Conversamos com Raúl Zibechi* sobre os novos movimentos sociais e as novas formas de resistência na América Latina. Zibechi é autor uruguaio e uma das figuras mais importantes da esquerda latino-americana.
Entrevista e foto: Ana Rusche e Niklas Franzen
Você falou que estamos em uma “etapa interessante de emergência de novos movimentos sociais“. Qual é a diferença entre esses movimentos e os “velhos” movimentos?
Quando me refiro a velhos movimentos sociais, falo principalmente sobre os movimentos que nasceram na luta contra o neoliberalismo nos anos 1980 e 1990. Muitos desses movimentos, primeiramente, lutaram para a democratização e depois contra as privatizações. No caso de movimentos rurais, lutaram pela reforma agrária e contra o modelo do velho latifúndio. Eles tiveram um papel muito importante para instalar questões como essas nas sociedades. São movimentos grandes, bem estruturados, que já existem há quase 30 anos. Hoje continuam na luta e reinventam-se para se adaptar a uma nova realidade.
Nos últimos 10 anos, com a nova economia de agronegócio, financeirização e especulação imobiliária, nasceram os novos movimentos sob os chamados governos progressistas. Falo principalmente do Cone Sul, mas isso se aplica também para países como Equador ou Bolívia. Esses movimentos surgiram nos últimos anos, com o protagonismo de jovens, mulheres e de setores das periferias urbanas. Não são somente estudantes da classe média, inclusive, em comparação com antigamente, hoje a universidade é só mais um elemento dentro de muitos. Esses novos movimentos são menos estruturados e organizados, mas apresentam uma grande flexibilidade organizativa com novas formas de ativismo e o seu trabalho de base é muito importante. A diferença principal é que os novos movimentos sociais são portadores de uma cultura política de um novo tipo. É a cultura que protagoniza os jovens, as mulheres e os marginalizados das periferias.
Quem são esses movimentos exatamente?
São movimentos como o Movimento Passe Livre (MPL), os comitês da Copa ou as centenas de pequenos grupos que marcharam nas ruas do Brasil no ano passado. No Chile, são os movimentos estudantis com sua forte crítica ao sistema educacional, na Argentina e no Paraguai, são movimentos que criticam radicalmente o agronegócio e a mineração. Além disso, são eventos como a Marcha das Vadias ou grupos do movimento LGBT.
Também são moradores das favelas e de bairros pobres que lutam diariamente contra a exclusão, o racismo e a violência policial. Especificamente, não precisam de um aparelho teórico muito forte. A luta funciona em um nível cotidiano. Muitas vezes, esses jovens não se consideram políticos. Sua integração na sociedade é via consumo em vez de ocorrer pela via do trabalho. O Baile Funk no Brasil ou fenômenos como os rolezinhos são muito mais consumistas, entretanto, também criticam os efeitos do modelo capitalista atual de uma forma indireta. Por isso, são um grande perigo para o Estado, talvez o maior perigo atualmente. A politização mudou: hoje o Hip-Hop é mais importante para a politização do que o Marx.
Isso significa que hoje um militante não precisa mais ter um conhecimento teórico?
Acho que muitas pessoas, especialmente os intelectuais, tem um olhar muito particular sobre o mundo. Eles acreditam que você tem que primeiro adquirir a estrutura teórica e depois viria a militância, ou seja, só depois de você ter lido “O Capital” ou “O Manifesto Comunista” poderia começar com a prática. Porém, a história da luta de classes nunca foi assim. Antônio Conselheiros e os combatentes na Guerra de Canudos não tinham nenhuma ideologia de esquerda. Mas foram as camadas pobres que lutaram. É muitas vezes assim. As pessoas vão primeiro à luta e depois buscam o aparelho teórico para justificar essa luta. A teoria é importante, mas, na luta, também pode destruir a espontaneidade. Parece que, hoje em dia, a espontaneidade é o pior para a esquerda. Novos movimentos como o MPL usam aspectos dela, como a festividade e alegria nos atos, e aprenderam sistematizar a teoria, sem perdê-la. Para eles não importa a quantidade das pessoas na rua. A quantidade não muda o mundo, o que muda o mundo é a criatividade.
Você mencionou os protestos de junho de 2013, quando milhares tomaram as ruas no Brasil. Esses protestos mostrariam o fracasso do governo progressista, que já não representaria mais as demandas do povo?
Isso pode ser uma leitura provável, mas não é a única explicação possível, nem a mais determinante. O junho do ano passado e esses protestos massivos são uma parte da realidade. Meu olhar dirige-se para os pequenos grupos que fizeram isso possível. Não apareceram do nada. O MPL já tem 9 anos e a Revolta do Buzu em Salvador já tem 11 anos. Os comitês da Copa começaram a se organizar logo depois dos Jogos Pan-Americanos em 2007 e o MTST, entre várias outras organizações e coletivos, há anos. Significa que muitos movimentos já militavam em período anterior aos chamados governos progressistas.
A característica do agora é um aprofundamento do modelo capitalista, particularmente nas cidades, e isso cria novos problemas. Especialmente, a especulação urbana é um problema muito grave. Vamos lembrar que muitos desses problemas já começaram antes dos governos atuais. Esses governos conseguiram mudanças, especialmente nas políticas sociais, que melhoraram a situação das camadas populares. Essa foi uma primeira etapa apenas e não foi suficiente. Agora, os pobres querem mais. Não querem saúde de segunda classe, transporte e educação ruins, agora demandam direitos. As políticas sociais não geram direitos, geram somente melhoramentos particulares. O modelo dos governos progressistas mistura agronegócio, exportação de commodities e políticas sociais. Entretanto, essas políticas sociais não mudam o lugar estrutural das pessoas. Se você for favelado com um pouco mais de renda que antes, você segue sendo pobre favelado. O fato é que, embora a situação da pobreza tenha mudado um pouco, a desigualdade quase não mudou. Então o problema fundamental hoje é a desigualdade que não pode ser alterada com esse modelo.
Qual importância possui os novos movimentos sociais em países com governos direitistas ou conservadores como o Paraguai ou a Colômbia?
Cada país é diferente. No caso do Paraguai, ocorre o seguinte: o país apresenta uma estrutura política muito antiga e coronelista. Isso se alterou um pouco nos últimos anos, principalmente por causa de movimentos urbanos. Mesmo assim, o ativismo ainda não é muito visível e a criação de movimentos grandes e aglutinadores não ocorreu até agora. Em outros países com governos conservadores, como a Colômbia ou o Peru, há novos movimentos importantes contra a mineração. Na Colômbia, também há movimentos urbanos e estudantis do novo tipo que mencionei. Mas o período longo de guerra congelou a sociedade. Há muita dificuldade em se criar movimentos políticos e culturas políticas em uma situação de grande polarização e militarização. Isso não significa que não haja movimentos, contudo, não com tanta força como hoje existe no Brasil. O caso do Chile é peculiar, pois se trata de uma democracia controlada ou restringida e o governo de Michelle Bachelet não é realmente um governo progressista, mas sim conservador. Mesmo assim, há um ativismo muito forte nesse país.
Parece que esses novos movimentos sociais agem principalmente nos centros urbanos. Qual é a importância hoje dos movimentos no campo, ou seja, em conflito com a agroindústria? Há conexões entre a resistência urbana e no campo?
No caso da Argentina e do Uruguai, novos movimentos sociais existem em áreas rurais. Na Argentina, há entre 70 a 100 assembleias populares contra mineração em cidades pequenas, por exemplo, a Unión de Asambleas Ciudadanas (UAC). É um movimento com um novo tipo de cultura política, mas que age principalmente fora dos centros urbanos, no campo. No Uruguai, os movimentos contra a mineração são mais fortes nas pequenas cidades. No Brasil é diferente: os movimentos do novo tipo estão principalmente nas cidades e ainda não chegaram ao campo. Mas isso pode mudar.
O capital possui basicamente três manifestações: a mineração, o agronegócio e a especulaçãoimobiliária urbana. Os três tipos não possuem muita relação entre si. A luta nas favelas não tem muita conexão com a luta contra agronegócio, mas estão lutando contra o mesmo inimigo, ou seja, contra diferentes manifestações do mesmo modelo. No futuro, pode ser possível a articulação como um grande movimento contra o extrativismo.
A situação financeira na Argentina é muito precária atualmente. Peritos já previram uma nova bancarrota do estado. Você acha possível acontecer uma mobilização nacional tão grande como em 2001?
Sim, acho que, se a situação econômica e política piorar, vão surgir novos movimentos. Não sei se esses movimentos podem alcançar a dinâmica de 2001. A Argentina é um lugar de muita atividade política, é um lugar especial para a luta de classes. É possível ver isso desde o ano de 2010, quando o Parque Indoamericano em Buenos Aires foi ocupado por milhares de pessoas sem-teto e as mobilizações cresceram. A partir disso, articulam-se, permanentemente, novas organizações nas cidades.
Qual é o futuro desses movimentos? Podem sobreviver com seus métodos não-convencionais e com a recusa de estarem no poder?
Eu não sei. No caso dos novos movimentos sociais, é importante olhar para a vida cotidiana e as estruturas não-visíveis: as pequenas redes, a cultura. A cultura não é um aparelho, mas uma prática. Muitas vezes essas práticas criaram aparelhos, outras vezes não. No caso do MPL, isso é muito claro. O movimento já existe há 10 anos, mas não é um aparelho e sim muitos pequenos grupos coordenados. Os aparelhos e as práticas são duas coisas diferentes. Por exemplo, o processo que nasceu em junho do 2013 com os protestos massivos no Brasil mostrou muita força para intensificar as práticas dos pequenos grupos.
Assim, foi possível, pela primeira vez, sensibilizar um público maior para temas como os massacres cotidianos nas periferias das cidades brasileiras. A resposta pública, depois do desaparecimento do Amarildo Dias de Souza, foi algo novo. Se as camadas pobres conseguem se converter em atores políticos e ainda nos espaçosfora da favela, como com os rolezinhos, serão os movimentos mais importantes pela democratização, desracialização e descolonialização. As elites brasileiras mostram, historicamente, muito medo disso. Em geral, tenho uma expectativa positiva para os próximos anos na região. Especialmente, acho que a emergência de pequenas organizações com grande capacidade de colocar os novos problemas na agenda política irá continuar.
* Raúl Zibechi viajou a convite da Fundação Rosa Luxemburgo para participar do seminário Agronegócio no Cone Sul – Resistências e Alternativas, organizado entre 11 e 14 de agosto em Assunção, no Paraguai. O evento foi realizado em parceria com as organizações Serpaj e Base-IS.
Ana Rusche e Niklas Franzen são colaboradores da Fundação Rosa Luxemburgo do escritório regional Brasil e Cone Sul.