Existe um famoso ditado popular brasileiro que afirma: “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. O dito é uma expressão do legado colonial no Brasil de exercício nu da hierarquia, que se transmuta em coronelismo e segue presente até hoje nas relações cotidianas entre sujeitos, inclusive aqueles que ocupam altos cargos públicos. Lido ao avesso, questiona-se: se quem tem o poder de mando, tem também a preocupação de não ser obedecido, será que vale a pena mandar?
Os governos Lula 1 e 2 foram marcados pela equidistância com a caserna. Poucas mudanças foram sequer propostas. Pelo contrário, foram batidos recordes de investimentos em equipamentos, valorização da carreira e manutenção da autonomia dos fardados nas áreas que eles, historicamente, consideram sua reserva de domínio. Em troca, militares se mantiveram bastante discretos na política geral, e imperava dentro da esquerda a impressão de que tudo corria bem dentro dos quartéis. Os maiores desgastes com esse segmento da população ocorreram durante o governo FHC, que fez mudanças nas regras de aposentadoria, e pelo governo Dilma, que criou a Comissão da Verdade e extinguiu o Gabinete de Segurança Institucional. O governo Lula 3 tenta, desde o início, voltar ao capítulo 1 e 2. Palavras como pacificação, ou relações melindrosas, predominaram. Mas o governo não é mais o mesmo, os militares não são mais os mesmos, e as conjunturas doméstica e internacional, tampouco.
Depois da ampla adesão de oficiais das Forças Armadas ao governo Bolsonaro, antagonismos entre militares e a amplíssima coalizão democrática que assumiu o governo eram previsíveis. A transição ocorreu sob críticas abertas ou veladas da caserna; sem nenhuma participação social, mesmo que essa fosse uma promessa do governo; com a escolha de um Ministro da Defesa que agradasse às Forças, e que chegou a inclusive referendar a “família militar” acampada na porta dos quartéis; com um Gabinete de Segurança Institucional que trocou o ministro, mas manteve a equipe do General Heleno; com a manutenção por Lula da autonomia e tutela militares sobre amplas esferas da política; e com a inclusão dos fardados na agenda da reindustrialização e de proteção ao meio ambiente. Enfim, se uma palavra não pode ser usada para caracterizar o governo Lula 3, é “revanchismo”.
O 8 de janeiro de 2023 sepultou as dúvidas quanto à participação de generais e coronéis na intentona bolsonarista. Embora não tenhamos visto uma unidade militar completa se sublevando, ficou evidente a contaminação pela extrema direita das forças especiais do Exército brasileiro, conhecidas como “kids pretos”. As revelações da Polícia Federal no final de 2024, pioraram o quadro, revelando que o planejamento das ações incluía o assassinato de autoridades da República, como o próprio Lula, seu vice presidente e o ministro Alexandre de Moraes.
O governo acertou na pronta resposta ao dia 8: não decretou uma operação de Garantia da Lei e da Ordem, mas uma intervenção federal no Distrito Federal; escolheu um civil para a coordenação; demitiu o comandante do Exército, general Arruda, e alguns militares de escalões inferiores; não interferiu na agenda do judiciário de responsabilização dos acusados pelos delitos antidemocráticos; e liderou uma reação institucional dos três poderes da República, ainda que sem participação popular. Além disso, a segurança presidencial passou a ser realizada pela Polícia Federal (PF); a Agência de Inteligência Brasileira (Abin) deixou o GSI para ser vinculada à Casa Civil; e alguns decretos relevantes sobre a política armamentista foram revogados. Equivocou-se ao não aproveitar mais a CPMI dos atos antiemocráticos para enfrentar os militares militantes, guiando-se sempre pela estratégia da conciliação; e por represar as políticas de memória, verdade e justiça, sequer rememorando o aniversário de 60 anos do golpe de 1964.
Dentro dos quartéis, evidenciou-se uma divisão. De um lado, generais liderados por Braga Netto e Augusto Heleno, com o reforço de coronéis da ativa, buscavam adesão do Alto Comando do Exército para impedir a posse do governo eleito. De outro, generais da cúpula do Exército que percebiam a ausência de condições mínimas para um golpe de Estado de sucesso, como apoio dos EUA, unidade da burguesia brasileira, e ativismo da imprensa. Diante do risco grande de fracasso político e do alto custo para a instituição, se limitavam a manter os acampamentos para aumentar seu poder de barganha com o novo governo.
Em paralelo, o Exército tem atuado fortemente para melhorar a sua imagem, abalada por sua adesão ao governo Bolsonaro e participação de oficiais no 8J. As críticas chegam à direita e à esquerda, por serem golpistas demais, e golpistas de menos. Para tanto, tem investido na visibilidade das “ações subsidiárias” – atuação estratégica em políticas públicas que produzem imagem positiva e que alimentam a consigna “mão amiga”, e mantido suas atribuições na segurança pública, alimentando sua imagem de “braço forte”.
O governo Lula 3 é marcado por afagos na área militar. Busca-se o militar “apolítico” e “cumpridor das suas missões constitucionais”, e o personagem eleito foi o general Tomás Paiva, atual comandante do Exército. O perfil público dos comandantes, sem dúvida, é mais discreto do que o período anterior. Entretanto, o governo não exerceu o mando, e, portanto, não testou a obediência. Na maior parte do tempo, optou pelo apaziguamento, preservou espaços de poder para os militares dentro do Estado, e manteve um Ministério da Defesa esvaziado politicamente, muito similar ao do governo Bolsonaro, e cuja principal preocupação parece ser esconder do Tribunal de Contas da União as tramóias grandes e pequenas dos últimos anos. Ao não atuar duramente também dentro da caserna após o 8 de janeiro, o governo perdeu uma oportunidade histórica para a melhoria da correlação de forças necessária à construção de reformas na política de defesa e na relação com os fardados.
Chegamos a meados do governo com as relações um pouco mais tensas. Ao incluir os militares nos cortes orçamentários previstos, o governo testou a reação militar que veio à navio, com uma insubordinação explícita da cúpula da Marinha. Embora a superfície do mar possa parecer tranquila, o recente episódio relembra que as correntes nas profundezas seguem fortes, e em sentidos antagônicos aos da esquerda.
O governo segue deixando apenas para o STF a missão de responsabilizar os militares golpistas. Nesse sentido, sem dúvidas, a prisão por obstruir investigações do general Braga Netto, vice presidente na chapa de Bolsonaro, é histórica para o país. As delações premiadas do tenente-coronel Mauro Cid parecem ter sido centrais para as ações do judiciário. Mas uma subordinação dissimulada dos militares ao poder político eleito não é suficiente para a democracia brasileira, e o cenário se tornou pior com a eleição de Trump nos EUA.
O Executivo e o Legislativo praticamente não caminharam com as pautas que lhes competiam, como a imposição de uma quarentena para os militares que quiserem seguir carreira política, e a democratização da discussão dos documentos de defesa nacionais e do próprio Ministério. Não mandou, quem poderia… Não obedeceram, porque não foi preciso.
Por isso, ainda que as condenações jurídicas avancem, as condenações políticas não ocorreram, e a anistia para os golpistas, fardados ou não, segue na pauta. Mesmo com Bolsonaro enfraquecido, a extrema direita segue articulada, bem formada, mobilizada, financiada e ARMADA. Não cabe aqui elencar a miríade de medidas possíveis caso o governo opte por deixar a estratégia da conciliação. Ressalta-se, ao final, a pré-condição para todas elas: mobilização popular e educação política, inclusive, sobre a política de defesa e as forças armadas.
* Ana Penido possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais (2011), mestrado em Estudos Estratégicos da Defesa e da Segurança pela Universidade Federal Fluminense (2015) e doutorado em Relações Internacionais pelo Programa San Tiago Dantas (Unesp/Unicamp/PUC-SP), através da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2019). É pesquisadora do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social e do Grupo de Estudos em Defesa e Segurança Internacional (Gedes – Unicamp) nas áreas de defesa, forças armadas, profissionalização e educação dos militares. É coautora de Ninguém regula a América (Editora Expressão Popular, 2021).
Foto: Lula com comandantes militares no Desfile do Dia da Independência – Ricardo Stuckert/Fotos Públicas.