Em encontro realizado na última semana em São Luís, no Maranhão, cerca de 100 representantes de comunidades tradicionais, indígenas e quilombolas discutiram as ameaças de um novo projeto logístico privado no estado, proposto pela empresa Grão-Pará Maranhão (GPM), que prevê a construção de um porto sobre 87% do território quilombola da Ilha do Cajual, em Alcântara, e de uma ferrovia de 520 km de extensão entre o porto e o município de Açailândia.
No evento, organizado pela Articulação Anti-GPM – e que contou com a presença de organizações e movimentos como Justiça nos Trilhos, CPT, CIMI, CPP, MABE, MOMTRA, MOQBEQ, MOQUIBOM, MAM, MST, CONFREM MA, UNICQUITA, Centro de formação Saberes Ka’apor, Fórum Carajás, Justiça Global, Fundação Rosa Luxemburgo, Articulação Internacional dos Atingidos e Atingidas pela Vale e Salve a Floresta -, os participantes tiveram acesso a dados sobre o empreendimento, produzidos por pesquisadores ligados às Universidades Federal e Estadual do Maranhão, e a análises jurídicas sobre os direitos legais e constitucionais das comunidades e povos tradicionais, indígenas e quilombolas.
De acordo com Davi Pereira Junior, pesquisador do laboratório de Cartografia Social da UEMA, a ferrovia, cujo traçado foi analisado a partir de documentos da empresa e de dados do IBGE, iria atravessar 22 municípios, dezenas de assentamentos de reforma agrária e os quilombos de Tanque de Valença, Aguiar e Viana, além de tangenciar as terras indígenas Araribóia, Caru a Rio Pindaré. “Para termos uma ideia, a ferrovia cortaria quase todos os assentamentos do município de Buriti Cupu, por exemplo. Mas não é só isso. Até a década de 90, Alcântara vivia a base de geradores. Então para que o porto tenha energia para operar, obrigatoriamente terá que ser feito um novo linhão ao lado da ferrovia, o que vai duplicar os impactos”.
Consultas e Manobras: O Caso da Grão-Pará Maranhão
Já o porto deve ocupar mais de 1.400 hectares do território quilombola da ilha do Cajual, o que inviabilizaria as atividades agrícolas e de pesca da população local. Em 2017, a empresa GPM, proponente do projeto, procurou a Associação de Moradores da Comunidade Negra Rural Quilombola de Vila Nova para negociar um contrato de uso e usufruto desta área, prometendo em troca a construção de 51 moradias com água e luz, além de uma participação nos lucros do porto. Só que este acordo, explica o procurador do Ministério Público Federal, Hilton Araújo de Melo, não tem validade jurídica.
Tanto o procurador quanto o defensor público federal, Yuri Costa, convidados para o evento para falar sobre aspectos jurídicos do empreendimento, explicaram que qualquer projeto que possa afetar comunidades quilombolas, indígenas ou tradicionais (como pescadores, ribeirinhos, quebradeiras de coco e outros) tem que ser precedido, obrigatoriamente, por um processo de Consulta Previa, Livre e Informada de acordo com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). “Os moradores de Cajual procuraram recentemente o MPF para buscar mais informações sobre o projeto GPM, e ficou claro que eles não têm o menor conhecimento sobre o empreendimento”, afirmou Hilton Melo. Segundo ele, a Consulta Previa não foi realizada no âmbito da assinatura do contrato da Associação com a empresa, e, juridicamente, nenhum documento firmado pelos representantes tem validade de renúncia de qualquer direito da comunidade.
Por outro lado, o MPF alertou que não é apenas a população de Cajual que tem o direito de ser ouvida. “Todas as comunidades de Alcântara precisam ser consultadas de acordo com a Convenção 169 da OIT, porque estão na área de impacto direto do porto”. O mesmo se aplica aos quilombolas, indígenas e demais povos tradicionais ameaçados pela Ferrovia, explicaram os juristas.
Manobras
Outra informação repassada pelo MPF é que, recentemente, a empresa informou que buscará o licenciamento do empreendimento junto à Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Recursos Naturais (SEMA) do Maranhão, e não mais pelo Ibama, que, até o final do ano passado, estava conduzindo o processo.
De acordo com documentos aos quais a Articulação Anti-GPM teve acesso, em 2022 o Ibama produziu um Termo de Referência com os critérios para a realização do Estudo de Impactos Ambientais do porto e da ferrovia, considerando que o projeto precisaria de um licenciamento único. No final do ano de 2023, no entanto, a GPM pede o arquivamento do processo, sem maiores explicações.
Desconfiada deste procedimento, a Articulação Anti-GPM acionou a Defensoria Pública da União, que oficiou a SEMA para que esta esclareça se há algum processo de licenciamento junto à Secretaria, o que foi confirmado pelo MPF. Ou seja, de acordo com o procurador Hilton Melo, a manifestação mais recente da GPM ao MPF é que de fato a empresa pretende licenciar o projeto na Sema. “Isso será objeto de análise do Ministério Público. O que posso dizer é que o levantamento sobre a área a ser avaliada no Estudo de Impacto e no direito à Consulta Prévia tem que ser da União. Vamos entender o que o empreendedor pretende licenciar e onde, para tomarmos medidas jurídicas cabíveis”, explica o procurador.
Impactos Históricos e Atualidade
A grande maioria dos participantes do encontro veio de comunidades que têm sofrido há décadas os impactos de outros dois grandes empreendimentos: o Centro Espacial de Alcântara, base de lançamento de satélites construída pela Aeronáutica sobre o território quilombola do município a partir de 1982, e a Estrada de Ferro Carajás, da mineradora Vale, que desde 1985 atravessa o estado entre Açailândia até São Luis. “O problema histórico em Alcântara é o conflito entre a base espacial militar e a população quilombola, que aguarda titulação de seus territórios desde a década de 80. A questão é tão grave que chegou à Corte Interamericana de Direitos Humanos”, explica o advogado Danilo Serejo, morador de Alcântara.
Já Genilson Guajajara, que vive na Terra Indígena Rio Pindaré, explica que a ferrovia Carajás, duplicada a partir de 2013 e que margeia o rio, tem impactos profundos sobre todo o modo de vida dos indígenas. “Nas manifestações culturais, como a Festa da Menina Moça, a gente utiliza vários animais, que também servem de medicina para nosso povo. Mas eles sentem o ambiente não saudável e vão embora. Há dois anos, a água do rio Pindaré ficou vermelha e a comunidade tem vários problemas respiratórios. Alergias no corpo, crianças doentes… o rio que era lazer, hoje não podemos mais usufruir. Estamos vivendo coisas novas que não são boas. O povo Awá-Guajá também está sendo afetado. Eles são de contato menos recente (40 anos). As lideranças são ameaçadas, há exploração de madeira ilegal. Nossa luta era de arco e flecha, mas hoje é de ideias. Estar aqui é importante para somar na defesa do nosso território”.
Jadeylson Ferreira Moreira, pesquisador do Grupo de Estudos Desenvolvimento, Modernidade e Meio Ambiente (GEDMMA) da UFMA, avalia que o Maranhão está vivendo um processo de expansão das cadeias da mineração e da produção de soja via MATOPIBA, e há uma forte pressão para que este ciclo seja acompanhado por novas estruturas de escoamento. Nesse sentido, o discurso oficial – do governo e das empresas – é de que a infraestrutura existente, como os portos de Itaqui, Alcoa e da Vale, em São Luís, estaria com capacidade quase esgotada, o que justificaria a construção de novas estruturas logísticas. “Novas estruturas logísticas, por outro lado, permitem a expansão das atividades predatórias do agronegócio e da mineração sobre os territórios tradicionais. É importante que as comunidades entendam que, a despeito de promessas de melhorias e empregos, que acompanham projetos como o GPM, os investimentos atendem a interesses externos e ao mercado internacional. Nem o porto nem a ferrovia são para o povo maranhense”, diz o pesquisador.
Ação e Perspectivas Futuras
Diante deste quadro, os participantes do seminário “Impactos do projeto Grão Pará Maranhão: terminal portuário de Alcântara e Ferrovia EF-317” decidiram fortalecer a Articulação Anti-GPM e a luta de resistência ao projeto porto-ferroviário, exigindo seu imediato cancelamento. “Vamos reforçar a ação política junto às comunidades ameaçadas, e jurídica junto aos órgãos pertinentes. No que depender de nós, o projeto Grão Pará Maranhão não vai se instalar no nosso estado”, afirma Mikaell Carvalho, coordenador da Associação Justiça nos Trilhos.