele Martins é comunicadora comunitária da Favela da Maré (BR). Jornalista (Puc-Rio) Mestre em Educação, Cultura e Comunicação em Periferias Urbanas (UERJ). Doutoranda em Comunicação (ECO/UFRJ). Atualmente, cumpre estágio doutoral no ICNOVA Lisboa. É autora do livro: “Militarização e censura – a luta por liberdade de expressão na Favela da Maré”
Katarine Flor é jornalista e coordenadora de comunicação na Fundação Rosa Luxemburgo.
Foto: Familiares durante ato em memória de Marielle Franco e Anderson Gomes, na Praça Mário Lago, no centro do Rio de Janeiro. Crédito: Tomaz Silva/Agência Brasil