Na FLIP de Paraty, no Rio e em São Paulo, Lutz Taufer, ex-membro da Fração do Exército Vermelho (RAF) da Alemanha, que viveu dez anos no Brasil, vai lançar sua autobiografia. No livro Atravessando fronteiras (tradução de Kristina Michahelles), Taufer conta sobre as lições de sua vida: a luta clandestina armada, os quase 20 anos na prisão e os dez nas favelas do Rio de Janeiro – para ele, “a melhor parte” de sua vida. Atualmente morando em Berlim, é integrante da diretoria da ONG “Serviço pela paz mundial – Weltfriedensdienst” (WFD).
Por Astrid Prange, Deutsche Welle
Lutz Taufer: O Brasil me deixa um pouco triste. Mas, apesar da dinâmica assustadora na política, eu sei que muito se faz nas favelas. Lá existem diversos grupos realizando projetos sociais, ampliação de infraestrutura, trabalho comunitário e cooperativas. São coisas que, apesar de todas as dificuldades, fazem avançar.
O senhor acredita que mudanças políticas podem vir da favela?
A questão para mim é o empowerment, a potencialização da gente da favela, e acredito que até certo ponto isso deu certo. Na prisão, eu vivenciei como uma pessoa que está com as costas contra a parede pode desenvolver uma força inimaginável. No trabalho na favela, vivi isso novamente.
O segundo paralelo é que eu pertenço a uma geração que, depois do fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, cresceu numa sociedade ainda fortemente marcada pelo nacional-socialismo. Também na favela, o quotidiano continua sendo marcado pelo passado: apesar de todas as diferenças, ainda se percebe os efeitos tardios da escravidão.
Em seu livro Atravessando fronteiras, o senhor fala da “descolonização das cabeças e dos corações”. O que quer dizer com isso?
Na América Latina são as mulheres que colocam as coisas em funcionamento. Infelizmente a maioria delas não tem noção de como é importante o trabalho que realiza. Eu trabalhei no sentido de desenvolver e incentivar as capacidades e possibilidades da gente da favela, por exemplo através da criação de cooperativas ou de centros de formação profissional.
Trata-se de vencer a mentalidade, ainda vigente no Brasil, de que cada um deve saber o seu lugar na sociedade. Mas nesse ponto estou também referindo a mim, pessoalmente: eu aprendi um monte de coisas na favela.
Que lições levou consigo?
Eu tive que aprender, por exemplo, que não se consegue ter sucesso como combatente solitário, como na prisão. No trabalho com os projetos nas favelas, só se vai adiante como equipe. E é preciso a pessoa também reconhecer que há certas coisas que ela simplesmente não entende.
A sua relação com a religião se transformou, como funcionário da ONG Weltfriedensdienst? Afinal, essa organização foi criada depois da Segunda Guerra por cristãos politicamente engajados.
A religião desempenha um grande papel no Brasil. A maioria dos colaboradores na favela é de católicos engajados, que tiram força de sua fé. No sentido social, a Igreja representa um papel positivo; o papa é chamado “Companheiro Francisco”, muitos que realizam trabalho social veem nele um aliado. Nós também trabalhamos bem junto a comunidades protestantes. Para mim mesmo, a fé não tem nenhum significado, eu sou ateu.
Sua visão da Alemanha se modificou, depois da estada no Brasil?
Sim. Às vezes a vida na Europa me faz pensar na vida de uma gated community [condomínio] no Brasil, ou seja: uma vida num conjunto residencial bem protegido, com pessoal de segurança próprio, linhas de ônibus e infraestrutura próprias. Também nós, aqui na Europa, não parecemos dispostos a abrir mão desse luxo – pelo menos é essa a impressão que me dá o debate atual sobre a política migratória europeia. E, no entanto, eu vi no Brasil que também se pode viver com bem menos luxo.
Então, 40 anos depois do Outono Alemão – a onda de atentados terroristas da RAF entre setembro e outubro de 1977 –, erguem-se novos muros. O engajamento por um mundo melhor é uma utopia?
Acho que precisamos falar muito mais sobre as causas do êxodo migratório, principalmente no Oriente Médio e na África. Precisamos fazer muito mais a respeito, para que as pessoas tenham mais perspectivas lá, ao invés de, através de nossas atividades econômicas e políticas, contribuir para que a mudança climática, a pobreza e os conflitos se agravem.
Onde ficaram suas convicções de integrante da RAF?
Estou convencido de que a luta revolucionária da RAF não caiu do céu, mas sim que os conteúdos e metas que se pretendia continuar desenvolvendo com política armada já haviam sido iniciados pelo movimento [social da Nova Esquerda] de 1968!
Nós alcançamos alguma coisa, sim. Desde o movimento de 1968, a engessada sociedade alemã se tornou mais livre. E se tornou impensável uma Alemanha sem a força e presença da assim chamada sociedade civil, com seus inúmeros grupos sociais. Algo assim como o Stuttgart 21, o movimento de protesto contra a estação ferroviária central subterrânea naquela cidade, seria inconcebível no Brasil!
O que considera ter sido um erro, a posteriori?
Na minha vida, eu ultrapassei várias boas fronteiras, mas também fronteiras ruins. E a absolutamente negativa, claro, foi minha corresponsabilidade no assassinato de dois membros da embaixada em 1975, em Estocolmo. Nós mesmos quase não falamos sobre nossa ação em Estocolmo, eu me incluo expressamente aí. Estocolmo foi, sim, expressão de um militarismo mais tardio, e estabeleceu falsos critérios para o mundo exterior, porque nós não nos pronunciamos a respeito. Devíamos ter nos posicionado antes, de maneira mais clara.
Onde a RAF fracassou?
Nós nos superestimamos para além de todas as medidas. Nem o fuzilamento de Ernst Zimmermann, ex-presidente da Federação da Indústria Aeroespacial Alemã, nem o fuzilamento do diplomata alemão Gerold von Braunmühl modificaram a indústria armamentista ou a política para o Oriente Médio. Devido à nossa própria superestimação, só notamos mais tarde que haviam se formado novos movimentos na Alemanha: contra a energia nuclear, pela paz, o de ocupação de casas ou o movimento feminista.
A fixação no passado da RAF irrita o senhor?
Depende da forma como se fala comigo sobre esse assunto. As banalidades, do tipo “Antes você estava na luta armada, agora trabalha para o WFD”, são as mesmas questões que ouço desde os anos 80. Eu preferiria falar como poderia ter havido uma desescalada, não só do lado da RAF, mas também na polícia e na política, que na época desencadearam uma verdadeira histeria e perseguição à RAF.
Eventos com Lutz Taufer no Brasil:
- Paraty, FlipEI Quinta-feira, 26.07, 16 hs 30 – 1968: A revolta anticapitalista que não acabou; com Lutz Taufer, Maria Teresa, Dulce Pandolfi e Peter Pal Pelbart
- Paraty, Casa Europa Sexta-feira, 27.07, 15 hs – Maio de 1968: repercussões na Europa e no Brasil; com Lutz Taufer e Michael Goldfarb
- Paraty, FlipEI Sábado, 26.07, 18 hs – 1968 e a luta armada: bate-papo com Lutz Taufer; com Hugo Albuquerque, Kristina Michahelles e Gerhard Dilger
- Rio de Janeiro, Av. Pres. Vargas, 1261 Segunda-feira, 30.07, 18 hs – A revolução como peça de museu; com Lutz Taufer, Michael Goldfarb e Niels Hav