“O programa [Minha Casa, Minha Vida] não só não resolveu o problema de moradia no país, como também reforçou uma lógica segregadora. Vale saber que o programa não foi lançado para resolver a questão da moradia, mas para resolver o problema das construtoras – que estavam engasgadas com sua situação econômica devido à crise internacional que estava ameaçando colocá-las em bancarrota. Os dados dizem que em 2008, um ano antes de seu lançamento, o déficit habitacional no Brasil era de 5,3 milhões famílias. Em 2012, esses dados, pelos estudos que são os mais recentes disponíveis, os da Fundação João Pinheiro, esse déficit é de 5,8 milhões de famílias. A construção de 3 milhões de casas fez o déficit aumentar. Isso porque as nossas cidades são verdadeiras máquinas de produzir sem-tetos. E produzem sem-tetos com mais rapidez do que o Minha Casa, Minha Vida é capaz de construir moradias”, disse Guilherme Boulos durante o evento Resistência Urbana e Memória na Construção de Cidades Democráticas e Populares, promovido no Cais José Estelita, área de valor histórico cobiçada pelos que lucram com a especulação imobiliária na capital pernambucana Recife.
O debate feito na rua, espaço defendido por Boulos como o principal para se fazer política, foi promovido pela FASE, pelo Centro Popular de Direitos Humanos – CPDH, pela Rede Coque Vive, pelo Movimento#OcupeEstelita e pelo grupo Direitos Urbanos no último dia 21 de junho.
“As construtoras são especialistas em traduzir dinheiro em poder. Pela lógica que conhecemos, o financiamento de campanhas [eleitorais] é um belo exemplo de controle das instâncias políticas e de decisão. A história também demonstra que, na lógica da especulação imobiliária, a proximidade de comunidades pobres desvaloriza empreendimentos. [Nessa lógica], a pobreza deve ser removida”, completou o filósofo. Ele ressaltou ainda que essa expulsão se dá de diversas formas: desde despejos individuais por meio do aumento do aluguel, “que é invisível pois não há trator demolindo nada”, passando pelos despejos propriamente ditos, “com polícia e remoção forçada de pessoas”, até outras “formas mais heterodoxas e perversas”, citando incêndios criminosos em favelas.
Que desenvolvimento é esse?
Evanildo Barbosa, diretor da FASE , esteve presente na aula pública. Sobre o tema, lembra que “o capital tem nas cidades a oportunidade do crescimento exponencial”. Para exemplificar, destaca a realização dos megaeventos esportivos associados aos investimentos públicos via Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e do próprio Minha Casa, Minha Vida, citado por Boulos. “São e estão nas cidades as novas fronteiras e as novas oportunidades a esse crescimento. Lógico que não se encerra aí. Mas, quando o capital se integra às dinâmicas urbanas garante sua reprodução e são os grandes projetos de urbanização, megaeventos, grandes estruturas físicas e grandes projetos culturais e de entretenimento os grandes vetores dessas dinâmicas”, destaca.
Evanildo ressalta também que o atual modelo de desenvolvimento determina como se dá a ocupação dos espaços urbanos. “Essa é uma verdade terrível para quem já estava à margem do direito à posse e da realização da função social do solo urbano”, diz. “O modelo de desenvolvimento está determinando uma natureza privatista da vida nas cidades”, completa. É nesse contexto que se dá a “destituição paulatina das bases do direito à cidade” para a grande maioria da população, em especial de jovens negros, mulheres e moradores de áreas empobrecidas. Diante dessa realidade, Evanildo lembra da necessidade de aliar o debate e as práticas em defesa do direito à cidade a valores e reivindicações em prol da justiça ambiental. “Vejamos o caso do acesso á água: além de se encontrar limitado para a grande maioria das pessoas que reside nas grandes metrópoles, está a revelar o tamanho da insustentabilidade no modo como se dá a ocupação do solo urbano e, como isso, está afetando os “recursos naturais” ainda existentes”, exemplificou.
No dia seguinte ao da aula pública, houve a realização de uma oficina sobre Cartografia Social Urbana que reuniu cerca de 50 integrantes de redes, coletivos, articulações, fóruns, organizações, sindicatos, grupos de pesquisas e movimentos sociais que atuam na região metropolitana do Recife.Tanto a aula pública com Boulos como a oficina dão continuidade a uma mobilização iniciada em 2013. Na agenda de articulações está a construção de um mapeamento dos conflitos urbanos em curso para fortalecer a luta pelo direito à cidade no estado. Um desses conflitos, inclusive, está em um filme realizado por jovens da favela do Coque durante o Projeto Narramundo. A produção, lançada durante as atividades, retrata a história de moradores que foram desapropriados para obra de expansão do Terminal Integrado Joana Bezerra, obra ligada à Copa do Mundo de 2014.
Um novo vetor para a esquerda?
Durante sua passagem por Recife, Boulos concedeu uma entrevista ao site Marco Zero sobre questões que traz em seu mais recente livro ‘De que lado você está? Reflexões sobre a conjuntura política e urbana no Brasil’. Ele explicou o que chama de ‘política de consenso’ e como ela tem um rebatimento considerável sobre as cidades e a qualidade de vida da classe trabalhadora nas regiões metropolitanas do país. Boa parte dessa proposta política de esquerda que o filósofo defende é uma reação ao legado dos governos petistas, que segundo Boulos desmobilizou politicamente a sociedade brasileira.
Na entrevista, Boulos diz que é preciso fazer o “enfrentamento dessa política de retirada de direitos, de austeridade fiscal, de ajuste fiscal, que lamentavelmente vem sendo seguida pelo governo Dilma e também pelos governos estaduais e prefeituras”. E, ao mesmo tempo, afirma que é preciso “ter a percepção clara de que o enfrentamento a esse ajuste fiscal, a essa política do governo, que tomou a opção de fazer os mais pobres pagarem pela crise, não pode ser feito sem um enfrentamento concomitante aos setores mais conservadores no país”. Acesse a entrevista completa aqui.
* Retirado do site da FASE, com informações do CPDH e do site Marco Zero.