“Agora a chuva escolhe preto pra cair?”. A frase, ou algo bem próximo a ela, foi escrita por um perfil falso numa postagem sobre racismo ambiental. Variações disso podem ser lidas com frequência pela internet, revelando tanto a desinformação presente no senso comum como também ataques ordenados contra essa que é uma importante frente de luta do movimento negro, de quem vive nas periferias urbanas ou em comunidades tradicionais.
O racismo ambiental é, antes de tudo, racismo. Portanto, um arranjo socialmente construído que conjuga ideologia, estruturas sociais e ações políticas de pessoas e instituições públicas e privadas que garantem privilégios à branquitude. Não é a chuva que escolhe cair em negros, obviamente. Essas pessoas não escolhem morar em áreas vulneráveis. A vulnerabilidade é produzida para manter o equilíbrio desigual da sociedade. Os negros, cerca de 56% da população brasileira, segundo o Censo 2022, e outros grupos racializados, como as diversas comunidades indígenas, vivem em áreas que recebem menos infraestrutura para se relacionar com a natureza ou em territórios destinados a receber os impactos negativos das infraestruturas instaladas em outros locais. Assim são as favelas em cima de desfiladeiros, as comunidades ribeirinhas atingidas por despejo de agrotóxicos, as populações quilombolas pressionadas pela pecuária e hidrelétricas e os indígenas impactados pela mineração.
Esse estado de coisas é intrínseco ao mundo desde as grandes navegações e o comércio de pessoas negras escravizadas. Racializar o outro também era tratar como “outro” e “pior” o ambiente e clima em que viviam, ou seja, o ambiente que não era igual ao europeu. A vida na floresta representava o ápice da barbárie e sua transformação em áreas agrícolas e depois em cidades urbanas sempre foi um questionável indicador de desenvolvimento. Essa visão enviesada permanece até hoje e é fortemente marcada por estigmas raciais. Basta ver o nível de tolerância com a presença de mansões em meio a áreas de floresta, premiadas em concursos de arquitetura e expostas em revistas de decoração, em oposição à criminalização de arquiteturas populares em áreas ribeirinhas e de mata.
O racismo ambiental também está intrinsecamente ligado à territorialidade. O estudo da distribuição da população negra e branca na região metropolitana de São Paulo desde o censo de 1980 até o mais recente, em 2022, aponta um forte padrão de segregação racial, com o fortalecimento de uma área cuja concentração de pessoas brancas vem aumentando (MENDONÇA; BRITO, 2025) e tende a uma virtual e política exclusividade (BRITO; MENDONÇA; ROLNIK, 2023). Esse gueto branco é justamente aquela região que recebeu historicamente mais investimentos e por isso está menos exposta a riscos ambientais. Em contrapartida, a população negra ocupa áreas mais vulneráveis a tais riscos.
Esse padrão não é estático e, apesar de sofrer tensões como o aumento da consciência racial, escolaridade e renda da população negra, persiste sendo um dos principais dispositivos para manutenção do racismo e da desigualdade racial. A eficiência da segregação garante a distribuição desigual dos recursos e dos riscos ambientais, compatível com o projeto de nação que caracteriza o Brasil, cuja grande utopia é o genocídio da população negra , pobre e periférica.
Assim, alguns dos bairros mais ricos e brancos da cidade podem estar à beira de um grande rio, como o Pinheiros, na cidade de São Paulo, sem que as pessoas que vivem lá sejam estigmatizadas como degradadoras ou estejam expostas a riscos iminentes. Vale lembrar que, entre 1928 e meados dos anos 1950, o Rio Pinheiros foi retificado e seu curso foi invertido. As terras que surgiram da eliminação das curvas do curso d’água foram urbanizadas e deram origem ou foram incorporadas em bairros como Itaim Bibi, Pinheiros, Jardins e Moema (SEABRA, 1987). Entre janeiro de 2022 e março de 2025, esses foram também os quatro bairros com o valor do metro quadrado mais alto da cidade, segundo o Índice FipeZap de Preços de Imóveis Anunciados.
Essa valorização não é natural. Ela expõe como esses territórios, ou melhor, os proprietários de terras e os imóveis foram beneficiados por investimentos públicos e privados destinados àquela parcela da cidade. Isso afastou para outros locais a insalubridade das margens lamacentas no traçado original do rio. Assim, a falta de sistemas de escoamento hídrico e, consequentemente, os riscos mais elevados são mais comuns em alguns dos dezessete afluentes do Rio Pinheiros, onde há maior concentração de população negra, como no entorno do córrego Pirajussara, na zona sul.
Essa distribuição racialmente orientada dos riscos, malefícios, danos à saúde e prejuízos econômicos é a mesma para toda a cidade e para todo o país. Esses exemplos, que talvez estejam entre os menos contundentes, ainda não dizem nada sobre mudanças climáticas. Tudo isso é sobre nossa relação devastadora com o meio ambiente, a concentração de infraestrutura e o racismo que organiza historicamente nossas cidades.

Mudanças climáticas
Desde 1850, a temperatura global aumentou 1,1 °C, segundo o último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). Com isso, eventos extremos se tornam cada vez mais frequentes e abruptos e pessoas que vivem em territórios que já são vulneráveis a enchentes, secas, deslizamentos, ou pouco preparados para ondas de calor ou frio, devem sofrer ainda mais.
Segundo dados do Atlas Digital de Desastres no Brasil, mantido pelo Departamento de Articulação e Gestão da Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil do Ministério da Integração e Desenvolvimento Regional, entre 1991 e 2024, o país teve 67.230 ocorrências de desastres ambientais, como enxurradas, frios extremos e tornados, 9.644.336 pessoas foram desalojadas ou desabrigadas e 5.142 perderam a vida. Dessas mortes, 22% foram registradas de 2020 para cá.
Não há dados raciais sobre os atingidos, o que consiste em um recorrente mecanismo de invisibilização da questão racial. Mas cartografias produzidas pelo Instituto de Referência Negra Peregum para São Sebastião, no litoral norte de São Paulo, e para a Região Metropolitana de Porto Alegre, que sofreram respectivamente grandes desastres em 2023 e 2024, mostram a correlação entre as áreas mais atingidas e uma forte presença de população negra (MENDONÇA; PINHEIRO; BRITO, 2022).
Com esse aumento de temperatura, novos eventos extremos já são inevitáveis. A intensidade dos desastres, porém, pode ser minimizada caso haja ação de todas as partes envolvidas no problema.
O aquecimento global é provocado pela emissão de gases do efeito estufa. No mundo, o setor de energia é o que mais contribui, especialmente por conta da queima de combustíveis fósseis que corresponderam em 2023 a quase 74% do total das emissões. China, Estados Unidos, Índia, União Europeia, Rússia e Brasil são os seis maiores emissores. No entanto, há diferenças importantes entre as emissões do Brasil e as dos primeiros colocados da lista. Enquanto o Brasil é responsável por 2,5% das emissões globais, os Estados Unidos são por 11% e a China sozinha emite 30%. Outra diferença é que os gases do Brasil são provenientes principalmente da agricultura, o que inclui agropecuária, manejo de esterco, uso de fertilizantes, entre outros. Já as emissões de outros países estão mais associadas à energia e à produção industrial.
A Climate Watch aponta que, em 2010, nossas principais emissões foram por conta do que eles chamam de “mudança no uso da terra e florestas”. Na prática isso significa desmatamento, o que, no Brasil, está associado à agropecuária. Segundo o relatório de 2024 do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG), a categoria “mudança de uso da terra” responde pela maior parte das emissões brutas de gases de efeito estufa do país (46%). Em seguida vêm agropecuária (28%), energia (18%), resíduos (4%) e processos industriais (4%).
Números e pessoas
Esses campeões de emissões expõem como a crise climática é uma emergência dos modelos de desenvolvimento do mundo e impõem que novos rumos sejam tomados.
Mas esses números têm problemas para além dos volumes que representam e o desafio para mitigá-los. Números são uma forma um tanto desumanizada de se lidar com certas questões. Por trás deles existem pessoas que estão expostas a riscos de vida e essa exposição, como dissemos no começo, é racialmente orientada. Os números, no geral, não mostram isso. Assim, as negociações internacionais e as iniciativas nacionais da União, estados e municípios são pouco pautadas pelo impacto direto na vida das pessoas e fortemente atentas à manutenção dos lucros.
Em 2024, por exemplo, o Fundo Clima, principal fonte de financiamento do governo brasileiro para enfrentar as mudanças climáticas, destinou recursos para apenas duas iniciativas de adaptação. São essas iniciativas que promovem os ajustes necessários para enfrentar os efeitos na vida das pessoas. Há uma gama enorme de tarefas de adaptação. Por exemplo: com o aumento das temperaturas é preciso adaptar as redes elétricas para a demanda cada vez maior de sistemas de resfriamento. Sem isso, além do desconforto térmico, pessoas desatendidas em função de sobrecargas no sistema podem sofrer perda da capacidade de geração de renda, insegurança alimentar e risco de vida.
Essas adaptações, no entanto, devem ter como princípio a Justiça Climática, ou seja, priorizar as pessoas mais vulneráveis e expostas a riscos, as quais, no Brasil e em diversos países, são as vítimas do racismo ambiental. Nos documentos oficiais e nas negociações internacionais, o termo até aparece, mas na prática as injustiças sociais que caracterizam o Brasil estão se repetindo, o que faz com que aqueles que menos contribuem para a emissão de gases sejam revitimizados com a intensificação dos eventos extremos.
Por isso, a justiça climática e o enfrentamento ao racismo ambiental devem ser os principais objetivos a serem alcançados nas políticas públicas e nos fóruns internacionais, como as Conferências das Partes da Convenção da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP).
Esse tipo de impacto sobre a vida das pessoas, porém, não é apresentado em números, como ocorre com a redução dos gases, o que facilita a manutenção das injustiças raciais num momento em que o mundo discute sua sobrevivência e renovação das formas de viver. O ímpeto de salvar a humanidade da sua autodestruição pode ser confundido com garantir privilégios e lucratividade para os mesmos de sempre ao aprofundar as desigualdades sociais pré-existentes e fazer emergir outras. É urgente enfrentar o aquecimento global com justiça climática, o que só é possível com o combate ao racismo ambiental.
No próximo período, uma enxurrada de eventos extremos, como o calor excessivo, que atinge diferentes grupos sociais, deve acelerar a tomada de decisões e investimentos, cujo benefício e impactos negativos devem levar em consideração as condições históricas a que populações negras das florestas, campos e cidades são submetidas. Aumentar o diálogo sobre racismo ambiental é fundamental para que o tema tenha apoio social.
Gisele Brito é mestra e doutoranda em Planejamento Urbano e Regional pela FAU-USP. Atualmente coordena a área de Clima e Cidade do Instituto de Referência Negra Peregum e representa a Coalizão Negra por Direitos no Comitê Gestor do Fundo Clima (2023-2025 e 2025-2027)



