A arma utilizada para executar a vereadora Marielle Franco foi uma submetralhadora HK-MP5, da fabricante Heckler & Koch. E a Fraport alemã tem problemas sérios em Porto Alegre
A arma utilizada para executar a vereadora Marielle Franco foi uma submetralhadora HK-MP5, da fabricante Heckler & Koch. E a Fraport alemã tem problemas sérios em Porto Alegre
O que o massacre de Canudos, narrado no livro Os Sertões, de Euclides da Cunha, tem a ver com a remoção de mais de duas mil famílias da Vila Nazaré para a ampliação da pista do aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre? O envolvimento de empresas alemãs. O histórico de violações de direitos humanos das companhias germânicas, que une essas remoções de comunidades pobres separadas por milhares de quilômetros e mais de um século no tempo, é o tema do livro Empresas Alemãs no Brasil: O 7×1 na Economia, que teve seu lançamento em Porto Alegre realizado no início da tarde desta segunda-feira (28) no auditório da Faculdade de Economia da UFRGS.
A obra (disponível aqui) foi escrita pelo jornalista alemão Christian Russau com apoio da Fundação Rosa de Luxemburgo, entidade ligada financiada por fundos do estado alemão e ligada ao partido Die Linke (A Esquerda) para atuar com ações de formação política. Representando o autor do livro, Gerhard Dilger, diretor do escritório regional da fundação em São Paulo, destacou no evento que os 7×1 do nome — uma referência ao placar da semifinal da última Copa do Mundo — representam a goleada que grandes empresas alemãs têm dado nos direitos humanos e na natureza no Brasil, uma relação iniciada no século XIX e que se estende até os dias de hoje. A região metropolitana de São Paulo é hoje o local com maior concentração de empresas alemãs fora da Europa.
Vice-presidente da Associação de Moradores da Vila Nazaré (Amovin), Franco Ribeiro da Rosa destaca que a Fraport, concessionária alemã que assumiu o controle do Salgado Filho em janeiro deste ano, exige a saída de todas as famílias das comunidades no entorno do aeroporto até o final de 2018 para poder dar andamento às obras de ampliação da pista. “Eles falaram para as famílias que não vão abrir mão de nenhum palmo de terra lá, que eles querem tudo, e que querem terminar tudo isso até dezembro”, diz.
A comunidade, no entanto, está disposta a resistir. “Ninguém se opõe a ir para qualquer outro lugar que eles mandem a gente, desde que seja ali na própria zona norte. Ninguém quer impedir o crescimento desse aeroporto, só que a gente quer ser respeitado, a gente quer estar na mesa de negociações, a gente quer participar e não queremos ir para a Timbaúva de jeito nenhum, é muito longe”.
As duas alternativas dadas às famílias são unidades habitacionais em dois empreendimentos do Minha Casa, Minha Vida. O primeiro deles é na Nosso Senhor do Bonfim, no bairro Sarandi, onde há a promessa de 364 casas a serem destinadas para os moradores da atual Vila Nazaré. O segundo fica no loteamento Irmãos Marista-Timbaúva, no bairro Mário Quintana, onde mais mil casas seriam destinadas à comunidade.
A principal reclamação dos moradores é contra a transferência de famílias para o condomínio da Timbaúva, onde eles dizem não haver condições adequadas para acesso a escolas, posto de saúde, oportunidade de trabalho para quem atua com reciclagem e áreas de comércio para quem atua nesse ramo na Nazaré, além de estar mais de 10 km distante. Também questionam se há uma real necessidade de todas as famílias serem removidas de onde estão atualmente, uma vez que, segundo dizem, os projetos apresentados a eles não deixam claro que isso seja necessário.
A comunidade defende que há áreas próximas da Nazaré em que é possível acomodar todas as duas mil famílias sem a necessidade de separação em dois locais diferentes. Os moradores ponderam que a comunidade é mais do que apenas a soma das casas das pessoas, mas sim a relação social que se desenvolve na ajuda que um vizinho dá para outro, na sucessão de famílias que ocorre, no caso da Nazaré, há mais de 50 anos.
Evento combinou falas sobre o livro, de movimentos sociais e de lideranças da comunidade
Os sete gols
O “primeiro gol” listado na obra são as relações entre a empresa alemã Krupp e o governo brasileiro, que começam ainda no período imperial com Dom Pedro II e tem como marca principal o fato de seus canhões terem sido utilizados no massacre e na destruição de Canudos, na repressão ao movimento liderado por Antônio Conselheiro — fato narrado em Os Sertões — no final do século XIX. Gerhard destaca que as empresas armamentistas tem ligações obscuras com o Brasil até hoje, visto que a arma utilizada para executar a vereadora Marielle Franco (PSOL) foi uma submetralhadora HK MP5, da fabricante Heckler & Koch, que teoricamente deveria ser de uso exclusivo de forças militares e policiais.
O segundo gol narrado no livro diz respeito ao acordo nuclear firmado entre Alemanha e Brasil em 1965, durante a ditadura cívico-militar brasileira, que daria origem a usinas em Angra dos Reis (RJ). O terceiro também diz respeito ao período militar, versa sobre a colaboração entre a montadora Volkswagen e o aparelho repressivo do estado brasileiro. “A Volkswagen basicamente se nega a reparar os danos de sua colaboração, o que deveria fazer, porque tem provas disso”, diz Gerhard.
O quarto são as relações de empresas alemãs com a extração mineral no Brasil, uma das atividades que registram o maior número de denúncias de violação de direitos humanos. O quinto é o caso da siderúrgica da Thyssen-Krupp no Rio de Janeiro, que gerou um desastre ambiental na Baía de Sepetiba deixando, entre outras consequências, cerca de 7 mil pescadores sem sustento. O sexto é a participação de companhias do país europeu na construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, outro caso também permeado por denúncias de violações. O sétimo e último seria o impacto das empresas alemãs, mais notadamente a Bayer, na venda de agrotóxicos, alguns deles proibidos na Europa, para as lavouras brasileiros.
8, 9 e 10
Obras no aeroporto Salgado Filho de Porto Alegre
Franco destaca que as notícias de possíveis remoções da Nazaré são antigas. Quando seu pai comprou uma casa ali, nos anos 1970, já fora alertado para não investir muito porque poderia perder tudo no ano seguinte. Ele reclama que o acordo para a remoção das famílias firmado com o Departamento Municipal de Habitação (Demhab) em 2009 foi fruto de uma reunião com apenas 50 pessoas, que não poderiam representar as milhares que moram no local e que, mesmo assim, foram iludidas com promessas que não serão cumpridas. “Disseram que ia ter casa de três dormitórios e não vai ter. Vai ser o mínimo do mínimo do Minha Casa, Minha Vida”, exemplifica.
Com a entrada da Fraport no jogo, no início do ano, a pressão contra os moradores aumentou. A empresa contratou uma empresa para fazer o cadastramento e agilizar a remoção das famílias — ainda que as unidades habitacionais não estejam concluídas. Em um primeiro momento, a comunidade não permitiu que esse processo fosse feito.
Na sequência, porém, os funcionários da empresa voltaram à Nazaré com o apoio da Brigada Militar e passaram a utilizar da repressão para entrar nas casas e fazer o cadastramento, o que os moradores temem que resulte na remoção forçada, mesmo daqueles que não queiram ir a Nosso Senhor do Bonfim ou para a Timbaúva. “O povo precisa de respostas e não tem resposta nenhuma. Lá em cima, os grandão tão canetando, se reunindo e decidindo pela vida da gente, e a gente não tá sabendo de nada. A única coisa que a gente quer é respostas, porque o povo tá no escuro”, diz Franco.
Franco afirma que, à comunidade, a Fraport diz que está interessada apenas em cumprir o prazo de até o final do ano para a remoção. Para piorar, ele aponta que, em razão do interesse na remoção, a comunidade já está sendo abandonada pelos órgãos públicos na prestação de serviços. A casa de uma vizinha, conta, foi invadida pelo esgoto e, como o Departamento de Esgoto Pluviais (DEP) não envia técnicos para Nazaré mais, ela será obrigada a se mudar.
O Demhab disse em audiência pública realizada na semana passada (ver abaixo vídeo produzido pelo coletivo Catarse) que todos os serviços públicos serão redimensionados quando ocorrer a remoção das famílias, mas elas permanecem céticas, citando por exemplo, o caso de moradores já removidos da Vila Dique, que agora precisam pegar dois ônibus para acessar o posto de saúde de referência deles, que antes ficava a uma pequena distância a pé. Franco aponta ainda que o departamento, quando questionado sobre os problemas nos condomínios, apenas “lava as mãos” e empurra para a Caixa Econômica Federal, que financia o programa Minha Casa, Minha Vida.
O gol brasileiro
Bem como o gol de Oscar na Copa, com impacto muito menor do que aqueles do adversário, o “gol brasileiro” listado no livro seria a possibilidade de colaboração entre as sociedades civis nos dois países para barrar a continuidade dessas relações de superexploração do trabalho, violações aos direitos humanos, destruição ambiental, influência política e lucros estratosféricos.
E é justamente esse potencial gol brasileiro que une o livro e as famílias da Vila Nazaré. O autor Christian Russau, que também faz parte de uma organização chamada de Acionistas Críticos, participou, em Frankfurt, na Alemanha, de uma reunião de acionistas do grupo Fraport em que leu uma carta escrita por moradores da vila denunciando as violações provocadas pelo interesse na duplicação do Salgado Filho à comunidade e também a outras do entorno do aeroporto. “A ideia é fazer pressão desde a Alemanha junto à sociedade civil para que as empresas cumpram com o respeito aos direitos humanos e ambientais”, diz Gerhard, que explica que os acionistas da Fraport são majoritariamente entes públicos, o estado de Hesse e a cidade de Frankfurt.
Gerhard explica ainda que a Acionistas Críticos é uma organização que visa denunciar escândalos e violações cometidas por empresas alemãs em outras partes do mundo: “Por exemplo, o fato da Bayer vender agrotóxicos que são proibidos na Europa para o Brasil, que é o campeão do mundo em uso de agrotóxicos”.
Denúncias contra Fraport e em defesa da Vila Nazaré chegam a Frankfurt
Acionistas da Fraport AG, empresa que conquistou a concessão dos aeroportos de Fortaleza e Porto Alegre pelos próximos 30 e 25 anos, respectivamente, realizaram ontem, 29, reunião na cidade de Frankfurt, na Alemanha, onde está localizada sua sede. Na ocasião, considerada uma das reuniões mais importantes do ano para a empresa, os acionistas contaram com a participação dos Amigos da Terra – Alemanha, entidade solidária às reivindicações dos moradores da Vila Nazaré, já impactados com os planos de expansão do aeroporto.
Arne Fellermann da Bund/AdT Alemanha
Durante a reunião dos acionistas, um representante do Amigos da Terra – Alemanha falou por dez minutos sobre a luta e a resistência da Vila Nazaré que é vizinha do aeroporto e está ali localizada há cerca de 60 anos. Além de denunciar as violações cometidas pela Fraport, o integrante do Amigos da Terra denunciou ações da Itazi Engenharia, da prefeitura de Porto Alegre e da Brigada Militar contra a comunidade.
Os discursos foram feitos com informações enviadas por moradores da Vila Nazaré, pela Associação dos Moradores da Vila Nazaré (Amovin), pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), pelos Amigos da Terra e pelo Coletivo Catarse. Em resposta às denúncias, o CEO (chefe-executivo) da Fraport, Stefan Schulte, respondeu que a Fraport não tem responsabilidades frente a remoção da Vila Nazaré.
“Esse é um problema da prefeitura. Todo mundo vai receber casa nova sem ter que gastar nada, então as pessoas não teriam do que reclamar”, disse Schulte.
Em resposta, o coletivo de movimentos em defesa dos moradores da Vila Nazaré escreveram. “A Nazaré não é uma ocupação ilegal, está ali há cerca de 60 anos e tem direito de posse àquela terra. A Fraport tem sim que se responsabilizar pelos danos causados à comunidade, se ela quer a pista do aeroporto, nós queremos os nossos direitos, só isso”, registrou o coletivo.
Entre as reivindicações dos moradores estão o desejo de permanecer na região com acesso a serviços de moradia, saúde, transporte, segurança, educação. Segundo jornalistas do Movimento Catarse, sob a justificativa das obras de expansão da pista do aeroporto Salgado Filho, as famílias da Vila Nazaré, estão sendo ameaças de perderem suas casas. Sem negociação, a prefeitura quer dividir a comunidade que ali se estabeleceu, mandando parte das famílias para apartamentos do Minha Casa, Minha Vida no bairro Sarandi, onde hoje está a Ocupação Senhor do Bom Fim, e outra parte para o bairro Mário Quintana, próximo ao Loteamento Timbaúva.
A decisão não agrada os moradores: não querem ser empurrados para mais longe, tendo arrancadas suas raízes de uma comunidade onde se sentem seguros. Também não querem se separar da vizinhança com quem cresceram e criaram laços.
Vila Nazaré “ocupa” reunião de acionistas da Fraport e irrita CEO da empresa
A partir de uma articulação entre Amigos da Terra Brasil e Amigos da Terra Alemanha (Bund), a luta da Nazaré foi ouvida dentro da reunião de acionistas da Fraport, no coração da empresa
O encontro ocorreu na manhã desta terça-feira (29/5, madrugada no Brasil), na cidade de Frankfurt, Alemanha. Por 20 minutos (10 minutos cada fala), Christian Russau (autor do livro lançado na segunda-feira sobre as violações cometidas por empresas alemãs no Brasil) e Arne Fellermann (da Bund) contaram a história de luta e de resistência da Vila Nazaré, além de denunciar as violações cometidas pela Fraport, pela Itazi, pela prefeitura de Porto Alegre e pela Brigada Militar contra a comunidade. Os discursos foram feitos a partir da construção coletiva de todos envolvidos na resistência, as pessoas da Nazaré, a Amovin (Associação dos Moradores da Vila Nazaré), o MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), a Amigos da Terra e o Coletivo Catarse. Ao fim da fala, muitos aplausos e gritos de apoio à luta por parte do público que acompanhava a reunião.
Christian Russau
Obviamente, porém, os chefes não gostaram tanto assim dessa “ocupação”… E o CEO (chefe-executivo) da Fraport, o Sr. Stefan Schulte, que inclusive visitou Porto Alegre em outubro de 2017, quando encontrou o governador do RS José Ivo Sartori (e passaram longe da Vila Nazaré), respondeu aos questionamentos com mentiras e desinformação. Ele afirmou, entre outros absurdos, que: a Nazaré é uma ocupação ilegal e as pessoas não deveriam morar ali; a Fraport não tem nenhuma responsabilidade sobre a remoção da Nazaré, esse não seria um problema deles, mas sim da prefeitura e dos poderes públicos; e que todas as famílias teriam já casas prontas para morar, pelas quais nem precisariam pagar e, logo, não teriam do que reclamar.
Em Porto Alegre, sabe-se bem como tais informações são equivocadas. Primeiro, a Nazaré não é uma ocupação ilegal, está ali há cerca de 60 anos e tem direito de posse àquela terra. Segundo, a Fraport tem sim que se responsabilizar pelos danos causados à comunidade. Não há oposição à expansão da pista de pouso do aeroporto: quer-se somente a garantia dos direitos às pessoas atingidas pelas obras, que precisam fazer parte da solução da questão. Simples. A comunidade da Vila Nazaré é bem clara em suas exigências, como a de ficar na região onde já criou raízes, com melhorias no acesso a serviços de moradia, saúde, transporte, segurança e educação.
Por último, a própria Fraport, na figura do CEO Schulte, admite não saber quantas pessoas moram na Nazaré: ele calcula algo em torno de 600 a 900 famílias, mas não sabe ao certo – e só poderá saber ao fim do processo de cadastramento (hoje, responsabilidade da subcontratada da Fraport, a Itazi, que constrange moradores e apela para a presença policial para realizar seu questionário). Sem saber ao certo quantas famílias vivem na Nazaré, como pode a Fraport afirmar que todos receberão casa? Ora, apenas mentindo… Além do mais, as casas às quais Schulte se refere são as do Nosso Senhor do Bom Fim e do Loteamento Timbaúva, seguindo o plano de dividir a comunidade, o que já foi refutado pelas famílias, que se negam principalmente a ir para o Timbaúva, onde vidas seriam postas em risco. Timbaúva não! – gritou alto na audiência pública da semana passada a comunidade inteira.
A Fraport precisa assumir suas responsabilidades sobre o processo de remoção da Vila Nazaré, cessar com as violações que impõe aos direitos das moradoras e moradores, em uma relação construída por meio do medo, de ameaças e de completa falta de transparência. Ontem, os acionistas – e também o CEO Stefan Schulte – ouviram isso, constrangidos. Que aprendam a dialogar, pois não haverá descanso: a Vila Nazaré segue firme, unida e na luta!
Em determinado momento, Schulte afirmou ter orgulho do portfólio internacional da Fraport, especialmente com o acréscimo de Porto Alegre e Fortaleza (outra cidade brasileira na qual a Fraport opera o aeroporto). Os “acionistas críticos” então perguntaram, pergunta à qual agora fazemos coro: Do que você tem orgulho, sr. Schulte? Você sabe o que a expansão do aeroporto fará com a população local, expulsando dali 2.100 famílias sem nenhuma garantia de direitos? E isso lhe satisfaz?
Fotos: Guilherme Santos/Sul21 (2), Gabriel Heusi, Christian Russau, Arne Fellermann, Cartoon: Latuff