Primeiro artigo da série Rio em rota de colisão apresenta a escalada do poder das milícias no Rio de Janeiro dos anos 1950 aos 2000
Não há nenhum poder paralelo na milícia
19/03/2025
por
José Cláudio Souza Alves

O significado do termo milícia, empregado no Brasil, mais especificamente no estado do Rio de Janeiro, diferencia-se do atribuído a ele na literatura internacional. Fora do país, se refere a grupos armados, cujo objetivo é a deposição de forças que controlam o poder político, muitas vezes o próprio Estado.

No caso do Rio de Janeiro e do Brasil, milícias são organizações armadas que atuam como grupos de execução sumária, envolvidos em várias atividades criminais, como monopólio de venda e controle de bens e serviços, extorsão, controle territorial armado e controle político eleitoral, incluindo a venda de votos. Sem o envolvimento, portanto, em qualquer movimento de deposição de governos. A manutenção de seus interesses criminais existe independentemente de quem controla o poder político.

Grupos de extermínio

Nos anos de 1950, no Rio de Janeiro, grupos de policiais passaram a praticar o assassinato de pessoas consideradas bandidas, por, supostamente, estarem envolvidas em roubos, tráfico de drogas, entre outros atos ilícitos.

Essas execuções sumárias passaram a ser vistas como uma forma mais eficiente de controle social, apoiada pela estrutura de segurança pública do Estado. Grupos extra-oficiais criados por policiais como a Scuderie Le Cocq e os Esquadrões da Morte se notabilizaram, constituindo-se como os primórdios das milícias. [Para saber mais, ver MELLO NETO, David Maciel de. Esquadrão da Morte: genealogia de uma categoria da violência urbana no Rio de Janeiro (1957-1987). Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro. UFRJ. 2014.]

Responsável por centenas de mortes, a Scuderie Le Cocq se manteve ativa até os anos 2000. Já o principal suspeito de assassinar a vereadora Marielle Franco, o ex-policial Ronnie Lessa, foi um dos chefes do grupo de milícias Escritório do Crime, e que havia entrado para a Scuderie em 1989, aos 18 anos de idade.

Ditadura empresarial-militar

Nos anos de 1960, a ditadura empresarial-militar elevou a atuação desses grupos a um patamar ainda desconhecido na história do país. Preocupados com a atuação dos grupos de esquerda, que se opunham ao regime militar, principalmente, os que atuavam de forma clandestina e armados, os militares criaram um aparato de execuções sumárias que passaria a acumular taxas de homicídios dolosos crescentes, alçando-a a um patamar de milhares de vítimas a cada ano e em diferentes regiões, com destaque para os treze municípios que formam a Baixada Fluminense, localizada a oeste da cidade do Rio de Janeiro.

Os territórios dominados eram aqueles onde vive a população mais pobre, composta majoritariamente por negros, esmagados por uma política pública de segurança calcada em execuções sumárias e fruto de incessantes operações policiais.

Com o final da ditadura militar, iniciou-se um processo de terceirização dos grupos de extermínio; civis se tornaram membros e líderes. Claro que sempre com o apoio da estrutura de segurança pública.

Política institucional

No início dos anos 1990, esses matadores passaram a concorrer a cargos eletivos, tornando-se vereadores, prefeitos e deputados estaduais, com destaque para a Baixada Fluminense.

No final dos anos 1990, surgem os primeiros protótipos de milícias nos moldes que temos hoje. Era a fase miliciana dos grupos de extermínio, que passam a contar com a presença de agentes estatais da área de segurança, controle territorial, financiamento por empresários e comerciantes, com membros eleitos ocupando diferentes cargos políticos, movimentando um número crescente de negócios criminais que geravam um volume de dinheiro cada vez maior.

Zona Oeste do Rio

Os anos 2000 foram marcados pela expansão das milícias para a Zona Oeste do Rio de Janeiro, ocupando vastas áreas da região metropolitana. A esta altura, policiais que formavam os grupos de extermínio, que ganharam força durante a ditadura empresarial-militar, alcançaram um patamar inconteste de milícias, atuando por dentro da estrutura do Estado.

A milícia passa a monopolizar a venda de terrenos e casas, além da distribuição de água, gás, eletricidade, acesso clandestino à TV por assinatura e internet. Realiza agiotagem, aterros clandestinos de lixo e controle de clubes e demais atividades de lazer.

Sem qualquer amparo, grupos crescentes de moradores de periferias e favelas foram incorporados a essa sociabilidade miliciana, que termina por desembocar em processos eleitorais manipulados. Nas votações para cargos eletivos, apenas os candidatos permitidos pela milícia podem fazer campanha, ao passo que os eleitores só podem votar nos nomes indicados pela milícia.

A permanência desse grupo armado por vinte ou trinta anos em uma mesma localidade passa a gerar um status miliciano. Se aproximar da estrutura miliciana de poder garante prestígio, vantagens econômicas, solução vantajosa de conflitos e projeção eleitoral.

O salto miliciano ocorre quando há a penetração das estruturas legais do Estado, quando seu capital criminal lhe permite constituir empresas que passam a ganhar licitações dentro das prefeituras, quando fornecem maquinários para obras ou passam a ofertar a mão de obra terceirizada para Organizações Sociais (OSs), que atuam destacadamente na rede pública de saúde.

O capitão do mato

A milícia é, portanto, a evolução mais acabada do racismo histórico e estrutural que caracteriza a sociedade brasileira. Expressa o lado sombrio e sanguinário de uma classe dominante que sempre impôs seus interesses acima da vida de indígenas e negros, a partir de processos de escravização e destinando-os posteriormente a espaços controlados territorialmente de forma totalitária.

Esse grupo exemplifica como a classe dominante se vale da violência sistemática, recorrendo historicamente a figuras como o capitão do mato, caçador de escravizados. Esse mecanismo opera de forma contínua, tanto dentro da legalidade como por meios ilegais em uma ação combinada de forças policiais e milicianas.

Não há nenhum poder paralelo na milícia. Uma vez que ela é o próprio Estado agindo, possibilitando que as dimensões criminosas sejam gerenciadas a favor dos grupos políticos que controlam esse Estado.

Pensar saídas para esse problema nos remete, muito mais, não para reformas da instituição policial e suas instituições, mas para transformações profundas da estrutura política, na direção da liberdade e da igualdade, da participação popular criativa na construção da vida e da proteção de direitos.


José Cláudio Souza Alves é sociólogo, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e pesquisador que se dedica a entender o surgimento e o crescimento das milícias brasileiras, especialmente as que atuam na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro, há mais de 30 anos.

Foto: Forças de segurança ocuparam o Complexo do Alemão depois de ter sido oferecida a possibilidade de entrega aos traficantes. A ação das policiais, com o apoio das Forças Armadas, inclui o uso de tanques militares, helicópteros e outros veículos. A bandeira do Brasil foi apressada na parte mais alta do morro como marca da ocupação policial. Armas, munição e drogas foram apreendidas em vários locais. Crédito: Agência Brasil -ABr

Publicado originalmente no Le Monde Brasil


No próximo artigo, teremos uma cronologia da militarização a partir de uma política de Estado que sempre esteve pautada no debate da segurança pública – todos os governantes do Rio de Janeiro ganharam eleições prometendo uma cidade segura. Mas a cidade segura resultou sempre em controle de territórios como as favelas e as periferias do Rio.

Seus habitantes sofrem com constantes operações policiais, acompanhados do discurso de combate ao tráfico de drogas. Nas últimas décadas, mais de 39 favelas foram invadidas pelas Unidades de Polícia Pacificadora, as UPPs, que na época, pesquisadores e movimentos de favelas já afirmavam que causaria aumento da presença das milícias nas favelas das zonas Norte e Sul, locais em que elas ainda não tinham domínio.

Em 2018, a milícia não avança só em todo o Rio de Janeiro, mas ganha as eleições presidenciais. Não por acaso, os principais acusados de assassinar Marielle e seu motorista Anderson são milicianos do Escritório do Crime, que segundo investigações foram contratados por representantes estatais para assassinar a vereadora.