Debate na FRL

Democracia e socialismo segundo dois veteranos

A partir das perspectivas europeia e brasileira, Klaus Meschkat e Paul Singer analisam as crises  das esquerdas e a importância da democracia na construção do socialismo

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O sociólogo alemão Klaus Meschkat e o economista mais brasileiro que austríaco Paul Singer (Foto: Gerhard Dilger)

Por Verena Glass

Houve um tempo em que, em diversas sociedades, muito do que dizia respeito à vida, ao mundo, a sonhos e a planos era pensado nos conselhos de sábios. Quem melhor para interpretar passados, presente e futuros do que aqueles que muito já viveram, viram e refletiram? Hoje, por certo, os tempos mudaram, e muitos buscam muito do que diz respeito à vida e ao mundo no google. Mas no fundo, nada foi inventado ainda que substitua o encantamento que pode produzir a voz da experiência, ainda mais se vem carregada de mais de oito décadas de estar no mundo com olhos muito abertos, como no caso do economista Paul Singer, quase 84, e do sociólogo Klaus Meschkat, 80.

Paul Singer e Klaus Meschkat nasceram ambos na Europa, um na Áustria, outro na Alemanha. De família judia, no entanto, Singer foi obrigado pelo nazismo a se refugiar no Brasil aos oito anos de idade, e foi na nova pátria que sua vida se entrelaçou com a de várias das passagens mais relevantes da história recente do país. Como metalúrgico, economista, professor da USP aposentado compulsoriamente pela ditadura, co-fundador do PT e posteriormente como criador de um movimento profundamente enraizado na busca por justiça social: a Economia Solidária, proposta que desde 2003 vem implementando como secretário no Ministério do Trabalho do governo federal.

Klaus, que viveu sua infância e juventude na Alemanha Oriental, começou suas atividades políticas como liderança do movimento estudantil em seu país. No final da década de 1960, começou a acompanhar os processos sociais e políticos na América Latina – principalmente Colômbia e Chile -, e foi como professor em Concepción que viveu o golpe de 1973 contra Allende.

“Nos tempos de Marx era mais perigoso ser democrata que comunista”
Singer e Meschkat se conheceram nos anos 1970. E na última semana eles se reencontraram no Brasil, na Fundação Rosa Luxemburgo, para um diálogo sobre socialismo e democracia, e as raízes das crises nas esquerdas mundiais, mediado pela filosofa Isabel Loureiro. E porque falar de democracia hoje? Porque é a democracia a principal antagonista do autoritarismo, inclusive do autoritarismo socialista, que não é senão uma farsa, pondera Singer. Por exemplo, lembra, Rosa Luxemburgo nunca aceitou “as ideias de ditadura de Lenin e Trotsky”. O que é o socialismo verdadeiro senão democracia?, acrescenta Meschkat. “Nos tempos de Marx era mais perigoso ser democrata que comunista; o comunismo era mais inocente que a democracia no sentido de que os democratas queriam mesmo é derrubar o autoritarismo. Vejo a identidade entre democracia e socialismo como sendo a igualdade, e isso implica em uma democracia que extrapole regras formais e crie uma sociedade de iguais”, pondera o sociólogo.

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Isabel Loureiro: democracia em cheque na Europa? (Foto: Daniel Santini)

E quanto, desde Marx, a democracia se concretizou? Tomando os dias atuais, questiona Isabel Loureiro, em que medida, como denuncia o ex-ministro da economia da Grécia, Yanis Varoufakis – que em 9 de fevereiro lançou em Berlim um novo movimento, o Democracy in Europe Movement 25 (DiEM25) -, a democracia, em especial na Europa, serve apenas ao poder estruturado pelo grande capital?

“Acho louvável a iniciativa de Varoufakis de propor o debate da democratização da Europa”, afirma Meschkat. Porque, a despeito dos Estados terem Constituições democráticas, a União Europeia não é em absoluto a expressão da vontade do povo. “O Parlamento Europeu não tem nenhum poder de fato, e são os chefes de Estado – direitistas e conservadores – que pretendem controlar o bloco. Mas quem de fato controla é o grande capital e quem manda na legislação é o lobby da economia”, explica o sociólogo, para em seguida perguntar a Singer: e no Brasil? Na América Latina?

“Nós, europeus, sempre procuramos a esperança em outra parte. Nos anos 1980 o PT era a nossa esperança. Foi Cuba, depois Chile com Allende, os sandinistas, e depois o PT. Era um partido não stalinista ou leninista como tantos outros na região, era um partido com muitas tendências, onde couberam muitos pensamentos, achávamos que o partido mudaria o Brasil. Mas agora vemos o governo do PT mergulhado em um sem número de problemas, e pergunto: o que está acontecendo? Como isso afeta o partido?”

“Dilma aplicando a política dos adversários dá muito medo”
Talvez diferentemente de outros petistas, Singer não tem problemas em falar do PT, partido que, segundo ele, nasceu exatamente do anseio por democracia ainda no final da ditadura militar. Faz questão de ressaltar este fato: nós não derrubamos a ditadura, os ditadores é que se convenceram que, por falta de apoio, deveriam se desfazer do poder. “Não foram derrotados. Permitiram aos resistentes criar o PT”, explica. Mas sim, o partido nasceu encampando a muitos: os leninistas, os trotskistas, stalinistas e movimentos sociais ligados às igrejas. O PT nesse sentido é perfeitamente democrático, inclusive porque sua direção é eleita diretamente pela militância, avalia Singer. Também Lula nunca foi um “ditador” no PT, e seu peso se deve à sua grande autoridade moral e liderança nata.

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Paul Singer: por confiança do capital, o governo capitulou e traiu as bases (Foto: Verena Glass)

Mas o que aconteceu nos últimos anos? “Dilma aplicando a política dos adversários dá muito medo. Ficamos espantadíssimos, ninguém entendeu nada, essa traição do eleitorado. Mas por que isso ocorreu?”.

No primeiro mandato petista, continua Singer, o fato mais relevante foi o êxito do combate à pobreza. Naquele momento, ao contrário do que se esperaria, a burguesia brasileira resolveu apostar no primeiro governo de esquerda do país, o que se traduziu em investimentos. E nos oito anos de governo Lula a economia do país cresceu.

O mesmo, porém, não se deu no governo Dilma. Nas palavras de Singer, o que ocorreu foi uma greve de investimentos e um boicote do capital. “Lula fez as mesmas concessões que Dilma faz. Lula deu continuidade à política de Fernando Henrique Cardoso. Mas a burguesia não aceita mais o governo do PT. Então Dilma traiu sua plataforma eleitoral e o PT, para atrair a confiança do capital. Mas isso não aconteceu. Hoje vivemos a pior crise da nossa história, só em São Paulo o desemprego atinge mais de 1,5 milhão de pessoas. Temos um governo de esquerda com uma orientação política e econômica diferente de que esperamos, e se há uma esquerda em crise, somos nós!”

“Quando Paul fala da situação desesperadora do Brasil, me vem à cabeça a Venezuela. A Venezuela, o Equador, a Bolívia, todos estão em crise”, retruca Meschkat. Sobre a Venezuela, o sociólogo relembra o processo chavista de inclusão social dos pobres e a criação do que Hugo Chávez batizou de Socialismo do Século XXI. Havia um firme propósito de democratizar o país com uma Constituição nova, que continha inclusive a previsão de revogação do mandato presidencial por via plebiscitária. Mas economicamente a Venezuela seguiu nas mãos do capital, pondera o sociólogo, principalmente ao definir o extrativismo petroleiro como base da economia e da política nacionais. Há que se considerar que Chávez criou os Conselhos Comunais para balancear esta predominância, mas ao final os Conselhos eram subvencionados pelos recursos petroleiros e não houve nenhum investimento mais concreto em outros setores produtivos.

Com a queda dos preços do petróleo, a crise se agravou e mergulhou a Venezuela em uma situação complicadíssima. “O projeto fracassou porque não saíram da lógica extrativista. Porque a dependência, via atividade extrativa, de outros países é muito perigosa”.

Singer retruca que sim, o extrativismo que domina as economias sul-americanas é problemático, principalmente no entender das populações indígenas na Bolívia e no Equador. Mas de todas as formas, com a criação dos Conselhos Comunitários, o surgimento de comunidades autônomas, Chávez tornou a democracia menos alienante que no Brasil, onde grande parte da população nem sequer lembra em quem votou, poucos meses depois das eleições.

Juventude, a esperança dos veteranos
A concluir destas análises sombrias, a democracia, o socialismo e as esquerdas, neste cenário, teriam então perdido o rumo como conceitos e horizontes? Do alto de seus mais de meio século de ativismo político no Norte e no Sul do mundo, Paul e Klaus reagem certeiros: não. Para o sociólogo, o fenômeno da onda de refugiados que tem atingido a Europa por um lado evidenciou um recrudescimento do reacionarismo e do nacionalismo xenófobo de parte dos dirigentes e da população da região. “Mas, por outro lado, vemos milhares de jovens que estão se mobilizando como voluntários para receber os refugiados. Isto é um sintoma muito positivo na Europa”.

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Klaus Meschkat: a solidariedade dos jovens é motivo de esperança (Foto: Daniel Santini)

Já o economista se empolga com as possibilidades democratizantes das novas tecnologias. “Há uma sede enorme por democracia, principalmente entre os jovens. Isso se mostra no fortalecimento do feminismo e suas mudanças revolucionárias, no movimento LGBT… quando eu era criança, chamar alguém de veado era um dos piores insultos. Hoje temos milhões nas paradas do orgulho gay. Isso não é um avanço?”