CPI reivindicada deve ser resposta contra a impunidade que impera no Mato Grosso do Sul.
Entrevista com o deputado estadual Pedro Kemp.
Por Renato Santana, ADITAL
Enquanto a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Assembleia Legislativa do Mato Grosso do Sul, que investiga o trabalho do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) no Estado, se debate em oitivas subjetivas ou inquisitórias, produzindo acusações baseadas em “ouvi dizer”, “me falaram, mas não é possível provar”, uma outra CPI, já aprovada pela Mesa Diretora da Casa Legislativa, aguarda sua definitiva instalação. A CPI do Genocídio, reivindicada pela sociedade civil e movimentos sociais, tornou-se a esperança de alguns parlamentares para que crimes impunes e notoriamente comprovados contra os povos indígenas do Estado sejam apurados.
Esta CPI deve apurar uma longa lista de arbítrios. Nos últimos 12 anos, 390 indígenas foram assassinados no Mato Grosso do Sul e outros 560 cometeram suicídio. Além disso, desde o assassinato do rezador Nísio Gomes Guarani e Kaiowá, em 2011, no tekoha – lugar onde se é – Guaivyry, investigações do Ministério Público Federal (MPF) chegaram à formação de milícias e consórcios de morte, envolvendo empresas de segurança. Caso da Gaspem, advogados, sindicatos rurais, políticos e fazendeiros, para expulsarem comunidades de terras indígenas retomadas e matarem lideranças. No Caso Nísio, a Justiça Federal pediu a prisão de mais de 20 indivíduos, entre eles o dono da Gaspem, fazendeiros, advogados, pistoleiros e o presidente à época do Sindicato Rural de Aral Moreira.
Se a CPI do Cimi nasce sem fatos determinados, um apanhado de assassinatos, suicídios e violências sortidas alçam o Mato Grosso do Sul ao cenário internacional de genocídios em curso contra populações e grupos indígenas ao redor do mundo – a partir de relatórios e pronunciamentos tanto do MPF quanto de comissões da Organização dos Estados Americanos (OEA) e da Organização das Nações Unidas (ONU). Sobre isso a CPI do Genocídio pretende se debruçar e, nas palavras do deputado estadual Pedro Kemp (Partido dos Trabalhadores – PT – Mato Grosso do Sul), oferecer “uma resposta contra a impunidade que impera no Mato Grosso do Sul”.
Kemp, em entrevista concedida durante as sessões da CPI do Cimi, entende que a estratégia ruralista é de atacar a principal organização de apoio aos povos indígenas do Estado, o Cimi, e, como consequência, enfraquecer as comunidades que, sem respostas do Estado, decidiram retomar os territórios tradicionais de onde foram expulsos à força no decorrer do século XX. Por trás dessa estratégia, está o agronegócio e sua cadeia privada bilionária. Para o deputado, “não há interesse em fazer avançar o processo de demarcação das terras indígenas no Mato Grosso do Sul por se tratar de um estado que tem a base principal da sua economia na produção de grãos e carne bovina, grande parte para exportação”.
O que o senhor entende como prioridade para o parlamento sul-mato-grossense responder ao Estado e ao país com a CPI do Genocídio?
A instalação da CPI do Genocídio na Assembleia Legislativa deve ser uma resposta contra a impunidade que impera no Mato Grosso do Sul, quanto aos assassinatos de lideranças indígenas e aos ataques violentos sofridos pelas comunidades, que lutam pela demarcação de seus territórios tradicionais. Desde a execução do líder Marçal de Souza Tupã-I, em 25 de novembro de 1983, até o mais recente assassinato, ocorrido em 29 de agosto passado, quando o índio Guarani e Kaiowá Semião Fernandes Vilhalva, 24 anos, foi morto por tiro disparado à longa distância, com arma de calibre 22 e de autoria ainda desconhecida, muitas mortes foram contabilizadas, sem que ninguém fosse punido, sejam mandantes ou executores. Parece imperar no Estado a conivência dos órgãos de segurança estadual e federal, com a existência de milícias e pistoleiros contratados para defenderem as propriedades rurais e atacarem as comunidades indígenas em processo de retomada de suas terras. Esta situação não pode prosseguir e o Parlamento estadual precisa investigar esses casos de violência contra os indígenas, e cobrar o fim da impunidade.
Na atual conjuntura indigenista do MS, qual a relação entre as duas CPIs: a do Cimi e a do Genocídio?
Entendo que a CPI do Cimi foi instalada por pressão dos ruralistas, na tentativa de criminalizar a principal entidade de apoio à luta dos povos indígenas no Estado e, por tabela, enfraquecer o próprio movimento indígena que, cansado de esperar providências do governo federal quanto às demarcações, decidiu por retomar suas terras tradicionais. Já a CPI do Genocídio é uma iniciativa dos movimentos sociais ligados à defesa dos direitos humanos, sindicatos de trabalhadores e igrejas cristãs, que cobram o fim da omissão do Estado quanto à violência perpetrada sistematicamente contra as comunidades indígenas, que lutam por seus direitos.
Alguns deputados ruralistas assinaram a CPI do Genocídio. Na sessão do dia 07 de outubro [de 2015], porém, declararam, na tribuna, caso do deputado Zé Teixeira, que não há genocídio no Estado. Por que o senhor acha que assinaram pela CPI, então?
Há muita contradição nos discursos. Se muitos não acreditam que haja um genocídio contra os povos indígenas no Mato Grosso do Sul, principalmente contra os Guarani e Kaiowá, não deveriam apoiar a investigação de algo que, para eles, não existe.
Como o senhor acredita que se dará a composição parlamentar dessa CPI? No caso da CPI do Cimi, a presidência, a vice e a relatoria ficaram nas mãos de deputados diretamente atrelados aos setores que ambicionam as terras indígenas.
A CPI é constituída por cinco membros, indicados pelas bancadas partidárias. Há na Assembleia uma maioria esmagadora de parlamentares que é ligada ao agronegócio. Não tenho esperanças de que na CPI do Genocídio tenhamos uma composição de deputados ligados às causas indígenas. Nossa bancada tem vaga garantida e vamos lutar pela presidência ou relatoria. Penso que vai ser importante a vigilância da sociedade, através dos movimentos sociais que apoiam os índios, para que esta CPI cumpra com os seus objetivos.
O MPF, a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), a Anistia Internacional, ONU, OEA, o seu mandato… Não são poucas as instituições e figuras públicas que entendem como genocídio o que acontece no MS contra os povos indígenas. Na sua opinião, o que motiva esse genocídio?
O genocídio contra os povos indígenas no Mato Grosso do Sul ocorre na forma de perseguições, ataques violentos e assassinatos de índios, mas também na forma do total abandono das comunidades que estão fora de suas terras, em acampamentos improvisados, ou confinadas em pequenas áreas, sem o atendimento nas políticas públicas de saúde, educação, produção e segurança. Ali, reina a miséria e a fome e, como consequência, o alcoolismo, a violência, os conflitos internos e o suicídio. Talvez, esta última seja a pior forma de genocídio, pois é invisível e silenciosa.
Sabemos que existe um passivo com relação à demarcação das terras indígenas no Estado. Os governos pós-Constituição de 1988 não o resolveram. Mesmo este sendo um problema estruturante não só no Estado, mas em âmbito nacional, por que, na opinião do senhor, o Mato Grosso do Sul se destaca nesse aspecto de violência, genocídio, contra os povos indígenas?
Na minha avaliação, não há interesse em fazer avançar o processo de demarcação das terras indígenas no Mato Grosso do Sul, por se tratar de um estado que tem a base principal da sua economia na produção de grãos e carne bovina, grande parte para exportação. Na visão do agronegócio, os índios querem ocupar essas que são as terras mais férteis do país, para não produzirem nos moldes capitalistas. Seria um desperdício e um prejuízo para a economia do Estado. Só que aqueles que pensam dessa forma se esquecem que o estado vizinho, Mato Grosso, tem uma economia mais forte do que a nossa e tem 12% do seu território de terras indígenas, enquanto que, em Mato Grosso do Sul, não chega a 0,5% do território de áreas demarcadas e garantidas aos índios. E olha que aqui temos a segunda maior população indígena do país. Portanto, demarcar as terras indígenas acabaria com a insegurança jurídica no Estado, esta sim capaz de prejudicar a produção, e que poria fim aos conflitos agrários entre produtores e índios.
A bancada ruralista critica muito o governo federal pela situação no MS e busca se aproximar dos indígenas, se declarando tão vítima quanto eles. Como o senhor entende essa estratégia?
Uma coisa temos que reconhecer, a demarcação das terras indígenas no Mato Grosso do Sul não tem sido prioridade para o governo federal. Nas vezes em que tivemos a presença de representantes de Brasília aqui para discutirem a questão se deram após conflitos acontecerem e por pressão do movimento indígena, com as retomadas de seus territórios. Em algumas situações, comissões são formadas, propostas são apresentadas, mas, depois, nada acontece. Além disso, é importante dizer que muitos processos demarcatórios foram judicializados e ficam parados por anos, sem solução. A questão central é que o grande responsável pela situação que estamos vivendo hoje é o Estado, uma vez que, no passado, confinou as comunidades indígenas em algumas reservas e alienou suas terras tradicionalmente ocupadas a esses proprietários que, hoje, também reclamam por direitos. Penso que, hoje, não é possível resolver o problema sem levar em conta esse processo histórico. Cabe, portanto, ao Estado brasileiro encaminhar a solução, resguardando os direitos das partes envolvidas. O que não dá mais é ver os índios, primeiros habitantes dessa terra, ficarem aguardando por providências que nunca acontecem.
Por que essa violência, aparentemente passional, envolvendo alcoolismo e mortes violentas entre os indígenas, faz parte desse processo de genocídio e tem relação com a demarcação de terras?
Ninguém precisa ser um grande estudioso para concluir que os problemas de alcoolismo, violência interna nas comunidades, drogas, suicídios entre os índios têm a ver com a questão da demarcação de suas terras. Populações numerosas estão confinadas em pequenas áreas ou à beira de estradas, em acampamentos, onde não conseguem reproduzir suas formas de subsistência material e espiritual, a partir de suas culturas. Necessitam de seu espaço, onde possam se reconhecer enquanto povo, com identidade própria, com uma história de resistência, com seus saberes tradicionais e sua espiritualidade. Nossa sociedade tem dificuldade de reconhecer isto e muitos costumam dizer: ‘para que os índios querem tanta terra se não produzem?’. Querem avaliar o modo de viver dos índios a partir dos parâmetros do capitalismo. Os índios no Mato Grosso do Sul estão submetidos ao completo abandono e são duramente atacados quando resolvem lutar por seus direitos. No passado recente, eram considerados amigos e pacíficos, na medida em que serviam à expansão do agronegócio. Agora, que se organizam e reivindicam seus direitos, são vistos como invasores de terras e manipulados e financiados por ONGs. Somando-se a omissão do Estado, segue o genocídio.