por Ana Garcia
A VI Cúpula de Chefes de Estado dos BRICS, em Fortaleza, foi acompanhada por três outras “cúpulas”: o Encontro Empresarial dos BRICS, a III Cúpula Sindical e o “Diálogos sobre Desenvolvimento: os BRICS na perspectiva dos povos”. Elas são compostas por atores de campos bem distintos. Representam projetos que por vezes convergem, por vezes estão em disputa sobre o modelo de desenvolvimento, sustentabilidade, participação social, igualdade, democracia, entre outro temas. Vemos aqui atores que buscam fazer parte da construção de um discurso e pensamento hegemônico e contra-hegemônico, junto e para além do Estado. Entretanto, essas “cúpulas” estão longe de terem condições iguais de atuação junto aos governos dos BRICS, de modo a levar seus projetos a frente.
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A primeira teve lugar um dia antes da reunião de presidentes e contou com a presença de aprox. 700 empresários. O Encontro Empresarial dos BRICS é o espaço onde as grandes empresas e grupos econômicos, sediados em algum dos cinco países, se juntam para acertar uma maior integração entre seus negócios. Elas acordam uma série de recomendações direcionadas à cúpula governamental, buscando colocar a pauta de comércio e investimento entre esses países. Nessa pauta de recomendações estão: a facilitação de vistos para empresários; redução de barreiras não tarifárias; eliminação de dumping e subsídios; criação de um “BRICS Portal de Negócios” dedicado à troca de informações; apoio a feiras, exposições e fóruns dentro dos países BRICS; uma seção especial no site de cada um dos países para informações e propostas comerciais de parceiros de negócios e potenciais joint ventures, entre outros. Os empresários também apóiam fortemente a criação do Novo Banco de Desenvolvimento dos BRICS, visando a facilitação de comércio, negócios e investimentos, além de o aumento das transações em moeda local (e não em dólar), com apoio dos bancos centrais para liquidação dessas moedas . É notório como a agenda empresarial coincide amplamente com a governamental, vide a própria declaração final de Fortaleza, e os acordos sobre a criação do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) e do Acordo Contingente de Reservas (ACR), que contemplam em grande medida essas recomendações.
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Nesse ponto há convergência entre os governos dos BRICS, empresários e sindicalistas. Centrais sindicais dos cinco países, reunidas em Fortaleza também no mesmo dia do encontro empresarial, declararam seu pleno apoio à criação do novo banco e do ACR como instrumentos para a transformação da arquitetura econômica mundial. Na visão desses atores sindicais, os BRICS representariam um passo fundamental para a democratização das relações internacionais e para a multipolaridade.
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Dentro do encontro empresarial, houve também a Business Networking, seção onde 600 empresas dos diferentes setores (agronegócio, mineração, infraestrutura, farmacêutico, tecnologia de informação, energia, economia verde, etc.) acertaram negócios estimados em US$ 3,9 bilhões . Por fim, um outro espaço de atuação empresarial, criado já na V Cúpula em Durban, em 2013, é o Conselho Empresarial dos BRICS, com diálogo direto e formalizado junto aos governos desses países.
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Situação bem distinta se coloca para os sindicatos e para os movimentos sociais e ONGs dos países BRICS. Em sua declaração, as centrais sindicais expressaram sua reivindicação de reconhecimento do Fórum dos BRICS Sindical como espaço institucional dentro da estrutura formal no agrupamento, tal como é reconhecido o Conselho Empresarial. Também expressaram a intenção de participar de grupos de trabalho e do Novo Banco de Desenvolvimento, como forma de garantir espaço de participação social nos BRICS.
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Já os movimentos, redes e ONGs se juntaram no “Diálogos sobre Desenvolvimento: os BRICS na perspectiva dos povos”, nos dias 14 a 16 de julho, do qual pude participar pessoalmente. Ele foi organizado em conjunto com movimentos locais de Fortaleza, uma das cidades-sede da Copa do Mundo, que concentrou uma série de protestos e lutas sociais no último ano . O ambiente em Fortaleza vinha se radicalizando no período anterior à Copa, e podemos imaginar que se a Cúpula dos BRICS tivesse ocorrido em março, como previsto anteriormente, poderíamos contar com grandes protestos. Porém, ao ter lugar imediatamente após a Copa, o ambiente era de relativo cansaço. Os BRICS não são um tema de preocupação dos movimentos sociais brasileiros, que têm suas pautas próprias, não atraindo ainda grandes mobilizações. Temas internacionais são sempre mais distantes das pautas locais e nacionais dos movimentos. Ainda assim, vemos um avanço grande obtido, por exemplo, pelas lutas continentais contra a ALCA no sentido de trazer os temas internacionais para o cotidiano. As mobilizações em torno da reunião do Banco Interamericano de Desenvolvimento, ocorrida em Fortaleza em 2002, foi uma experiência acumulada pelos movimentos sociais locais.
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Dessa vez, estavam presentes a Marcha Mundial das Mulheres, Movimento Sem Terra, CUT, CSP Conlutas, Jubileu Sul, Articulação Brasileira de Mulheres, Comitê Popular da Copa, REBRIP, além das organizações locais como Instituto Terramar, Esplar, coletivos de comunicação, mulheres e juventude. Membros de movimentos e ONGs da África, América do Sul, Europa e EUA também participaram. Assim, o encontro da sociedade civil agrupou desde lideranças de comunidades atingidas pela mineração na África do Sul, até acadêmicos e ONGs da China e Índia, até grandes ONGs internacionais como Action Aid. O apoio veio especialmente das fundações alemãs Heinrich Böll (que proporcionou dois dias de debate sobre o novo Banco dos BRICS, trazendo acadêmicos e ativistas da China, Índia e África do Sul) e Friedrich Ebert, além da Action Aid. Obviamente brasileiros eram a maioria, mas sentia-se também grande presença dos sul-africanos, uma menor presença de chineses e indianos, e quase nenhum presença de ativistas russos.
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Os temas trabalhados nas atividades autogestionárias variavam muito: conflitos e desigualdades sócio-ambientais, extrativismo, criminalização dos movimentos sociais, participação sociais, direitos humanos e empresas transnacionais, além do tema central da cúpula oficial, infraestrurura e o Novo Banco de Desenvolvimento. Para essa sessão, esteve presente para o diálogo coma sociedade civil o embaixador Carlos Cozendey, representante do governo brasileiro para as negociações de criação do Banco.
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É importante lembrar que o encontro de Fortaleza foi antecedido pelo encontro dos movimentos e organizações sociais em Durban, África do Sul, em 2013, denominado “BRICS from below”. Esse foi auspiciado pelo Centro para Sociedade Civil da Universidade KwalaZulu-Natal, a “South Durban Community Environmental Alliance” e a ONG groundWork, aglutinando movimentos sociais de base, sindicatos e acadêmicos. Entre Durban e Fortaleza, entretanto, quase não houve momentos de articulação entre as bases sociais dos países BRICS. Na verdade, construir os BRICS pelas bases, ou um BRICS from below, é um processo muito recente e seu ritmo é mais lento do que o dos governos ou empresários. As realidades sociais de cada país se diferem muito, o idioma segue sendo um problema (a língua comum é o inglês, mas é um idioma de difícil acesso para comunidades e movimentos de base fora da Índia e África do Sul), e o que se entende como “sociedade civil” (conceito aplicado também aos empresários, se seguirmos a categoria de Gramsci), e como se dá a sua relação com o Estado, é muito diferente em cada um desses países.
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De fato, há mais dificuldades para as organizações sociais brasileiras encontrarem pontos comuns de diálogo com organizações da China e da Rússia, por exemplo. Essas tendem a estar mais próximas de seus governos, e diferem em posicionamentos quanto a temas como economia verde, extrativismo ou participação social. Há mais facilidade de diálogo com sul-africanos, havendo, em alguns casos, relações anteriores aos BRICS, estabelecidas em campanhas e protestos internacionais nas últimas décadas.
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Curiosamente, o tema “BRICS” vem sendo trabalhado de maneira mais sistemática por agências e ONGs “do Norte”, mais do que “do Sul”. Para essas, o grupo ainda é algo abstrato, não se concretiza nas lutas e processos sociais nos territórios. O que vemos, sim, é a atuação de empresas multinacionais chinesas, brasileiras, indianas, russas, sul-africanas, principalmente do setor extrativo, que vêm gerando impactos negativos nos territórios e, nesses casos, gerando processos de resistência. Apesar das diferenças, podemos identificar algumas experiências similares de impactos, enfrentamentos e resistências, além temas que são comuns aos povos dos BRICS. Temos, por exemplo, experiências com mega-eventos e violações de direitos impulsionadas por eles (Copa do Mundo e Olimpíadas no Brasil, África do Sul, China e Rússia). Nos cinco países, há vários casos de conflitos sócio-ambientais envolvendo mega-empreendimentos de petróleo, gás e mineração, e também violações de direitos em torno de mega-projetos de infraestrutura, que envolvem financiamento dos bancos nacionais de desenvolvimento, e provavelmente envolverão o futuro NDB. Em outras palavras, a solidariedade internacional e os processos de articulação e fortalecimento dos povos dos BRICS se dará nos processos de luta, na medida em que esses países avançarem no modelo de desenvolvimento que hoje reforçam.
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Uma dificuldade de coesão e articulação entre organizações e movimentos hoje é o fato de haverem visões distintas sobre o significado dos BRICS na ordem mundial. Alguns se aproximam mais das posições dos governos, e tendem a caracterizar os BRICS de forma mais otimista, como um possível pólo de balanceamento com as potências ocidentais, que conduziria a uma democratização da ordem mundial até agora sob hegemonia dos EUA. Já outros movimentos e organizações são críticos a seus governos sob diversos pontos de vista, especialmente a condução de estratégias de desenvolvimento com altos riscos sócio-ambientais e pouco ou quase nenhum canal de participação social efetivo. Sua visão é que os BRICS seria “mais do mesmo”, ou seja, um reforço do capitalismo global e da acumulação de capital predatória, não significando uma real alternativa à ordem vigente sob poder global americano.
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Isso se reflete em estratégias distintas frente aos BRICS. Alguns pleiteiam um espaço oficial de participação da sociedade civil, procurando incidir sobre os caminhos do agrupamento desde dentro. Outros consideram essa estratégia um jogo perdido, dada a correlação de forças desvantajosa dentro dos BRICS, uma vez que os governos têm suas estratégias previamente traçadas. Essa posição aponta para o alto risco de cooptação desses espaços de participação formal.
O Novo Banco de Desenvolvimento coloca um grande desafio aos movimentos e organizações sociais. Somente agora é possível falar dos “BRICS” como agrupamento relativamente coerente, com uma instituição que os identifica. O banco ainda não está em operação, mas é necessário fazer uma profunda análise do modelo capitalista vigente, no qual se insere o banco e as estratégias de ascensão desses países na arquitetura financeira internacional. O próprio governo brasileiro vem insistindo que os novos mecanismos financeiros (NBD e ARC) são complementares, e não concorrentes ao FMI ou Bird. Os países terão direito a acionar 20% dos US$ 100 bilhões destinados ao ARC, em caso de problemas na balança de pagamentos, porém o restante terá que contar com um aval do FMI. O NBD, por sua vez, focará em projetos de infraestrutura e desenvolvimento sustentável. É relevante lembrar que o Banco Mundial já havia criado, em 2013, a Global Infrastructure Facility (GIF), com forte apoio do Brasil, Índia e África do Sul. A proposta do GIF é lançar papéis no mercado internacional para financiar projetos de engenharia pesada . Se tomarmos como base os projetos financiados pelos bancos nacionais de desenvolvimento dos BRICS, como o BNDES, vemos que os projetos apoiados priorizaram grandes infraestruturas (hidroelétricas, rodovias, portos), e não aquelas que atendem às necessidades básicas da população, como esgoto, água e saneamento. Os maiores beneficiados têm sido os grandes conglomerados da construção civil, além das gigantes da mineração e petróleo. Fortalece-se, assim, o capitalismo monopolístico e concentrador de riqueza, dentro e fora dos países BRICS. Como o banco define “desenvolvimento sustentável”, quais os critérios de avaliação de impactos sociais e ambientais e quais os mecanismos de transparência para decidir os projetos a serem financiados com recursos públicos? Essas perguntas precisam ser seriamente enfrentadas, uma vez que os governos não dão respostas a elas.
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Ainda não se pode esperar uma posição unificada entre os movimentos e organizações sociais dos BRICS. As experiências anteriores, acumuladas em momentos de enfrentamento e de diálogo com o Banco Mundial, foram muito diversas. Também há uma série de experiências distintas frente aos bancos nacionais de desenvolvimento, que irão refletir em estratégias distintas frente ao novo banco. Alguns grupos propõem o diálogo e maior espaço de atuação para determinar as políticas do banco. A Oxfam, por exemplo, vêm enfatizando recomendações ao banco, afirmando que “um outro banco é possível” . Nas discussões em Fortaleza, alguns grupos discutiram a necessidade de garantir guidelines e salvaguardas sócio-ambientais nos critérios de financiamento de projetos do novo banco, para que esse garanta a normatividade mínima já alcançada no Banco Mundial, BID e em alguns outros casos. Retroceder na esfera normativa seria um retrocesso na luta pelos direitos humanos.
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Parece ser necessário resgatar as experiências anteriores de forma mais sistemática e fazer um balanço empírico sobre onde e quando, por exemplo, as salvaguardas e guidelines para projetos financiados pelo Banco Mundial tiveram efeito na garantia dos direitos humanos, sociais e ambientais nos territórios. Também seria importante partir das experiências de luta e incidência acumuladas nas esferas nacionais sobre os bancos nacionais de desenvolvimento. No Brasil, as ONGs e movimentos levaram a cabo por muitos anos a Plataforma BNDES. Estratégias de ação e incidência sobre atores financeiros não são, portanto, um tema inteiramente novo. O desafio pela frente está em conseguir unificar as estratégias das sociedades dos BRICS sobre o NBD.
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Os BRICS dos governos, das instituições financeiras e dos grandes grupos econômicos (o BRICS from above) avança de acordo com a convergência entre Estado e capital para levar a frente suas estratégias de desenvolvimento extremante concentradoras de riqueza. Se faz necessário construir um verdadeiro BRICS from below, com estratégias comuns de luta por direitos e de solidariedade internacional a partir das bases nos países BRICS, que só será bem sucedido se construído no processo de lutas sociais e experiências comuns. Fortaleza ainda é um início.
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Ana Garcia é Professora de Relações Internacionais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e pesquisadora do PACS. Texto elaborado para o blog do grupo de pesquisa Potências Medias em julho de 2014.
Imagens: charge da ilustradora Wang Xiaoying, China Daily e foto de Gerhard Dilger durante o “Diálogos do Desenvolvimento” com Patrick Bond (esq.) e a autora (segunda da esq.).