Enquanto Trump assina um decreto contra a “praga” dos canudinhos de papel e impõe tarifas abusivas até mesmo a um de seus seguidores mais fiéis, e enquanto o Capitólio discute a compra da Groenlândia para rebatizá-la de “Red, White, and Blueland”, um golpe político, facilitado pelo mito da Inteligência Artificial (IA), começa a ser gestado nas profundezas da burocracia do governo dos EUA. E esse golpe tem avançado com a velocidade de uma startup. Com uma narrativa neoliberal de eficiência, meritocracia e tecnossolucionismo – como diversos analistas têm alertado –, o que está ocorrendo nos EUA é uma verdadeira captura das instituições liberais com o intuito de promover o monopólio total da informação, condição necessária para consumar o projeto político-econômico de instauração da “broligarquia” [oligarquia dos brothers]”.
Para entender como essa revolução dos bilionários está transformando mundialmente o ecossistema de informação e a liberdade de expressão, neste artigo compartilho algumas análises, extraídas de diversas fontes, que ajudam a identificar as estratégias narrativas utilizadas para justificar esse avanço autoritário. Mais especificamente, como os mitos em torno da IA estão sendo disseminados na forma de populismo digital.
É possível afirmar que esse golpe teve início simbolicamente em outubro de 2022, no dia em que o bilionário sul-africano Elon Musk entrou na sede do Twitter carregando uma pia[1] para anunciar a compra dessa rede social. Um investimento de 44 bilhões de dólares para colocar os algoritmos da plataforma a serviço da batalha cultural contra o “vírus woke”, em geral, e a favor da campanha de Trump em particular, com resultados visíveis. Para isso, foi preciso adotar uma série de medidas caóticas (muito bem descritas no livro Character Limit, de Kate Conger e Ryan Mac), levando a uma perda de 79% do valor de mercado da empresa. Uma perda que Chris Hayes (autor de The Sirens’ Call: How Attention Became the World’s Most Endangered Resource) acredita que agora está sendo recompensada com um prêmio muito maior: o poder político de redefinir a complexa burocracia do império americano à imagem e semelhança de uma versão brutal da chamada ideologia californiana.
O poder de Musk se manifesta agora na administração do DOGE, uma comissão consultiva presidencial ironicamente batizada com o nome de uma memecoin, criada com o objetivo de “reestruturar o governo federal e eliminar regulamentações para reduzir gastos e aumentar a eficiência”. Embora o Congresso ainda não tenha aprovado a atuação desse departamento, meios de comunicação como The Verge e 404 contam como funcionários e estagiários zoomers das empresas de Musk estão invadindo agências federais exigindo acesso aos sistemas computacionais mais restritos, entre os quais está um jovem de 19 anos que se autodenomina “Big Balls” em fóruns on-line.
Armados com um conjunto de ferramentas de IA não especificadas, os membros do DOGE identificam supostos casos de “desperdício, fraude e abuso”, sobre os quais eles tuitam sem parar (com o algoritmo a seu favor) para justificar a intervenção em várias agências estatais, a censura de portais oficiais sobre meio ambiente, demissões em massa de funcionários e perseguição ideológica. Tudo isso com pouca transparência, pouca deliberação democrática e nenhum controle institucional.
E é aí que está a estratégia narrativa, como explica o pesquisador e hacker Eryk Salvaggio na Tech Policy Press: “A inteligência artificial é uma tecnologia para inventar desculpas. O que ela produz de melhor são as justificativas. Se você quiser eliminar uma força de trabalho, uma burocracia regulatória ou prestação de contas, basta dizer que isso pode ser feito por meio da IA”.
O DOGE se baseia em uma das narrativas fundamentais da IA generativa: a ilusão da eficiência. Com sua aplicação ao campo político, busca-se medir a burocracia por seus produtos finais, considerando que os processos democráticos, como o debate, a deliberação ou o consenso, são uma perda de tempo. Meredith Whittake, uma das fundadoras do AI Now Institute e atual presidente da Signal Foundation, diz que, para os poderosos, “a IA é a narrativa, não a tecnologia. A vigilância e a infraestrutura são as condições materiais.
Portanto, a IA, nesse caso, é muito mais um dispositivo narrativo. Não tem nada a ver com supostos gênios usando a tecnologia de forma extraordinária para desvendar casos que seriam impossíveis de detectar de outra forma. Por exemplo, uma checagem do Washington Post contesta que os casos apresentados pelo DOGE sejam mesmo precisos.
De qualquer forma, o DOGE tem conseguido impor apenas cortes equivalentes à eliminação de programas de diversidade ou de mudanças climáticas, uma decisão política que já estava tomada. Até o próprio Musk precisou admitir que uma das supostas revelações bombásticas do projeto estava incorreta: que a USAID teria enviado US$ 50 milhões em preservativos para Gaza, como a checagem da Reuters já tinha revelado.
Portanto, o que o governo busca de fato automatizar não é a burocracia, mas a tomada de decisões de forma democrática. Essa é uma narrativa tecnossolucionista típica, que busca legitimar a destruição dos mecanismos de controle civil e concentrar o poder na mão das poucas empresas que dominam a tecnologia, algo que também pode acontecer com a implementação do voto eletrônico em certos contextos, levando a uma perda de direitos. “É uma terceirização da política, que transfere o trabalho complexo de ganhar o debate político para a falsa autoridade da análise automatizada”, diz Salvaggio. É exatamente o que o DOGE está fazendo para justificar sua atuação fora do sistema constitucional. Em uma velocidade vertiginosa.
E assim chegamos ao ingrediente final: o DOGE age com uma velocidade insana, levando a filosofia das startups ao extremo, passando da narrativa “Move fast and break things[2]” (típica do capitalismo corporativo que tornou o Facebook possível) para “Move fast and burn everything[3]”, uma visão claramente tecnoligárquica.
Essa estratégia busca saturar o cenário de forma que nem a mídia, nem o Congresso, nem os tribunais consigam acompanhar o ritmo. Uma espécie de blitzkrieg tech que combina o charme liberal do Vale do Silício com o populismo digital do movimento Make America Great Again (MAGA): “Nesse ritmo, o DOGE conseguirá acessar todos os servidores do governo muito antes de a Suprema Corte ter a chance de se pronunciar”, conclui Brian Barrett, editor de notícias da Wired.
“O objetivo final é substituir a força de trabalho humana por máquinas”, disse um membrodo governo dos EUA que acompanha as atividades do DOGE. “Tudo o que puder ser automatizado por máquinas será substituído. E os tecnocratas substituirão os burocratas”.
Tradução: Luiza Mançano
*Alejandro Valdez Sanabria é cofundador El Surti. Membro atual do JournalismAI Innovation da Polis / London School of Economics.
Publicado originalmente em La Precisa
Arte: La Precisa
[1] N.T.: O ato de Musk de carregar uma pia (sink, em inglês) foi divulgado em sua conta no então Twitter (agora X) com a legenda “Let that sink in!”. O trocadilho, nesse contexto, poderia ser traduzido como “Deixem a ficha cair”.
[2] N.T.: “Mova-se rápido e quebre coisas”.
[3] N.T.: “Mova-se rápido e queime tudo”.