A venda anual de carros elétricos deve aumentar mais de vinte vezes até 2040. Essa tendência é questionada por especialistas e ativistas
Comprar um carro elétrico contribui no combate à crise climática?
02/05/2024
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Texto: Rute Souza

Foto: José Cruz/ Agência Brasil

Os carros privados elétricos são vendidos como a grande solução para frear a crise climática, já que o setor de transportes é um dos que mais emitem gases do efeito estufa para a atmosfera. A venda anual deste tipo de veículo deve aumentar mais de vinte vezes até 2040, como aponta a Agência Internacional de Energia.

Essa tendência é questionada por especialistas e ativistas, que defendem que estes investimentos deveriam ser direcionados, prioritariamente, para o transporte de massa, como ônibus, VLTs, bondes ou trens elétricos. Segundo o órgão, a demanda por baterias de íon-lítio já cresceu, fonte de energia destes veículos. Em 2022, chegou a 65% em todo o mundo. Só na China, o aumento foi de 70%.

Com o aumento da demanda por carros elétricos, aumentam também os impactos da mineração, principalmente no Sul Global. Isso porque minérios como o lítio e a bauxita são elementos essenciais para a fabricação de baterias,  como aponta o relatório Em Nome do Clima – Mapeamento Crítico: transição energética e financeirização da natureza.

O estudo foi realizado pela Fundação Rosa Luxemburgo, em parceria com o Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro).

Apesar dos impactos da mineração recaírem, principalmente, sobre o Sul global, o relatório aponta que o crescimento das vendas dos automóveis elétricos está concentrado no Norte Global. A Noruega é o principal país consumidor – os carros elétricos representam 80% dos veículos vendidos entre 2021 e 2022 no país. A América Latina sequer entra na lista dos maiores consumidores.

No Brasil, os carros elétricos representaram uma fatia de apenas 1% do total de vendas em 2023. Foram 19.310 unidades comercializadas. Os países da região são vistos como “exportadores de sustentabilidade” e de matérias-primas para a fabricação dos automóveis.

Mineradoras apostam em ‘mercado verde’

Mesmo sem um mercado interno consumidor, o número de empreendimentos para mineração de lítio subiu no país. Diversas empresas nacionais e transnacionais já começaram a atuar em Minas Gerais ou a demonstrar interesse em iniciar projetos de extração mineral, enquanto outras começam a chegar para realizar pesquisas para implementação de projetos no Ceará, Bahia, Pernambuco e Rio Grande do Norte.

O estudo Em Nome do Clima identificou 1.371 requerimentos de pesquisas para projetos com o mineral entre 2019 e 2023, de um total de 2.930 processos.

Somente em Minas Gerais, foram 679 requerimentos no mesmo período. No Ceará, esses processos aparecem a partir de 2022, sendo contabilizados 434; na Bahia totalizam 71; em Pernambuco, oito requerimentos; e no Rio Grande do Norte, 103 a partir de 2022 e 2023.

Esse salto significativo acompanhou o avanço da exploração de lítio pela canadense Sigma Lithium, no Vale do Jequitinhonha, bem como o lançamento do “Vale do Lítio” pelo governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Partido Novo), em maio de 2023.

Pedro Rocha Leão é um dos 12 pesquisadores do relatório e integrou o eixo de transição energética da pesquisa. Ele analisou as legislações e regulações sobre o setor no país. O estudioso afirma que as mineradoras enxergam a transição energética como uma oportunidade para limpar suas imagens já desgastadas por desastres ambientais.

“O foco principal não é impulsionar o mercado interno, mas impulsionar a ampliação da mineração para responder à demanda internacional. Não há projetos que pensem a produção nestes carros elétricos no dia a dia da população brasileira. A crise climática ‘caiu como uma luva’ para o setor minerário”, afirma.

“Os países periféricos se acostumaram a ser exportadores e agora, eles, também correspondem a essa demanda internacional. Se, por um lado, o Brasil é um país que tem investido em novas formas de tecnologias, por outro, acaba não discutindo com complexidade sua posição. Boa parte do minério vai para fora. Ou seja, não solucionamos a crise climática e mantemos a posição do Brasil como uma economia de recursos primários”, analisa Leão .

A pesquisadora Caroline Boletta, que também participou do estudo, ressalta que o custo dos automóveis ainda é muito elevado para a população brasileira.

“Em Minas Gerais, as pessoas estão sendo afetadas pela mineração para atender esse mercado de luxo, sendo que elas não têm como comprar ou usar estes carros naqueles territórios. Nos locais onde fizemos a pesquisa, por exemplo, mal existem estradas”, pontua.

Além disso, a apropriação de bens naturais minerais também ocasiona pressões sobre o solo e os territórios, já que, para realizar a extração, é preciso desflorestar e retirar construções, com uso intenso dos recursos hídricos da área a ser minerada.

Manifestações contra a tesla na Alemanha

A Tesla, empresa da qual o bilionário Elon Musk é o maior acionista, é líder do mercado de carros elétricos. Grande parte do lítio necessário para as baterias é extraída, especialmente no Chile, Argentina e Bolívia. A atuação da empresa já tem afetado os ecossistemas locais e as populações locais que estão enraizadas nestas áreas há séculos.

A empresa também pretende comprar uma área florestal de cerca de 100 hectares para construir um pátio de carga e um novo galpão de produção de carros elétricos no município de Grünheide, na Alemanha. Em uma consulta pública, a maioria dos cidadãos da cidade se manifestou contra esta expansão.

O integrante do Observatorio Latinoamericano de Conflictos Ambientales, no Chile, Lucio Cuenca, visitou o campo de protesto contra a Tesla em Grünheide em fevereiro de 2024. Em conversa como sos funcionários do departamento de América Latina da Fundação Rosa Luxemburgo, o ativista destaca que “uma transição energética e de mobilidade justa só será possível se o Norte e o Sul Global lutarem juntos por ela e se estiverem em pé de igualdade”.

Cuenca explica que a fábrica da Tesla está ligada a uma forma de transição energética que está diretamente relacionada com o aumento da exploração de matérias-primas na América do Sul. “Grande parte do lítio necessário para as baterias é extraída, especialmente no Chile, Argentina e Bolívia. A mineração de cobre também está aumentando. E isso afeta os ecossistemas locais e as populações locais que estão enraizadas nestas áreas há séculos. Suas fontes de água estão em risco. No Chile, especialmente no Deserto do Atacama, o deserto mais seco do mundo”.

“A eletromobilidade por si só não é uma solução para a profunda crise climática que enfrentamos. Não basta substituir os carros convencionais por carros privados elétricos. Precisamos de uma mudança completa em nosso estilo de vida. Temos de mudar o nosso modo de vida para deixarmos de depender de um consumo de energia tão elevado e de uma extração tão excessiva de matérias-primas da natureza. Isto porque, estes são os problemas que estão na base desta crise”, explica.

Mudanças não podem ser individuais

A eletrificação da economia deve acompanhar mudanças no modo de vida e consumo e de utilização do espaço urbano. É o que aponta Peter Norton, professor associado de história no Departamento de Engenharia e Sociedade da Universidade da Virgínia.

Norton é autor do livro “Autonorama: uma história sobre carros ‘inteligentes’, ilusões tecnológicas e outras trapaças da indústria automotiva”. O livro foi lançado em português pela Fundação Rosa Luxemburgo e pela editora Autonomia Literária em outubro de 2023.

Para ele, os carros elétricos, isolados, estão longe de ser uma solução – palavra que o estudioso rejeita.  “A percepção equivocada dos carros elétricos como ‘soluções’ é mais perigosa do que a própria existência de carros a combustão, porque se deixarmos supostas soluções nos absolvem de nossas responsabilidades, paramos de tentar. Solução não é sinônimo de ferramenta. As palavras são opostas. Uma solução absolve o usuário da responsabilidade; uma ferramenta impõe responsabilidade ao seu usuário”.

De acordo com o especialista, “a percepção equivocada dos carros elétricos como ‘soluções’ pode piorar nosso problema, porque esta palavra engana as pessoas ao supor que a tecnologia sozinha ‘resolve’ tudo para nós e que a condução ilimitada pode continuar. As campanhas de marketing das montadoras e empresas de tecnologia amplificam essa ameaça”, diz.

Norton defende que não se deve permitir que empresas privadas influenciem políticas públicas. “Todo mundo entende que se você está doente, vai a um médico, não a uma empresa farmacêutica. O mesmo princípio se aplica ao transporte. Se precisamos de uma mobilidade mais sustentável, saudável e inclusiva, não devemos começar indo às empresas com fins lucrativos”, pondera.

“Acima de tudo, uma empresa quer vender seus produtos. Isso significa que uma empresa vai falsificar seus produtos apenas para vendê-los. Esse tipo de desonestidade infectou a política pública, onde encontramos termos de marketing enganosos e sem sentido, como ‘solução’, ‘autônomo’ ou ‘orientado por dados’ até mesmo nos relatórios oficiais de agências governamentais”, diz.

Para ele, o transporte elétrico pode reduzir substancialmente o consumo de combustíveis fósseis, desde que não seja visto como uma ferramenta individualizada. “Precisamos de veículos elétricos muito mais acessíveis e que não exijam baterias que pesam centenas de quilogramas. Como veículos elétricos de passageiros, bicicletas elétricas, bondes, trólebus e trens têm muito mais a oferecer do que carros elétricos”.

Na mesma via está Carola Rackete, candidata do Partido Die Linke para as eleições para o Parlamento da UE. Ela defende, ainda, a gratuidade dos transportes e a ampliação de sua infraestrutura. Segundo a candidata alemã, o aumento da quantidade e da qualidade dos transportes públicos levam a uma redução dos transportes privados, o que representa uma melhora na mobilidade para todos.

Caroline Boletta também afirma que é preciso tirar o foco de soluções individualizadas. “Essa ideia de modernização ecológica o problema como emissão do setor automotivo, o que seria resolvido apenas com a substituição pelo carro elétrico. O que está faltando nessa discussão é o próprio modelo: nossos consumos, gastos, modelos de sociedade. Precisamos debater outras formas de locomoção”, diz.


* Rute Souza é jornalista. Esta reportagem faz parte do projeto do programa energia e clima para América Latina da Fundação Rosa Luxemburgo.

* *Edição: Katarine Flor, coordenadora de Comunicação da Fundação Rosa Luxemburgo