| Este artigo também foi publicado no Le Monde Diplomatique Brasil, em uma parceria editorial que busca ampliar o debate sobre justiça climática. Trata-se de uma versão reduzida; o texto completo pode ser lido no livro Mineração, petróleo e bioeconomia. A publicação integra a coleção Politizando o Clima, editada pela Fundação Rosa Luxemburgo em parceria com a Editora Funilaria. A série reúne quatro volumes que questionam as soluções climáticas hegemônicas e denunciam os impactos da financeirização da natureza sobre territórios do Sul Global. |
O desafio da “transição energética” tem tomado muitos espaços de discussão no Brasil e no mundo, com governos e empresas assumindo para si discursos sobre sustentabilidade. No entanto, pouco se vê em termos de ações efetivas que gerem a preservação do planeta. Pelo contrário, as ações encampadas em nome do combate às mudanças climáticas têm gerado violações e impactos socioambientais.
Nos últimos tempos, está ocorrendo uma escalada internacional para pressionar o Brasil em direção a uma “transição energética justa”. Mas de que transição estamos falando, e para quem ela é destinada? De acordo com diferentes pesquisadores, na verdade, o que está acontecendo não é uma transição, mas sim uma expansão energética ou uma diversificação da oferta de energia.[1]
Nesse cenário, centenas de comunidades localizadas na Amazônia brasileira sofrem com projetos de mineração que anunciam um desenvolvimento que não será visto nem sentido por quem nelas moram. Alguns exemplos de projetos de mineração que chegaram à Amazônia com o discurso do desenvolvimento econômico sustentável são: Programa Grande Carajás, Projeto S11D, Onça Puma. A principal empresa responsável por eles é a mineradora Vale S.A., presente na Amazônia há mais de quatro décadas. Esses grandes empreendimentos exploram principalmente ferro, mas também bauxita, nióbio, ouro, níquel, cobre etc. E agora são apresentados seguindo a narrativa da transição energética.
A Vale S.A. é uma das maiores mineradoras de minério de ferro, cobre e níquel do mundo e está presente no Brasil há mais de oito décadas. A empresa reforçou o discurso da transição energética em 2025 ao anunciar investimentos de R$ 70 bilhões em cinco
anos no Programa Novo Carajás. De acordo com a companhia, o objetivo é expandir a produção de cobre “na região de Carajás, uma província rica em minerais essenciais para a descarbonização e a transição energética global”.
A Vale afirma ainda que o programa deve “impulsionar o beneficiamento de minerais críticos para a produção de aço verde (minério de ferro de alta qualidade) e de metal para transição energética (cobre), fundamentais para a redução das emissões de carbono”. O setor empresarial categoriza essa produção de aço como “verde” por utilizar fontes de energia como solar ou eólica, carvão vegetal e tecnologias que buscam reduzir emissões de gás carbônico. O que não significa dizer que tais projetos não geram impactos sobre comunidades nem sobre a natureza.
A exploração de cobre na Amazônia já é uma realidade vivenciada por comunidades do município de Marabá, no sudeste do Pará. Segundo Bruno Milanez, a mina do Projeto Salobo, da Vale, é a maior em operação para extração de cobre no Brasil. Esse metal pode ser utilizado para a “fabricação de equipamentos de geração e armazenamento de energia solar, energia eólica, em redes elétricas, na fabricação de veículos elétricos e baterias, na produção de hidrogênio, energia nuclear e hidrelétrica”, entre outros. [2]
Segundo Fabrina Pontes Furtado e Elisangela Paim, “o discurso da transição energética parece inscrever-se na lógica da modernização socioecológica do capitalismo”. Para as pesquisadoras, essa lógica se apresenta a partir de projetos que dizem ser comprometidos “com a defesa do meio ambiente, o enfrentamento da mudança climática e o combate à pobreza”, porém são fundamentados no mercado e têm a tecnologia como um fim em si. [3]
Nesse sentido, empresas que já atuam no setor da mineração e da energia, por exemplo, passam a considerar “novas” formas de produção e fornecimento de minerais que atendam a uma onda mundial da transição energética. “Novas” aqui é colocado entre aspas pois problematizamos tais práticas empresariais em torno da exploração dos minerais que estão sendo considerados hoje como estratégicos e/ou críticos para a transição energética. “Nós não estamos falando de uma transição energética, nós estamos falando de uma expansão energética. As formas de produção de energia anteriores vão continuar existindo. Mas ao inaugurarmos novas formas energéticas não quer dizer que a gente abandone as que já existem”, afirma Charles Trocate, do Movimento pela Soberania Popular na Mineração, em entrevista concedida as autoras.
Notamos, portanto, a Amazônia como um grande mercado de fácil acúmulo de lucros, visão que se sustenta desde a colonização: a região vista como natureza pristina, sem gente, fonte de recursos inesgotáveis, e agora fundamental para salvar o planeta da mudança climática. E o povo, tão diverso, não tem o direito nem de se autodenominar. Não por acaso agora a Amazônia é palco da 30ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas, a COP30.
Foco de políticas desenvolvimentistas fundadas numa economia agroexportadora, a Amazônia torna-se palco de conflitos de todas as ordens: étnicos, culturais e territoriais, motivados pelo antagonismo entre as formas de vida, pertencimento, identidades, relação com a natureza e os modelos de exploração dos grandes empreendimentos, a exemplo da exploração mineral. Segundo Edna Maria Ramos de Castro, “o que está em jogo e agora de forma mais explícita nas políticas governamentais, inclusive de países com região amazônica, é a ocupação pelo mercado de territórios da Pan-Amazônia, essa imensa região privilegiada pela sua floresta tropical e rico potencial mineral, hídrico e de biodiversidade. Essas políticas consideram que a infraestrutura de transportes permitirá a ligação física do Atlântico ao Pacífico e, também, a incorporação de novos territórios ao mercado de terras. Sob essa perspectiva a região passa a ocupar uma posição central na geopolítica brasileira e sul-americana, tanto pelos Estados que a concebem como um espaço estratégico de integração no âmbito de uma economia mundializada, quanto pelo aumento de interesses por parte de grandes empresas e corporações”. [4]
Os grandes empreendimentos geram “diferentes violações e formas de desrespeito aos direitos coletivos, todos consagrados em legislação internacional, como: o direito a uma alimentação adequada; o direito à água e ao saneamento básico; o direito à saúde; o direito à moradia…”. [5] Todos chegam com a mesma lógica de atuação vinculada aos poderes governamentais. Na Amazônia, essa característica dos grandes empreendimentos não muda frente à emergência climática que enfrentamos. Muitos são os cenários de desastres ambientais, catástrofes, destruição de cidades, repressões, expulsões, expropriações e tomada dos territórios.
Vale a pena ressaltar que a mineração nunca vem sozinha, ela se reproduz a partir de outros condicionantes fundamentais, sem os quais pode não existir com a potência e o poder que representa hoje. Um grande projeto é a junção de vários outros dispositivos necessários à produção e reprodução do capital: o agronegócio, projetos de construção de infraestruturas (ferrovias, rodovias, portos, barragens, hidrovia etc.). Daí vem a migração massiva da força de trabalho masculina e, como desdobramento: pobreza, conflitos, violências, aumento da população, disputas diversas. É a contradição do que chamam de progresso e desenvolvimento sustentável na Amazônia.
A continuidade da exploração a todo custo para a transição energética no Pará
O estado do Pará ocupa lugar central nas discussões sobre clima, mineração e agora para a transição energética. A geografia, a biodiversidade, a existência de povos e comunidades tradicionais, bem como os modos de vida e as resistências aos impactos dos grandes empreendimentos, tornam o estado um marco no debate ambiental. Por isso no Pará se realiza a COP30.
Distante 458 quilômetros de onde vai ocorrer a conferência, Marabá é um município do sudeste paraense com 112 anos de existência, população de 266.533 e uma área total de 15.127.872 km² (dez vezes maior que o município de São Paulo). Como residente na cidade (uma das autoras), constata-se a região como um ícone em exploração nos moldes coloniais em razão do extrativismo da borracha, peles de animais, castanha, madeira, ouro, ferro e agora minerais da transição energética.
No início da década de 2010, o Projeto Salobo, de exploração de cobre da empresa Vale S.A., começou a operar em Marabá. Paralelamente, outros minerais passaram a ser explorados de forma legal ou clandestina, modalidade muito comum no Pará. Além de sugar da natureza todo produto que interessa ao mercado, o extrativismo mineral nos moldes capitalistas não demonstra nenhuma preocupação com a diversidade da vida.
O Projeto Salobo está localizado dentro da Floresta Nacional (Flona) Tapirapé-Aquiri, uma região conhecida pelo encontro de dois importantes rios, o Tocantins e o Itacaiúnas. Este último está nas proximidades de uma barragem construída para a contenção de rejeitos da lavagem do minério de cobre. Dessa forma, um impacto negativo considerável é a tensão e o medo das pessoas com a possibilidade do rompimento da barragem próxima ao Rio Itacaiúnas.
Outro importante ponto de extração de minério no município de Marabá ocorre na região do Rio Preto, onde se extrai manganês, sob a responsabilidade da empresa
Buritirama (terceirizada da Vale S.A.). Esta tem sido pauta de discussão de vários setores da sociedade civil, dados os riscos, a desestruturação e a insegurança do viver e do ir e vir de quem mora naquela região. Poeira, lama, riscos de acidentes, ameaça de rompimento da barragem de rejeitos e conflitos internos fazem parte da lista de impactos da mineração nessa região.
Nos treze anos de exploração mineral por parte da Buritirama, muitos problemas surgiram, a começar pelas dificuldades de acesso às vilas que já existiam nos arredores da área de extração de manganês. Depois do início da operação das atividades minerais, não há mais nenhuma segurança para trafegar com qualquer tipo de transporte: carro, moto ou bicicleta.
Realizamos em 20 de fevereiro de 2025 uma roda de conversa com mulheres de áreas afetadas pela exploração de manganês em Marabá. De acordo com elas, além do medo de trafegar pelas estradas e de ir a outros lugares para suprir necessidades, a empresa estabelece um verdadeiro terror na comunidade. O medo é instalado uma vez que há processos contra lideranças que denunciam esses impactos.
Essa criminalização de pessoas que resistem aos efeitos negativos da mineração é uma estratégia comum utilizada por mineradoras terceirizadas, prestadoras de serviços, e pela própria Vale S.A. Atualmente, na região do Rio Preto, em Marabá, treze pessoas estão sendo processadas pela empresa. Aqueles que sentem as dores de quem habita por ali são cerceados e perseguidos. Já se somam muitos homens e mulheres penalizados com processos judiciais, denunciados pelas empresas atuantes na lógica do extrativismo predatório na Amazônia. Esta tem sido uma prática adotada para intimidar as pessoas e garantir a permanência em regiões mineradas. “A desregulação socioambiental em curso tem sido acompanhada por várias formas de violência, as quais caminham lado a lado com processos que visam a despolitização e a criminalização de atingidos, movimentos e grupos engajados na resistência à mineração, além de pesquisadores críticos”.

Outro grave problema é o aumento da prostituição infantojuvenil nas regiões com exploração de minérios. São áreas com forte presença masculina, principal mão de obra desses projetos. A literatura feminista fala de “repartriarcalização dos territórios” [7] dada a escolha das empresas de atraírem grande contingente de homens para seus quadros de trabalhadores. Algumas consequências são: violência sexual, prostituição de menores, gravidez precoce, número significativo de mães solo etc. Reportagem do Correio de Carajás (2019), afirma que “foi instaurado inquérito para investigar o aumento da prostituição infantil na região da Estrada do Rio Preto, principalmente nas vilas União, Santa Fé e Três Poderes”. A Vila União, com aproximadamente trinta anos de existência, é uma das mais movimentadas da região do Rio Preto. Contam-se mais de 3 mil moradores. Destes, grande parte são trabalhadores homens da mineradora Buritirama. O Correio de Carajás ainda afirma: “Na vila, que tem cerca de mil funcionários da mineradora Buritirama e de suas contratadas, há cinco bordéis – três deles inaugurados recentemente. Oficialmente, eles atendem com mulheres maiores de idade, mas moradores e alguns comerciantes reconhecem que há menores que são oferecidas para clientes diferenciados”.
Quando se fala dos impactos diferenciados sobre os corpos-territórios das mulheres, o exemplo acima pode ser o mais cruel, mas não é o único. Existem outros estudos sobre minerais da transição energética e violação de direitos das mulheres no Brasil que reforçam esse contexto. “A sobrecarga de trabalhos domésticos e com os cuidados das famílias em decorrência do agravamento da saúde por causa dos projetos, a violação e a exploração dos corpos de mulheres e meninas, a deslegitimação, desqualificação e negação das mulheres como sujeitos políticos e a apropriação da temática de gênero pelas corporações extrativistas demonstram como as desigualdades de gênero são reforçadas por esses tipos de investimentos”. 8
Os casos acima mostram que a atividade de mineração praticada na Amazônia está longe de ser outra. A exploração de manganês através das ações da empresa Buritirama e a exploração de cobre com o Projeto Salobo, em Marabá, nos dão elementos suficientes para refletir acerca dos impactos socioambientais da exploração de minerais ditos estratégicos na Amazônia. Da mesma forma, permitem refletir sobre os processos de resistências, denúncias e mobilizações que ainda salvam muitos territórios da expansão da mineração, a qual pode ser vista como uma atividade de destruição. A partir das experiências observadas, não há como estabelecer um vínculo entre mineração e sustentabilidade, tampouco entre mineração e transição energética justa.
*Ailce Margarida Negreiros Alves é mestra em Ciências Sociais pela EHESS, Paris (França), educadora popular e professora da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Campus Marabá), na Faculdade de Educação do Campo.
Larissa Pereira Santos é mestra e doutoranda em Ciências da Comunicação pelo Programa de Pós-graduação Comunicação, Cultura e Amazônia da Universidade Federal do Pará e coordenadora política na Associação Justiça nos Trilhos.
[1] Ver, por exemplo, Fabrina Pontes Furtado e Elisangela Paim, “Energia renovável e extrativismo verde: transição ou reconfiguração?”, Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v.26, 2024; e Bruno Milanez, Terra, clima e energia: a expansão energética injusta no Brasil, PoEMAS, 2025.
[2] Bruno Milanez, op.cit., p.16
[3] Fabrina Pontes Furtado e Elisangela Paim, op.cit., p.11.
[4] Edna Maria Ramos de Castro, “Amazônia na encruzilhada: saque colonial e lutas de resistência”, em Territórios em transformação na Amazônia: saberes, rupturas e resistências, Belém, NAEA, 2017, p.19-48.
[5] Mariana Lucena Santos, Direitos Humanos e Empresas: a Vale S.A. e as estratégias de dominação, violações e conflitos envolvendo territórios, água, raça e gênero, Açailândia, Justiça nos Trilhos, 2020, p.6.
[6]Andréa Zhouri et al (org.), Mineração: violências e resistências: um campo aberto à produção do conhecimento no Brasil, Marabá, Editorial iGuana, ABA, 2018, p.9.
[7] Míriam Garcia-Torres et al, “Extrativismo e (re)partriarcalização dos territórios”, em Delmi Tânia Cruz Hernandez e Manuel Bayón Jiminez, Corpos, territórios e feminismos, São Paulo, Elefante, 2023, p.31-50.
[8] Fabrina Pontes Furtado e Caroline Boletta de O. Aguiar, “Gênero é o novo meio ambiente: perspectivas ambientais e de gênero na mineração de lítio para a transição energética no Brasil”, Revista Internacional de Derechos Humanos, v.VIII, n.1, jan.-jul. 2024, p.9.



