VII Encontrão da Teia de Povos e Comunidades Tradicionais do Maranhão reune cerca de 500 camponeses, indígenas, quilombolas, quebradeiras de coco, sertanejos e pescadores
Por Ana Mendes, Cimi Regional Maranhão
Dia 7 de dezembro de 2017. Sete ônibus tomados por indígenas, quilombolas, quebradeiras de coco, sertanejos e pescadores riscam em caravana o mapa do Nordeste do país, rumo ao quilombo Cocalinho, no município de Parnarama (MA), para o VII Encontrão da Teia de Povos e Comunidades Tradicionais do Maranhão. O evento reuniu cerca de 500 pessoas e seguiu até o último dia 10. Cocalinho, já na divisa com o Piauí, não foi escolhido ao acaso. O quilombo, junto com outras 90 comunidades presentes na Teia, está no centro da resistência popular do Maranhão – estado que trouxe consigo o maior índice de pobreza e desigualdade do Brasil durante as últimas décadas. Se por um lado o projeto integracionista pretende colocar estes povos e comunidades em tais índices, no Encontrão da Teia o grito seguiu no caminho contrário com o tema: “Nosso Território Sagrado: Bem Viver, Memória, Luta e Esperança”.
O Encontrão da Teia acontece duas vezes ao ano, desde 2015. A cada edição a sede da reunião ocorre em uma comunidade diferente – sempre numa área acossada por invasores, empreendimentos e alvo do descaso estatal. São seis grandes grupos presentes na Teia: camponeses, indígenas, quilombolas, quebradeiras de coco, sertanejos e pescadores. Duas ideias, de forma sintética, a mobilizam em união. A necessidade de se fortalecer para o enfrentamento em defesa da garantia das terras tradicionais, dos direitos humanos e sociais e, principalmente, dos territórios sagrados – sobretudo no que tange a ideia de que são áreas com dinâmicas espirituais, locais ritualísticos e de reprodução cultural; não se trata de qualquer terra. Num segundo momento, a ideia de que é preciso descolonizar os métodos e as práticas das comunidades reafirmando os modos de vida e organização próprias.
A conjuntura exigente quanto à resiliência a tais “projetos de morte”, impostos numa conjuntura de retirada de direitos nunca vista dessa forma desde a Constituição Federal de 1988, não poderia ser diferente para os povos indígenas. Aliás, seus 305 povos e quase 1 milhão de indivíduos foram os primeiros a sentir o que vem ocorrendo no país ao lado das demais populações tradicionais, negros e comunidades pobres urbanas. Dessa vez, oito dos 12 povos indígenas que vivem no Maranhão estavam presentes. Uma vitória para a Teia, que cada vez mais atrai povos, comunidades tradicionais e movimentos de resistência. Os Ka’apor, os Tremembé e os Awá Guajá participaram pela primeira vez. Já os Akroá-Gamella, os Krenyê, os Krepym Kateje, os Krikati e os Gavião participam desde a primeira edição.
É necessário voltar os olhos ao Maranhão para compreender a Teia, que se organiza há três anos na luta pela terra, autodeterminação, direitos humanos e sociais, num contexto onde o sarneysmo deixa uma herança de coronelismo e pistolagem mesmo depois de derrotado nas últimas eleições. Os povos e comunidades que compõem a Teia são aqueles que estão entre o madeireiro e a floresta, entre o grileiro e a terra tradicional, entre o Capital e a destruição de projetos de vida plurais e autônomos. A Teia se insurge como articulação gestada por povos e comunidades tradicionais com o intuito de fortalecer as lutas locais. A Teia, portanto, é o movimento dos movimentos.
Em termos práticos, Cocalinho é uma ilha verde cercada por eucalipto. A lagoa e os braços de água usurpados matam a sede pela monocultura da empresa Suzano Papel e Celulose. O avanço do eucalipto e a falta de água expulsou espécies animais e vegetais, coloca em dificuldades seus habitantes tradicionais, mas Cocalinho ainda sim é bonita de ver. Resiste bravamente. A perseverança lá é verde, em tons de babaçu e buriti. Para tanto, a comunidade vive sob a regência de leis próprias – muitas delas ignoradas pelas autoridades brancas. É expressamente proibida a retirada de madeira para a venda, por exemplo. “Somos a minoria, mas a gente vem lutando para não afrouxar mais. O encontrão da Teia vai dar mais força, eles vão reconhecer que não estamos sozinhos”, conta Leandro dos Santos, quilombola e morador da comunidade.
Uma das trocas entre os povos e comunidades nestes espaços da Teia está nas experiências de autonomia em relação a simplesmente esperar providências do Estado que demoram a ocorrer provocando a destruição dos territórios e mortes. De maneira autônoma, sem a participação do Estado, o Conselho de Gestão Ka’apor está minimizando a extração de madeira ilegal na Terra Indígena Alto Turiaçu, no norte do estado, ao áreas de proteção e ramais de fiscalização nas localidades onde há madeireiros. Pagam um preço alto, sofrendo ameaças e assassinatos, mas afirmam que se trata de um projeto definitivo. “Hoje nós temos um plano de vida e estamos fazendo tudo através do Conselho. Não é SEDUC, não é FUNAI. O governo atrapalha nosso trabalho”, fala Itahu Ka’apor.
Em consonância com a filosofia do Bem Viver, que valoriza a autonomia política, educacional e medicinal, a experiência de organização política Ka’apor inspira outros grupos há muito tempo. Os Krepym Kateje também estão implementando um conselho de gestão para descolonizar os hábitos, como afirma Aarão Krepym: “Eu me sinto um protagonista da história do Brasil. Não queremos mais ser colonizados pelo Estado, nós queremos viver o nosso mundo. Eu vejo hoje que tem muita discriminação que atinge principalmente o negro e o indígena. A gente sabe que os grandes empreendimentos querem ver a nossa extinção. Hoje tem coisas da colonização que a gente não consegue mais deixar, mas a gente tem que pensar com a nossa cabeça e ter a visão das coisas. A visão pra mim é o mesmo que a esperança”.
Esperança, um dos temas do encontro
Sob o mote “Nosso Território Sagrado: Bem Viver, Memória, Luta e Esperança”, as conversas se desenrolaram três dias debaixo de suntuosas mangueiras, tamarineiros, pés de sapucaia. Cocalinho pulsa como um oásis em meio ao deserto verde dos eucaliptos. Para além de identificar os agressores dos territórios, os assuntos giravam em torno da agroecologia, do papel da mulher na luta pelo território e autonomia. “O jabuti só pode andar pra frente”, nos ensina Itahu Ka’apor, fazendo alusão ao movimento de resistência que reconfigura-se há 517, mas não cessa; ao contrário, toma fôlego na experiências da pluralidade trocada entre povos e comunidades.
De modo geral, a Teia costura a influência de um grupo com relação ao outro. Promove encontros de lutas, de ideias, de resistência e vida. Um exemplo é narrado pelo sertanejo Marconi Martins Ramalho, da comunidade de Forquilha, localizada em Benedito Leite. Ele que seu grupo dançou o toré no momento em que foi derrubar um curral de uma fazenda sobreposta ao território tradicional. O toré é uma dança indígena ritualística que simboliza a união de objetivos políticos com o campo espiritual, este dependente da “natureza sagrada”: morada de Encantos antiquíssimos e fundamentais para a existência de tais povos. “Nós lembramos dos indígenas e começamos a cantar o toré pra dar uma fortalecida. E a gente foi cantando e fazendo o fogo e deu aquela fortaleza. E quando partimos pra ação deu tudo certo. A Teia traz isso pra nós. Juntou aquela força e nós estamos conseguindo tudo que queremos hoje”, conta o sertanejo.
Leia o documento final do Encontrão da teia na íntegra:
Carta Aberta do VII Encontrão da Teia de Povos e Comunidades Tradicionais do Maranhão
Nós, comunidades quilombola
A partir do tema desse encontro, “Nosso Território Sagrado: bem viver, memória, luta e esperança”, a teia se fortalece como espaço de articulação e ação, animando os nossos projetos de vidas, pautados no bem viver, pelo direito e respeito a nossa cultura e autonomia. E quando falamos em autonomia, tratamos do direito a nossa organização, nossa própria educação, medicina tradicional e práticas de produção.
Sabemos e reavaliamos que, juntos, temos o poder de enfrentar o poder econômico e o poder político, que sobrevive abrigado nas instituições públicas.
No campo, a violência contra nós parte do latifúndio e do grande capital, de empresas como Vale, Suzano, WTorres, Costa Pinto, associado ao poder judiciário, que segue criminalizando nossos movimentos, organizações e lideranças, determinando trágicos e injustificáveis despejos.
O Cocalinho é um exemplo disso, um território centenário, demarcado pelo toque da Caixa do Divino, hoje cercado pelo eucalipto, soja e fazendas de gado. Mais um quilombo que, um dia, chegou a ser apontado como “invasor”. Nesse ambiente, vários dos nossos vivem ameaçados, como é o caso de Gil Quilombola, Jainara Krepym e tantos outros.
Em São Luís, assim como nos demais municípios do Estado, as grilagens cartoriais, as fraudes escandalosas, continuam sendo feitas para servir a interesses criminosos. Um exemplo citado em nosso encontro foi o caso da Comunidade do Engenho (em São José de Ribamar), território indígena, objeto das ações ardilosas do ex-deputado Alberto Franco, figura que também manobra por dentro do Judiciário. Outro exemplo dramático é o que está sendo vivido pela Comunidade de Cajueiro, localizada em São Luís, dentro da Resex Tauá Mirim e que abriga o território sagrado do Terreiro do Egito. Com a conivência do Estado, a comunidade Cajueiro vem sendo brutalmente violentada pela ação da WTorres, interessada na instalação de um porto privado, ilegal e desnecessário.
Assumimos o compromisso e o desafio de manter a nossa unidade, ampliar e fortalecer nossas alianças, sempre na perspectiva de defender e garantir nossos TERRITÓRIOS SAGRADOS e nosso BEM VIVER. Tudo isso, sabendo da necessidade de dar visibilidade a nossa caminhada, fortalecendo uma comunicação que; além de informar, denunciar, registrar e mobilizar; possa também atuar na nossa formação.
E assim, plantando simbolicamente os ancestrais fundadores do Cocalinho, retornamos as nossas comunidades, com nossa esperança renovada e ampliada, com a força dos nossos encantados, orixás, Jesus de Nazaré, tendo a certeza que cuidar da outra, do outro e do mundo faz bem.
Cocalinho (MA), 10 de dezembro de 2017.
Teia de Povos e Comunidades Tradicionais do Maranhão
Fotos: Ana Mendes/CimiMA