Descriminalizar o aborto é pela vida das mulheres

É preciso tirar a pauta sobre a descriminalização do aborto do centro dos discursos de pânico moral, tabu religioso e criminalização e entender sua importância para a vida das mulheres
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Descriminalizar o aborto é pela vida das mulheres
22/11/2023
por
Andrea Dip

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Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/ EBC

Pouco antes de se aposentar, a presidente do Supremo Tribunal Federal Rosa Weber votou, no dia 22 de setembro, para que o aborto realizado até 12 semanas de gestação deixe de ser crime no Brasil. No plenário virtual da corte, a ministra destacou que “os abortos inseguros e o risco aumentado da taxa de mortalidade revelam o impacto desproporcional da regra da criminalização da interrupção voluntária da gravidez”, não apenas em razão do gênero, mas por razões de “raça e condições socioeconômicas”.

O ato teria sido o cumprimento de uma promessa de Weber às mulheres – votar antes de se aposentar – e chega após 5 anos de silêncio, já que a ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 442, protocolada pelo PSOL e pela Anis Instituto de Bioética foi apresentada à Corte ainda em 2017. No entanto, logo após o voto, o ministro Luís Roberto Barroso destacou o julgamento para que continuasse no plenário físico, ainda sem data para acontecer. Como novo presidente do STF, caberá a Barroso pautar o processo daqui em diante.

Como explica a antropóloga e fundadora da Anis Débora Diniz, que ajudou a escrever a ADPF, essa foi a primeira ação a ser proposta em cortes latinoamericanas para descriminalização do aborto. “Ela não é a primeira a ser decidida porque o México e a Colômbia chegam depois e decidem antes, mas é a primeira ação a chegar e vem com um pedido simples. O que rege o aborto no Brasil é uma lei criminal de 1940. Nós temos uma Constituição que garante o direito à saúde como um bem fundamental. E a ONU declarou inclusive que manter uma gestação contra a vontade da mulher pode se equiparar a tortura. Então o pedido é que se diga que a criminalização do aborto não se sustenta à luz da Constituição, que essa lei penal é anticonstitucional. E a revisão constitucional de leis é algo que a Suprema Corte faz todos os dias. Não se confunde com legislar porque ela não está ativamente atuando, ela age quando provocada”. Vale lembrar que o Código Penal vigente é de 1940, portanto, anterior à Constituição Federal, de 1988. Como explica esta reportagem especial da Gênero e Número, “No entendimento das autoras da ação, a criminalização do aborto viola princípios como a igualdade, a não discriminação, a saúde e o planejamento familiar das mulheres e os direitos sexuais e reprodutivos, presentes na Constituição atual, mas que não eram contemplados no momento da edição do Código Penal”.

O voto de Rosa, que tem mais de 100 páginas, levou em conta ainda pesquisas, dados de saúde, experiências em outros países, debates e audiências públicas que aconteceram no Brasil em 2018. Não foi a primeira vez que a ministra se posicionou a favor da descriminalização do aborto – em 2012 ela foi favorável à interrupção da gestação em casos de fetos anencéfalos, que seria aprovado pelo STF, e em 2016 ela não viu crime em julgamento de um aborto realizado nos primeiros três meses de gestação.

O TEMPO DAS MULHERES É O AGORA

Não há perspectiva de quando a pauta deve ser de fato decidida, mas o voto gerou ampla movimentação, tanto por parte de movimentos feministas que criaram campanhas para expandir o debate na sociedade e pressionar o judiciário a avançar, quanto por parte de organizações religiosas e políticos ultraconservadores que pediram anulação do voto e fizeram falas contrárias inflamadas no Congresso Nacional. Para algumas ativistas feministas, a decisão de Barroso em adiar teria sido estratégica, já que não existem garantias de votos suficientes na Suprema Corte e ainda seria preciso avançar nas conversas sobre o tema com a sociedade para que essa chance valiosa não seja perdida. Débora argumenta que existem “tempos diferentes”. Para as mulheres, lembra, o tempo está contando desde 1940, quando passaram a morrer e ser criminalizadas. “O tempo de uma mulher que morre a cada x dias, o tempo de uma mulher que atravessa uma fronteira atrás de um aborto legal é urgente. No patriarcado racista nunca vai haver o momento para os homens julgarem o aborto, eles sempre vão dizer que esse é um tempo perigoso demais. O tempo é o agora porque a corte precisa ser responsabilizada por dizer não ou por não votar. Há responsabilizações históricas e os processos históricos também fazem com que sujeitos no poder sejam responsabilizados por deixar morrer, por deixar sofrer. Esses juízes vão ter que assinar esse capítulo da história”. Mas também é preciso considerar, diz a antropóloga, que tivemos 4 anos de instabilidade democrática e uma pandemia. “Há pouco a gente estava falando da possibilidade de uma existência democrática. O tempo da Corte começa a contar agora, com o voto dela [Rosa Weber]. Ele teve seu momento inicial na ação, nas audiências públicas que foram céleres, mas o voto dela que marca esse tempo. Então, apesar de o tempo vivido pelas mulheres ser o tempo da urgência, do agora, o tempo do político é complexo”.

CRIME E CASTIGO PARA AS MAIS VULNERÁVEIS

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Foto: Fernando Frazão/ EBC

O aborto é permitido por lei no Brasil apenas em três casos: na gravidez decorrente de estupro, anencefalia do feto e risco de vida da gestante. A descriminalização de interrupção em caso de anencefalia só foi incluída em 2012, por decisão do STF. Já a criminalização é prevista por dois artigos do Código Penal: O artigo 124, que criminaliza a pessoa que provocar o aborto em si ou consentir que outra pessoa provoque, com pena de um a três anos de prisão; e o artigo 126, que criminaliza a pessoa que provocar o aborto com consentimento da gestante. Neste caso a pena é de um a quatro anos de prisão.

A Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) de 2021 mostra que uma em cada sete mulheres, com idade próxima aos 40 anos, já fez pelo menos um aborto no Brasil. Os perfis são variados entre idades do ciclo reprodutivo, religiões, escolaridades, raças, classes sociais, estado civil e regiões do país, mas com concentração maior em grupos mais vulneráveis – são mulheres negras, indígenas, residentes no Norte e do Nordeste, com menor escolaridade e muito jovens. A PNA também mostrou que 46% das entrevistadas tiveram de ser hospitalizadas para finalizar o aborto. Recorrendo a métodos ilegais impostos pela criminalização, essa vulnerabilidade se torna ainda maior para mulheres e meninas que não têm acesso a médicos e hospitais particulares. Segundo um levantamento divulgado pela Gênero e Número, uma mulher morre a cada 28 internações na rede pública de saúde por falha na tentativa de aborto e mulheres pardas correm duas vezes mais riscos do que brancas.

Outro dado da PNA que chama a atenção é que 52% do total de mulheres que abortaram tinham até 19 anos. Dentre estas, 46% eram adolescentes entre 16 e 19 anos e 6% meninas entre 12 e 14 anos. Segundo a legislação, praticar sexo ou atos libidinosos com menores de 14 anos é estupro de vulnerável, e por isso essas meninas teriam direito ao aborto legal, mas para além do estigma e da falta de informação a respeito, o acesso a esse direito garantido ainda é dificultado por profissionais da saúde e da justiça que se baseiam em crenças pessoais, pela falta de estrutura dos hospitais e por intervenções muitas vezes diretas e violentas que incluem a exposição pública dessas meninas, ataques em frente a hospitais e o assédio por parte de fanáticos religiosos e políticos ultraconservadores às famílias das crianças. Durante o governo Bolsonaro, uma série de medidas e portarias foram criadas para dificultar ainda mais esse acesso, como, por exemplo, a Portaria 2.561, de 23 de setembro de 2020, assinada pelo general Eduardo Pazuello, que impôs um “procedimento de justificação e autorização” para a realização do aborto, como mostra essa reportagem da Agência Pública. Na portaria, o Artigo 7º previa que os médicos e os profissionais de saúde deveriam acionar a polícia caso acolhessem uma paciente que fosse vítima de estupro. Além disso, determinava que era necessário preservar “possíveis evidências materiais do crime de estupro”, como fragmentos de embrião ou feto que pudessem levar à identificação do autor do crime. A reportagem lembra ainda que a Portaria 2.561 foi uma substituta de uma medida anterior, considerada por entidades do setor ainda pior: a Portaria 2.282, também de 2020, que previa que os médicos deveriam informar à paciente acerca da possibilidade de visualização do feto ou embrião em ultrassonografia. Ainda durante o governo Bolsonaro, o Brasil chegou a liderar o Consenso de Genebra sobre Saúde da Mulher e Fortalecimento da Família, um documento assinado por mais de 30 países diversos países contra o aborto. Com o novo governo, o Brasil deixou de ser signatário e as medidas que dificultam o acesso ao aborto legal têm sido revogadas pelo Ministério da Saúde chefiado por Nísia Trindade Lima.

ATAQUES POLÍTICOS

Por seu posicionamento, a ministra e o governo Lula têm sofrido ataques e ameaças, sobretudo por parte das bancadas católica, evangélica e espírita no Congresso Nacional. Em um pronunciamento no salão verde da Câmara dos Deputados em setembro, parlamentares de extrema-direita como Magno Malta (PL), Eduardo Bolsonaro (PL), Bia Kicis (PL), Marco Feliciano (PL), Silas Câmara (Republicanos) e Chris Tonietto (PL) cobraram que Lula cumprisse o que prometeu em carta aos evangélicos e declararam “guerra” ao Executivo, prometendo ir às ruas, travar discussões e pautas no Congresso. “Nós temos um exército” diria Silas Câmara, “um exército bem disciplinado, bem treinado e que sabe exercer as suas prerrogativas e que se ousarem nos enfrentar, nos terão unidos e fazendo o nosso papel de pessoas que têm certeza absoluta que o Brasil está melhor nos braços do nosso Ser Supremo, que é Deus”. Segurando uma réplica de feto de borracha, Magno Malta afirmou que “o dia da mulher deveria ser o dia do útero” e o pronunciamento seguiria nesse tom por mais de uma hora. No início de outubro no Senado, foi realizada uma sessão especial dedicada ao “Dia Nacional do Nascituro”, marcada por protestos contra o julgamento do Supremo Tribunal Federal. Da tribuna, o senador Magno Malta disse que a pior ditadura é a do Judiciário e avaliou que o STF espera que o Congresso tenha uma atitude “subalterna” em temas como drogas e aborto. Para ele, a ministra aposentada Rosa Weber, antes de deixar o Supremo, deu seu voto pela “instituição da morte de inocentes”. Também em reação ao voto de Rosa Weber, parlamentares protocolaram um pedido de plebiscito para que a “população decida sobre a legalização do aborto”. A ideia é contar com a falta de informação sobre o tema e o viés religioso para gerar pressão sobre o STF.

As pesquisas de opinião são geralmente enviesadas, diz Débora Diniz. “A pergunta é feita em um contexto de criminalização. Você é contra ou a favor do aborto? É preciso muita coragem pra dizer que é favorável. Me surpreende estar crescendo [o número de pessoas que se dizem a favor]. É porque tem uma onda muito forte de transformação social. Porque nós temos essa ultradireita que se mantém como essa célula que não se move, ou que se move por contágio de afetos negativos e positivos entre eles e com restrição de imaginação. E a gente presencia talvez mais intenso que qualquer outro momento histórico é a rapidez com que o contágio se espalha e como diferentes conflitos da vida reduz ao binarismo da moral. Essas percepções contaminadas por esses afetos operam como redemoinhos quando algo é acionado. Por outro lado, eu sinto uma mudança geracional muito intensa em mulheres e meninas que não se intimidam em se dizer feministas, que não se espantam com a sexualidade”. Essa mudança pode ser percebida também na pesquisa realizada em parceria entre o Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea), o Observatório de Sexualidade e Política (SPW, na sigla em inglês – Sexuality Policy Watch Brasil) e o Centro de Estudos de Opinião Pública (CESOP/Unicamp). Com uma mudança na pergunta – “Você é ou não a favor que mulheres que abortam sejam presas?” – A análise sistematizou dados das pesquisas de opinião realizadas pelo Instituto da Democracia entre 2018 e 2023, detalhando o posicionamento de cada segmento da sociedade desagregados por raça, faixa etária, religião, sexo/gênero. Segundo a análise, a opinião contrária à prisão de mulheres que praticam aborto vem crescendo no Brasil, em todos os segmentos sociais, incluindo pessoas católicas e evangélicas. 59% das pessoas entrevistadas se disseram contra a prisão de mulheres que cometem aborto em 2023.

Há não apenas que se avançar nas discussões sobre aborto no Brasil, mas também tecer estratégias para se avançar na direção certa. Tirar a pauta do centro dos discursos de pânico moral, tabu religioso e criminalização, entender sua importância para a vida das mulheres, sobretudo as mais vulneráveis, e aceitá-la como questão de saúde pública é tarefa difícil, mas não impossível. A descriminalização do aborto é urgente e sua discussão no STF não deve cair no limbo da indefinição porque, como reflete Débora Diniz, “o tempo da indefinição é um tempo covarde, porque ele é um tempo de deixar sofrer, deixar morrer”. Como diz a palavra de ordem feminista, descriminalizar o aborto “é pela vida das mulheres”.