Mesmo com uma agenda cheia, Guilherme Boulos encontrou um tempo para conversar com o diário alemão neues deutschland sobre seu programa, o avanço da direita e a segurança falida no Brasil
Por Niklas Franzen, neues deutschland
É uma manhã abafada no campus da Universidade Federal da Bahia (Ufba) em Salvador, onde ocorre a maioria dos eventos do Fórum Social Mundial. Um pouco acima do campus está a tenda do Frente Povo Sem Medo. Voluntários arrumam cadeiras, testam os microfones, penduram bandeiras no palco. Em breve vai começar um evento com Guilherme Boulos, candidato à Presidência da República pelo Partido do Socialismo e Liberdade (PSOL) desde o dia 3 de março.
É o dia depois do brutal assassinato da vereadora carioca Marielle Franco. Muitos trazem uma expressão de choque no rosto, assim como Guilherme Boulos. Todavia ele tira selfies, sorri para as câmeras, cumprimenta pessoas.
Por que um militante de um movimento por moradia e uma líder indígena lançaram uma candidatura à Presidência?
O Brasil está numa crise política profunda, uma crise de desesperança, uma crise econômica em que as pessoas não estão vendo saída e perspectiva de futuro para suas vidas e as vidas dos seus filhos. É preciso levar a nossa indignação para dentro da política. Quando uma série de movimentos sociais se articularam, primeiro na plataforma Vamos e, depois, numa articulação junto ao PSOL, para pensar um projeto, pretende levar para a política aquilo que nós temos feito nas ruas, aquilo que nós temos debatido nas praças. É um projeto de mudanças profundas, de enfrentamento da desigualdade brasileira, uma compreensão de que esse sistema político faliu, que a lógica do balcão de negócios precisa ser enfrentada. É um projeto que não tem medo de colocar o dedo na ferida.
Mas, com sua candidatura, a intenção seria apenas influir no debate político ou governar, de fato?
Nós queremos governar o Brasil, não queremos ser apenas testemunhas da luta política brasileira. Queremos disputar um projeto de país. Minha campanha junto com a Sônia Guajajara, o PSOL e a aliança com movimentos sociais, é pra valer.
Em uma palestra no Fórum Social Mundial você falou de uma “nova esquerda”. O que faria diferente da velha esquerda?
Acho que não existe nova e velha esquerda. O que houve foram experiências de governos com seus avanços e seus limites. Ao mesmo tempo que reconhecemos os avanços, nós não vamos deixar de falar sobre os limites. Esses limites passam por não ter enfrentado o 1%, os bancos, o rentismo. O Brasil permanece sendo um dos países com maior desigualdade social no mundo. Um relatório da Oxfam publicado em setembro de 2017 mostrou que seis pessoas possuem mais patrimônio do que 100 milhões de pessoas no Brasil. Temos uma estrutura do Estado profundamente concentradora. O sistema tributário brasileiro é muito regressivo. Pobre paga proporcionalmente mais imposto do que rico. Mais de 50% da arrecadação sobre consumo, 20% sobre renda.
Não há imposto sobre tributação nem sobre distribuição de lucros e dividendos. Não há impostos sobre grandes fortunas. A taxação de herança tem uma alíquota ridícula. Nós precisamos reverter esse caráter do Estado brasileiro que é um Robin Hood ao contrário. Isso não foi feito. Nós precisamos enfrentar um sistema política falido, um modelo de governabilidade que está baseado num composição com setores mais atrasados da política, que veem a política como forma de ganhar dinheiro. Não dá mais pra compor com essa turma, não tem mais espaço para isso. Então, seriam enfrentamentos como a democratização do sistema político, colocando o povo no centro das decisões com plebiscitos, referendos, uma democratização dos meios de comunicação no Brasil, reforma tributária, reforma urbana, reforma agrária. Enfim, enfrentar privilégios – isso não foi feito.
No passado a entrada de militantes de movimentos sociais na política institucional foi criticada por setores da esquerda não institucional. Você, como militante sem-teto, não vê nenhum problema em aderir à disputa institucional partidária?
Não vejo problema algum. Acho legítimo, principalmente diante do tamanho da crise brasileira, que a luta da resistência social não fique limitada apenas às suas pautas corporativas. Não dá mais. Eu milito há mais de 15 anos no MTST e a situação no Brasil se agravou até um ponto que o movimento dos sem-teto não pode se dar ao luxo de ficar falando só de moradia, só de casa. A pessoas estão perdendo direitos históricos. Não podemos ver uma quadrilha tomando conta do país, promovendo retrocessos, atacando brutalmente a vida das minorias, e ficar calados. Vamos continuar fazendo luta social, não vamos tirar um pé da mobilização. O nosso lastro é a mobilização social. Até porque não se governa o Brasil com uma perspectiva de transformação se não tiver mobilização da sociedade. Não basta ganhar eleições, é importante ao mesmo tempo travar disputa política. Disputar um projeto de país é essencial.
Colegas do PSOL temem uma influência grande do PT e do Lula na sua candidatura.
O PT não está mais no governo do Brasil. Mais do que isso, o governo do PT sofreu um golpe. Lula hoje está sofrendo uma perseguição judicial, uma farsa judicial, que pode leva-lo à prisão sem ter prova alguma. Foi um processo conduzido politicamente, o Judiciário se comportando como partido político para retirá-lo do processo eleitoral. É uma coisa ter diferenças com Lula – nós temos. Já tivemos oportunidade de colocar isso publicamente e, para ele, em particular. Essas diferenças são evidentes. Outra coisa é ser conivente com injustiça, isso nós não vamos ser.
Um atentado à democracia
Lula foi condenado sem provas, e seu julgamento em segunda instância foi acelerado só para inviabilizar sua candidatura
Por Guilherme Boulos e Manuela D’Ávila
Os tempos em que vivemos representam o maior ataque à democracia desde o fim da ditadura militar. O golpe parlamentar que colocou Temer no poder, a execução de Marielle Franco e Anderson Gomes e a ofensiva contra Lula, do atentado a sua caravana à absurda e ilegal decisão de prendê-lo, exigem unidade da esquerda pela defesa da democracia e contra a escalada de violência fascista no país.
Como pré-candidatos à Presidência, temos clareza de que diferenças programáticas para as eleições não impedem nossa unidade como reação ao momento sombrio atual.
A face mais visível da luta democrática no país é a defesa irrestrita da liberdade do ex-presidente e, para além disso, do seu direito de ser candidato nas eleições presidenciais deste ano. Lula é a maior liderança social do Brasil. Tirá-lo do jogo político é um visível casuísmo eleitoral. Essa luta não é apenas daqueles que concordam com as posições de Lula e do PT.
O alcance da ofensiva é muito mais amplo. Enganam-se aqueles que pensam que eles sejam os únicos alvos dessa prisão. Isso faz parte de um ataque contra o campo progressista e os direitos sociais. Não começou com Lula e não terminará com ele.
A decisão apequenada do Supremo de legitimar até aqui uma medida inconstitucional, como é a prisão em segunda instância antes do trânsito em julgado, ameaça a presunção de inocência e o direito à ampla defesa de todo cidadão. Sem falar em mais uma ilegalidade do juiz Sergio Moro ao expedir um mandado de prisão antes de se esgotarem todos os recursos.
Lula não está acima da lei. Nem ele, nem nenhum de nós. Nem mesmo os juízes que o condenaram e os ministros que negaram o fiel cumprimento da Carta. Mas ele tampouco está abaixo da lei. Foi condenado sem provas; seu julgamento em segunda instância foi acelerado só para inviabilizar sua candidatura, buscando resolver as eleições no tapetão do Judiciário.
A chicana procedimental da ministra Cármen Lúcia negou-lhe o justo direito de recorrer em liberdade. A prisão tenta calar sua voz, enfraquecer as esquerdas e perpetuar o golpe de 2016.
É um escárnio ter um mandado de prisão contra Lula sem que haja nenhuma prova que o comprometa, ao mesmo tempo em que Temer foi flagrado em gravações nada republicanas no porão do Palácio e seu assessor direto foi filmado correndo com malas de dinheiro nas calçadas de São Paulo.
Ou ainda Aécio Neves, que teve seu pedido escandaloso de dinheiro a Joesley Batista ouvido por todos os brasileiros, chegando a insinuar a morte de um possível delator de seus crimes. Temer segue no Planalto e Aécio, no Senado. De um lado, provas sem punição; do outro, punição sem provas.
Defendemos que casos de corrupção devem ser investigados e punidos, mas é preciso tomar cuidado com o discurso que se vale do pretenso combate para destruir adversários políticos. Quando juízes se portam como chefes de partido, não se pode falar em justiça.
Se queremos combater a corrupção, temos que levantar a bandeira de uma profunda reforma política, afastando o poder público da influência do poder econômico e aproximando o povo das decisões.
Do contrário, trata-se tão somente de alimentar o sentimento de desesperança nas saídas políticas de uma maneira perigosa, abrindo assim as portas para soluções de cunho fascista sem nenhum compromisso com a democracia e as liberdades constitucionais.
É urgente a construção de uma unidade democrática contra a prisão arbitrária de Lula, a escalada da intolerância política e a garantia de eleições livres. Nessa mesa devem ter assento aqueles que, ante a barbárie, põem-se ao lado da democracia.
A defesa da liberdade de Lula é um divisor de águas nessa batalha. Não deixaremos as ruas e a luta. Para além das eleições, é o futuro do Brasil que está em jogo. Enfrentaremos as injustiças, de toga ou de farda. Lula livre!
As pesquisas apontam que a intenção de voto para Jair Bolsonaro tem crescido, inclusive entre jovens da periferia. Como vocês pretendem lidar com esse cenário?
Primeiro preciso dizer: nós não vemos Bolsonaro como concorrente, mas como bandido, como criminoso. Ele comete crimes reiteradamente, crimes de ódio, de racismo, de homofobia, de machismo, de incitação à violência. Disse que se ganhasse e o crime organizado não saísse da Rocinha, a maior favela do Brasil, ele iria metralhar toda a comunidade. Ele faz incitação à tortura dentro do Congresso Nacional, homenageando os mais abjetos torturadores da ditadura militar brasileira, até quem torturou inclusive a ex-presidenta Dilma Rousseff. Bolsonaro é um criminoso, deveria estar preso e não ser candidato à Presidência da República.
Ele tem vendido uma ideia de que é novidade, de ser contra essa política que está aí. Há trinta anos, ele é parlamentar, a maior parte da sua carreira fez parte de um dos partidos mais corruptos do Brasil com a figura emblemática do Paulo Maluf, que é um símbolo da corrupção. Nós temos que desmontar a farsa. Ele está vendendo uma peixe podre. As pessoas estão tão desiludidas, tão desesperançosas que isso de algum modo acaba resultando em um eco para esse discurso do Bolsonaro, que ele vai resolver tudo com a mão firme, na força. Nós temos que resgatar a esperança na política. A partir do momento que apresentamos um projeto que aponte uma perspectiva de futuro para as pessoas, que não seja esse rame-rame da politicagem da política tradicional, vamos conseguir fazer essa disputa.
Mas muito apoiadores do Bolsonaro apoiam ele justamente por causa da mão firme contra o crime organizado. Como vocês agiriam contra o sistema falido da segurança pública?
O problema da segurança pública é grave. A violência tem que ser enfrentada. Em primeiro lugar precisamos ter claro que a violência é proporcional à desigualdade e ao abismo social no Brasil. Quanto menos investimentos públicos, quanto menos oportunidades se dá para as pessoas, mais a violência cresce. Isso não é um fenômeno brasileiro, acontece no mundo todo. As sociedades mais desiguais costumam ser as mais violentas. Nós temos que ter políticas imediatas para a segurança pública. Estamos discutindo isso com um grupo de policiais antifascistas, com intelectuais da área da segurança pública, como Luiz Eduardo Soares.
Isso passa por algumas medidas: primeiro, o Estado não pode ser promotor da violência. Precisamos fazer uma reforma profunda na lógica da polícia brasileira. A polícia hoje trabalha com um conceito de inimigo interno – e os inimigos são os jovens negros das periferias. Isso só aprofunda a violência. Precisamos reformar a polícia, desmilitarizá-la, construir um ciclo completo, valorizar os trabalhadores da polícia – porém, dentro de uma outra lógica, que não é a lógica da violência e do inimigo, mas a lógica de uma segurança pública para todos. Em segundo lugar, a política de guerra às drogas fracassou no mundo todo.
No Brasil se faz um suposto enfrentamento das polícias ao crime organizado, mas o crime organizado só cresce. Porque se faz um enfrentamento no varejo, mas não no atacado. Não se faz com os grandes responsáveis pelo narcotráfico. E esse enfrentamento no varejo acaba sendo uma maneira de realizar essa política de extermínio contra os mais pobres. Isso fez o Brasil ter a terceira maior população carcerária no mundo. Essa lógica tem que mudar. Precisa haver descriminalização e tributação das drogas. Essa é a forma mais efetiva de combater o crime organizado.
A terceira questão tem a ver com a cultura da violência disseminada na sociedade. Nós temos no Brasil programas policiais de enorme audiência nos horários que as pessoas mais assistem à televisão, programas que estimulam a violência, que fortalecem uma cultura da violência, que geram também uma sensação profunda de insegurança. O Uruguai fez um experimento muito interessante com Pepe Mujica alguns anos atrás. Ele construíram um pacto que levou as emissoras a poderem apresentar os programas policiais só a partir das 11 da noite. O resultado disso foi sensível: a redução dos índices da violência no Uruguai. Esses são caminhos que precisamos seguir.
O movimento feminista ganha cada vez mais espaço no debate político. Como esses debates influenciam a sua candidatura?
A esquerda precisa enfrentar uma dívida histórica. Nós precisamos tratar dos grandes temas econômicos na sociedade, nós precisamos tratar dos temas de mudança no sistema político. Mas precisamos entender que a desigualdade tem outros âmbitos. No Brasil a desigualdade tem um âmbito fortíssimo no que diz respeito às mulheres e aos negros e às negras. As mulheres ganham menos que os homens para o mesmo tipo de trabalho, os negros ganham metade dos brancos para o mesmo tipo de trabalho. Isso é expressão da desigualdade.
O nosso programa é um programa feminista, o nosso programa é um programa negro. Qualquer programa que pretende mudar o Brasil, fazer uma transformação profunda, tem que encarar essas questões como questões estruturantes. Em relação à pauta das mulheres, o tema da desigualdade é chave. Precisa ser colocado na sociedade. Também a participação das mulheres na política, porque as mulheres são a maioria da sociedade mas só são 10% no Parlamento. Isso é uma sub-representação absurda. E um tema que é muito forte para os movimento feminista que precisa ser encampado sem medo é o direito das mulheres de decidirem sobre seus próprios corpos. Hoje no Brasil quatro mulheres morrem por dia em decorrência de complicações com abortos clandestinos, mal feitos porque isso não é tratado como questão de saúde pública. Nós consideramos esse como um debate importante da campanha.
O assassinato da sua colega Marielle Franco chocou o país. O que esse caso significa para você?
A morte da Marielle chocou todos nós. Ela era uma guerreira, lutávamos juntos, embora também para mim ela foi também uma companheira de partido. O assassinato mostra o quão grave é a ferida na democracia brasileira. É um aviso do outro lado: eles estão dispostos a fazer tudo. Ela foi morta à luz do dia no centro do Rio de Janeiro, sendo umas das vereadoras mais votadas no Estado, uma mulher absolutamente promissora, uma liderança política já estabelecida. Simplesmente decidiram exterminá-la. Temos que esperar a investigações, evidentemente, mas nós queremos saber quem matou Marielle. E não vamos nos tranquilizar até ter resposta a essa pergunta. Evidentemente há suspeitas, ela estava mexendo com interesses e estava denunciando a violência policial. Acabou se colocando contra a intervenção militar no Rio de Janeiro e foi relatora da comissão de investigação sobre a intervenção na Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Enfim, nós vamos exigir justiça para Marielle: a caminhada dela não vai ter sido em vão.
Fotos: Gerhard Dilger (2), Ricardo Stuckert