Conceder à natureza o status de sujeito de direito pode resignificar o conceito de “desenvolvimento” e fortalecer um paradigma anticapitalista no que tange o futuro do planeta
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Direitos da natureza: um debate necessário
26/06/2014
por
Verena Glass

Conceder à natureza o status de sujeito de direito pode resignificar o conceito de “desenvolvimento” e fortalecer um paradigma anticapitalista no que tange o futuro do planeta

Por: Verena Glass

E se se reconhecesse universalmente que, assim como o ser humano, a natureza tem direitos? Se se reconhecer universalmente que a natureza, em todas as suas formas de vida, tem o direito de existir, persistir, manter e regenerar seus ciclos biológicos? Se à natureza não fosse conferida a condição de objeto, mas o status de sujeito de direitos? Se se reconhecer que, ao final das contas, a natureza não é simplesmente um item possuível, explorável, descartável e manipulável – ou simplesmente uma “propriedade” – perante a lei?

Os Direitos da Natureza, compreendidos como o equilíbrio do que é bom para os seres humanos com o que é bom para as outras espécies do planeta, são um conceito que, juridicamente, pode ainda não ter penetrado a jurisprudência das cortes brasileiras, mas já foi aplicado em processo do Ministério Publico Federal (MPF) e tem uma sólida definição na Constituição equatoriana. Dois fatos importantes para a arrancada de um processo de consolidação da ideia na nossa região.

Durante o 1º Encontro de Pesquisadores da Panamazônia, ocorrido no final de maio na cidade de Macapá (no marco do Fórum Social Panamazônico), o procurador do MPF no Pará, Felicio Pontes Jr, o economista e Presidente da Assembleia Constituinte do Equador, Alberto Acosta, e a cientista social e doutoranda da UFRRJ, Camila Moreno, propuseram uma série de reflexões sobre o que é e como pode ser aplicado o Direito da Natureza.

Em outubro de 2011, o Ministério Público Federal no Pará impetrou a 13ª Ação Civil Pública (hoje já são 21 ACPs) contra a hidrelétrica de Belo Monte. Esta Ação versou especificamente sobre os impactos irreversíveis da usina sobre o ecossistema da Volta Grande do Xingu; a morte iminente do ecossistema; risco de remoção dos índios Arara e Juruna e demais moradores da Volta Grande; vedação constitucional de remoção; e – aí destaca-se o novo elemento – a violação do direito das futuras gerações; o direito da natureza; e a Volta Grande do Xingu como sujeito de direito.

Foi uma ação ousada e, porque não dizer, de certo modo até poética, conta Felício na conversa com Acosta e Camila. O mapa da Volta Grande estampado na parede, o procurador acompanha com o dedo o traçado do rio e explica os impactos irreversíveis que Belo Monte causará a este trecho do Xingu, considerado, por decreto do Ministério do Meio Ambiente, como de importância biológica extremamente alta pela presença de uma fauna que só existe nessa área.

“A usina, de acordo com todos os documentos técnicos produzidos seja pelo Ibama e pelas empreiteiras responsáveis pelos Estudos [de Impacto Ambiental], seja pela Funai, o MPF ou os cientistas que se debruçaram sobre o projeto, vai causar a morte de parte considerável da biodiversidade na região da Volta Grande do Xingu – trecho de 100 km do rio que terá a vazão drasticamente reduzida para alimentar as turbinas da hidrelétrica”, explicou o MPF à época. “Mas o juiz, quando apreciou a ação, respondeu curto e grosso em um parágrafo que aquilo não lhe fazia sentido”, diz Felício. “Foi frustrante”. De toda forma, o fato é que o Direito da Natureza se fez presente no judiciário brasileiro. É um primeiro passo, pondera o procurador, para que a incompreensão inicial deste conceito seja passível de reversão.

Na Constituição do Equador de 2008, os Direitos da Natureza têm quatro artigos – do 71 ao 74 – que os definem e garantem. O artigo 72 reza: “O Estado aplicará medidas de precaução e restrição para as atividades que possam conduzir à extinção de espécies, a destruição de ecossistemas ou a alteração permanente dos ciclos naturais”. Já o artigo 74 afirma que “as pessoas, comunidades, povos e nações terão o direito a beneficiar-se do ambiente e das riquezas naturais que lhes permitam o bem viver”.

Mas como direitos constitucionais nem sempre equivalem a direitos respeitados, assim como em Belo Monte o governo equatoriano recentemente jogou no monturo o que reza a Constituição do país e uma proposta ousada – a manutenção do petróleo no subsolo no parque Yasuni, que detém uma das mais preciosas biodiversidades do planeta e é o território de inúmeros indígenas em isolamento voluntário – e se imbuiu de um antidemocratismo exemplar ao decidir que para o inferno os direitos da natureza e das populações que nela vivem, o país precisa dos recursos advindos do petróleo do Yasuni para promover seu desenvolvimento.

Mas o que é desenvolvimento? Porque, em seu nome, direitos sociais e ambientais tem sido tão amplamente violados? Na avaliação da cientista social Camila Moreno, o discurso construído em torno da ideia-força do ‘desenvolvimento’ é intrínseco e indissociável à consolidação do regime multilateral, inaugurado após a segunda guerra mundial com os acordos de Bretton Woods e a criação do sistema das Nações Unidas. Fundado em 1944, o Banco Mundial, uma das principais instituições do regime multilateral, tem entre suas instituições financeiras o Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento (IBDR, por sua sigla em inglês), fundado para reconstruir a Europa devastada e prover empréstimos para o desenvolvimento dos países de renda média e pobres. Desde então, como esforço comum entre as nações e como fundamento de cooperação internacional, se tornou central promover o “desenvolvimento”.

“Na prática, o discurso sobre o ‘desenvolvimento’ vem funcionando há mais de setenta anos como uma espécie de ‘chip’, um dispositivo mental que delimita o debate e os imaginários da política em todo o mundo, justificando as decisões econômicas que consolidaram e justificaram um processo de acumulação desigual em escala global. Em que pesem décadas de crítica, como a escola do sub-desenvolvimento e as teorias de dependência, para citar alguns, a ideologia desenvolvimentista, associada à ideia de crescimento ilimitado, determina hoje o sentido da história, expropria as populações sobre decidir seu próprio destino, justificando decisões cotidianas sobre o futuro de territórios e ecossistemas e impondo um modo de vida em sociedade que se afirma na subjugação entre a diversidade de culturas, das mais às menos ‘desenvolvidas’, perpetuando equações coloniais e eurocêntricas”, explica Camila.

De acordo com a cientista social, passando pela reciclagem do desenvolvimento sustentável, e mais recentemente incorporando a dimensão climática através das propostas de desenvolvimento de baixo carbono, a ideia-força de “desenvolvimento” segue sendo um dispositivo central à manutenção do discurso hegemônico. Com o que Acosta concorda. “Quando os problemas começaram a minar a nossa fé no ‘desenvolvimento’, começamos a buscar alternativas colocando-lhe sobrenomes para sanar o que nos incomodava: desenvolvimento econômico, desenvolvimento social, desenvolvimento local, rural, sustentável, com equidade de gênero, ecodesenvolvimento, etnodesenvolvimento, etc. O ‘desenvolvimento’ como conceito, porém, nunca foi questionado”, explica o economista. Assim como não foram questionados suficientemente seus efeitos devastadores sobre ecossistemas, territórios e populações.

Por outro lado, pondera Camila, recentemente outras ideias com força para ocupar o imaginário e inaugurar novas dimensões emancipatórias vem ganhando espaço e adesão ao redor do mundo. “Surgidas em diferentes contextos, estas ideias, como o ‘Buen Vivir’ na América Latina, por exemplo, fazem frente à imposição unidirecional do desenvolvimento, questionando o sentido de futuro único, como se a direção da vida em sociedade fosse linear, partindo de um estágio inferior (sub-desenvolvido) a outro em processo (em desenvolvimento) até alcançar o patamar do pronto, acabado, perfeito (desenvolvido)” .

E aqui entra também a proposta de que sejam considerados, política e juridicamente, como critério mandatário na execução (ou não) de projetos e políticas desenvolvimentistas, os Direitos da Natureza. Em sua 13ª ação contra Belo Monte, o MPF adotou a postulação jurídica da pesquisadora do Núcleo de Prática Jurídica da Faculdade de Direito da UnB, Fernanda Andrade Mattar Furtado, para fundamentar o processo: “a visão antropocêntrica da relação do homem com a natureza nega o valor intrínseco do meio ambiente e dos recursos naturais, o que resulta na criação de uma hierarquia na qual a humanidade detém posição de superioridade, acima e separada dos demais membros da comunidade natural. Essa visão priva o meio ambiente de uma proteção direta e independente. Os direitos fundamentais à vida, à saúde e à qualidade de vida são fatores determinantes para os objetivos da proteção ambiental. Assim, o meio ambiente só é protegido como uma consequência e até o limite necessário para proteção do bem-estar humano. A visão antropocêntrica utilitária do direito ambiental subjuga todas as outras necessidades, interesses e valores da natureza em favor daqueles relativos à humanidade. As vítimas da degradação, em última instância, serão, sempre, os seres humanos, e não o meio ambiente”.

Ou seja, argumenta o MPF, “é necessário impor limitações ecológicas à ação humana. Faz-se isso através da compreensão de que a natureza possui valor intrínseco, não apenas instrumental. Passa-se da doutrina antropocêntrica utilitária para o antropocentrismo alargado ou moderado. Trata-se da conciliação entre os direitos humanos e os direitos da natureza”.

Seria, desta feita, o conceito dos Direitos da Natureza o propulsor de um novo paradigma anti-capitalista, à medida que limita os desvarios do desenvolvimento ou desenvolvimentismo capitalista no que se refere à exploração de bens naturais? De acordo com Acosta, o conceito questiona sim o capitalismo à medida que este acelerou o divórcio entre natureza e seres humanos. Nesse sentido, explica o economista, há que se desmontar o instrumental ideológico do capitalismo sustentado na acumulação permanente do capital, ancorado no crescimento econômico e na especulação.

“A economia deve subordinar-se à ecologia sim, por uma razão muito simples: a natureza estabelece os limites e alcances da sustentabilidade e da capacidade de renovação dos sistemas das quais dependem as atividades produtivas. Ou seja, se se destrói a natureza, se destrói a base da própria economia. Escrever essa mudança histórica, a passagem de uma concepção antropocêntrica à uma sócio-biocêntrica, é o maior desafio da humanidade, se não quiser por em risco a própria existência do ser humano sobre a terra”, conclui Acosta.