Yamila Goldfarb*
Nas últimas semanas a questão das queimadas voltou a ganhar espaço nas notícias e no ar de inúmeras cidades brasileiras. Mais de 15% da área do Pantanal já queimou neste ano. A Amazônia, em meio ao segundo ano consecutivo de seca, enfrenta um aumento dos focos em relação a 2023, apesar da queda do desmatamento. São Paulo bateu o recorde de focos de calor medidos pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) em quase 30 anos. É a maior quantidade de focos de incêndio de toda a série histórica do país.
É evidente que este período de estiagem histórico que vivemos, diretamente relacionado às mudanças climáticas, explica a velocidade e a dimensão do espalhamento dos focos. Mas, não nos enganemos! O que explica o fogo não é unicamente a emergência climática.
A presença do fogo como instrumento de manejo da agricultura em alguns biomas, em particular no cerrado, já é conhecida há tempos. Também a própria ocorrência de fogo como processo natural, a partir de descargas elétricas (raios) nos períodos de maior estiagem. No entanto, não é desse tipo de queimada que se tratam os números. Do que se trata então? Por que a maior parte dos focos de incêndio é comprovadamente criminosa? Quem ganha com isso?
As respostas a essas perguntas podem parecer óbvias, mas é preciso aprofundar a análise, inclusive para poder combater esse crime que não apenas destroi nossos biomas, mas expulsa populações de seus territórios, afeta a saúde da população brasileira e faz do Brasil um dos campeões em emissões de gases do efeito estufa.
Atribuir as queimadas a causas naturais ou ao manejo tradicional do roçado é, no mínimo, ignorância. O fogo sempre foi manejado com sabedoria por povos indígenas e comunidades tradicionais há séculos. Esse uso tradicional é realizado de forma cuidadosa, em pequenas porções de terra e na estação adequada, como parte do manejo de longo prazo da paisagem agroflorestal. Acusações em torno desse uso não são somente infundadas e levianas, como também servem de cortina de fumaça para desviar a atenção a respeito da origem da maior parte dos incêndios florestais. (Aguiar e Torres, 2021)
Inicialmente, é preciso entender que o fogo possui diferentes usos criminosos por parte do agronegócio. Ele é usado para consolidar a grilagem; para abrir áreas ao cultivo de pastagens ou monoculturas como a soja; e como arma contra povos e comunidades tradicionais ou agricultores familiares[1].
Grilando com fogo
A grilagem de terras, isto é, o roubo de terras públicas, se dá, geralmente, em duas etapas: a apropriação da terra “no chão” (a invasão e o controle ilegais de terras públicas) e a atribuição de aparência de legalidade “no papel” (a parte burocrática). Como bem explicam Aguiar e Torres (2021), a derrubada da floresta ou vegetação nativa na terra apropriada é tida, em primeiro lugar, como o principal instrumento de consolidação da invasão e, em segundo, como um facilitador para o posterior processo de “esquentar” a terra nos cartórios, uma vez que o próprio crime ambiental é também passível de ser usado como prova de ocupação da terra.
Assim, quanto maior a perspectiva de facilidade do processo de grilagem, maior a possibilidade de o grileiro investir muitos recursos na primeira fase, desmatando vastas áreas e, eventualmente, expropriar ocupantes anteriores. A máxima “Dono é quem desmata” vaticinada por um grileiro no Oeste do Pará anuncia a crua realidade de que quem desmata, sempre, é, de fato, reconhecido como dono na lógica regional e, muitas vezes, acaba consolidando a fraude com o recebimento do título fundiário da terra saqueada (Aguiar e Torres, 2021. S/N)
Nos ajuda a entender o fato de que usar o fogo é mais barato do que desmatar. Basta comprar gasolina e espalhar. Isso explica por que há mais queimadas, mesmo com a queda do desmatamento (Girardi, 2024). Se o fogo sempre foi usado por grileiros para terminar o desmatamento após a retirada das madeiras de lei e da derrubada da floresta que resta com tratores e correntões, o que tem ocorrido mais recentemente é o “encurtamento” desse processo. Bota-se fogo logo após a retirada das madeiras de lei.
A grilagem da terra possui algumas estratégias jurídicas. O grileiro pode falsificar o título ou a extensão dessa “propriedade” alterando dados na sua cadeia dominial (no histórico de posse, doações, compras e vendas da área em questão) ou pode usar outros tipos de documentos que comprovem a suposta posse.
De forma grosseira, é comum que mesmo documentos que não valem como comprovação de propriedade (como certidão ou título de posse ou mesmo certidão de abertura de processo demandando alienação da área) sejam utilizados como título original para registro da venda do imóvel. Há, além disso, algumas inovações recentes. Dentre estas, destaca-se o uso do Cadastro Ambiental Rural (CAR), instrumento de gestão ambiental previsto no Novo Código Florestal (2012), como se fosse comprovação de posse, apesar de isso estar expressamente vedado na lei. (Aguiar e Torres, 2021. S/N)
O CAR funciona da seguinte forma: O suposto dono, para obter esse cadastro ambiental – obrigatório a todas as propriedades rurais para fins de regularização ambiental do imóvel – deve declarar uma série de informações como extensão e localização da Reserva Legal obrigatória. Porém, em razão de seu caráter auto declaratório e da quase inexistente fiscalização para validação das declarações por parte do Estado, esse cadastro tem sido sistematicamente falsificado. Isso o tornou um facilitador da grilagem, a chamada “grilagem verde”, uma vez que, mesmo ilegal, o CAR é utilizado como o comprovante da posse.
Essa grilagem de terra geralmente se dá em terras públicas ainda não destinadas ou em áreas de uso comum de comunidades e povos tradicionais que as mantém preservadas há gerações. O grileiro declara essas áreas preservadas como sendo sua Reserva Legal, já que o Código Florestal permitiu que áreas não contíguas às propriedades fossem cadastradas como tal, e desmatam outras áreas griladas há mais tempo, muitas vezes utilizando-se do fogo.
Legislando para grilar
Ou seja, o fogo é utilizado para consolidar a grilagem, tanto no sentido de encobrir a invasão de terras públicas e o crime ambiental (desmatamento ilegal) quanto para finalizar o processo do desmatamento, dando aparência imediata de terra em uso agrícola. E esse suposto uso é usado justamente como comprovação de posse da área. Sim, isso mesmo. Existe uma série de políticas públicas que vão aceitar como prova de posse, o desmatamento de imensas áreas. O Programa Terra Legal, criado pela Lei 11.952/2009 e alterado pela Lei 13.465/2017, por exemplo, aceita como prova para datação de ocupação o registro de desmatamento em imagem de satélites.
No Oeste do Pará, a situação chega ao esdrúxulo do sujeito desmatar ilegalmente e ligar para o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) com o intuito de posteriormente utilizar o próprio auto de infração [multa] emitido pelo órgão público como comprovação de posse produtiva. (Aguiar e Torres, 2021. S/N)
Temos, portanto, diversas políticas que na prática anistiam a grilagem. Desde a aprovação da Lei 13.465/17 (MP 759/16), também apelidada de “Lei da Grilagem”, – que autoriza uma massiva transferência da propriedade pública e devoluta federal para grandes proprietários de terra – diversas alterações legislativas foram sendo aprovadas no sentido de renovar os prazos de anistia e aumentar as áreas anistiáveis. Isto é: a cada vez, maiores extensões de terras poderiam ser desmatadas e apropriadas ilegalmente. Isso tudo significou ”uma verdadeira ofensiva voltada para a apropriação privada de terras e da natureza e para a garantia de segurança jurídica aos proprietários de terras, produtores rurais e investidores.” (Bonfim e Packer 2021)
Expandindo fronteiras com o fogo
O fogo serve ainda como forma de o grileiro preparar a área para servir como pastagem ou, em algumas regiões, como campo de monocultivos, em especial de soja. Há também o conhecido exemplo da cana de açúcar.
Na região denominada de MATOPIBA, o Cerrado tem sido devastado para dar lugar a campos de soja nos chapadões que cobrem o Oeste da Bahia, Sul do Piauí e do Maranhão, na divisa com o Nordeste do Tocantins: mais de 60% da ampliação da área de soja na região, entre 2000 e 2014, se deu por meio do desmatamento de vegetação nativa para a abertura de novas áreas (Aguiar e Torres, 2021). A expansão da fronteira agrícola com monoculturas se dá, portanto, pela apropriação privada de extensas áreas antes de uso comum ou públicas. Não raramente essa apropriação se dá de forma ilícita.
Ao contrário, é raro encontrar títulos de propriedade de imóveis rurais de grandes dimensões no MATOPIBA (principal fronteira atual do Cerrado) ou na Amazônia Legal (que abarca também áreas de Cerrado e Pantanal) que tenham cadeia sucessória válida demonstrando o momento do destacamento do patrimônio público e sua transferência legal para o patrimônio privado, o que significa que, na maioria dos casos, esses imóveis passaram em algum momento por procedimentos de grilagem para dar aparência de legalidade aos registros de propriedade. (Aguiar e Torres)
O desmatamento, além de ser usado para a grilagem em si, acaba valorizando o preço das terras. No Oeste do Pará, em 2017, uma porção de terra desmatada podia chegar a ter um preço até 20 vezes maior do que uma área equivalente coberta de floresta. Mesmo em momentos de baixa nos preços das commodities, o preço das terras na fronteira agrícola continua subindo. (Boechat e outros, 2019)
Fogo e violência
Outro uso do fogo pelo agro é como arma contra povos indígenas e comunidades quilombolas, tradicionais e de base camponesa. Isso passou a ser tão frequente, que o Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno da Comissão Pastoral da Terra (CEDOC/CPT), passou a contabilizar os incêndios como mais uma tipologia de violência no seu levantamento anual de conflitos no campo. Muitas vezes a invasão de territórios tradicionais se inicia, justamente, por meio de incêndios nas áreas de uso comum das comunidades, mas é usado também contra as áreas de moradia e quintais produtivos. Comum é também o incêndio das casas de rezas de aldeias indígenas. Houve diversos casos recentemente no Mato Grosso do Sul, estado palco de conflitos entre indígenas e agronegócio, como na aldeia Porto Lindo, em Japorã, em junho deste ano. Somente em 2021, sete casas de reza de Guaranis Kaiowá foram incendiadas no Estado. Em fevereiro deste ano, mais uma casa de reza foi queimada na aldeia Kunumi Verá em Caarapó.
O fogo ateado por jagunços mandados queima casas, casas de reza, roçados e pertences de modo a instalar o medo e, assim, expulsar, conter ou silenciar os povos do campo (Serafim, 2021). O fogo destroi a fonte de vida dessas populações, seus territórios e locais de importância espiritual inestimáveis.
Concluindo
O que temos então é que, tanto os incêndios florestais como a queima de casas, roças e espaços comunitários constituem armas na disputa pelo controle territorial na esteira da expansão do agronegócio. Trata-se de modalidades distintas, mas que possuem o mesmo fim. “Um destroi as condições de existência do modo de vida das comunidades, o outro as ataca diretamente e impõe o medo” (Serafim, 2021, s/n).
O uso criminoso do fogo pela cadeia do agronegócio é mais um elemento que deixa clara a relação intrínseca entre a questão ambiental e a questão agrária no Brasil. Para cessar essa destruição, é preciso tirar a possibilidade de que a terra pública e as terras de uso comum sejam apropriadas de forma privada. Por isso, a reforma agrária e a destinação de terras públicas (como territórios tradicionais, como terras indígenas e Unidades de Conservação, conforme consta na constituição) são fundamentais por mais essa razão: convertem a terra em porção não passível de ser grilada. Se não de forma absoluta, ao menos ajuda nesse processo. Também urge cessar com o apoio incondicional a esse modelo agroexportador de commodities que não alimenta a população brasileira e é altamente subsidiado pelo Estado. Questionar com profundidade esse modelo é essencial. Esse seria um bom modo de parar de colocar lenha na fogueira.
Referências
Boechat, Cassio; Pitta, Fabio Teixeira; Toledo, Carlos de Almeida. Pioneiros” do MATOPIBA: a corrida por terras e a corrida por teses sobre a fronteira agrícola. Revista NERA. v. 22, n. 47, pp. 87-122. Dossiê 2019.
Diana Aguiar e Mauricio Torres A boiada está passando: desmatar para grilar. Plataforma Agro é Fogo. Disponível em https://agroefogo.org.br/dossie/a-boiada-esta-passando-desmatar-para-grilar/
Girardi, Giovana. “Desmatamento é caro, fogo é mais barato”, explica presidente do Ibama, sobre queimadas. Agência A Pública. Agosto, 2024. Disponível em https://apublica.org/2024/08/desmatamento-e-caro-fogo-e-mais-barato-explica-presidente-do-ibama-sobre-queimadas/
Gustavo Serafim . Armas na disputa por controle territorial: os usos capitalistas do fogo contra os povos do campo. Plataforma Agro é Fogo. Disponível em https://agroefogo.org.br/dossie/armas-na-disputa-por-controle-territorial-os-usos-capitalistas-do-fogo-contra-os-povos-do-campo/
[1] A Plataforma Agro é Fogo faz um importante trabalho de análise e denúncia acerca do uso do fogo na cadeia do agronegócio-grilagem. Grande parte das informações e análises foram retiradas dessa plataforma.
*Yamila Goldfarb é integrante da Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA).
Edição: Katarine Flor
Foto: José Cruz | EBC