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O Passe Livre
17/04/2014
por

Horizontalidade, inteligência tática e estratégia antissistêmica

Para o sociólogo, o movimento reúne duas marcas contemporâneas e transformadoras: atitude libertária e pauta tóxica… para o capitalismo.

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Por Michael Löwy, Mediapart | Tradução Caipora (MPL-Rio)

 

A luta do Movimento Passe Livre (MPL) – movimento pelo transporte público gratuito – contra o aumento dos preços das passagens foi a que desencadeou a ampla e impressionante mobilização popular no Brasil no último mês de junho, que levou às ruas centenas de milhares, quando não milhões, de pessoas nas principais cidades do país. O MPL foi uma pequena faísca libertária que provocou o incêndio. Quais lições podem ser tiradas desta experiência e qual é o alcance social, ecológico e político da luta pelo transporte gratuito?

O MPL foi fundado em janeiro de 2005, por ocasião do Fórum Social Mundial de Porto Alegre, como uma rede federativa de coletivos locais. Estes coletivos já existiam há vários anos e levaram a cabo importantes lutas como a de Salvador (BA) em 2003, contra o aumento das passagens de ônibus. A carta de princípios do MPL (revisada e completa em 2007 e 2013) o define como um “movimento horizontal, autônomo, independente e apartidário, mas não antipartidário”.

A horizontalidade é, sem dúvida, a expressão de um projeto libertário que desconfia das estruturas e instituições “verticais” e “centralizadas”. A autonomia em relação aos partidos significa a negação em ser instrumentalizado por estes últimos, mas o movimento não recusa a colaboração e a ação comum com as organizações políticas, em particular as da esquerda radical. Atua em conjunto também com associações de bairros populares, com movimentos pelo direito à moradia, com as redes de luta pela saúde e com certos sindicatos (trabalhadores do metrô, professores). Enxerga no transporte gratuito não um fim, mas um “meio para a construção de uma sociedade diferente”. Pequena, a rede nunca superou algumas centenas de militantes, advindos primeiro das instituições de ensino e mais tarde dos bairros populares. De sensibilidade anticapitalista libertária, os ativistas têm diferentes origens políticas: trotskystas, anarquistas, altermundialistas, neozapatistas; com um toque de humor, alguns se definem “anarco-marxistas punk”. Em novembro de 2013 realizou, pela primeira vez, uma Conferência Nacional em Brasília – graças ao apoio financeiro da filial brasileira da Fundação Rosa Luxemburgo – com a participação de 150 delegados, que representaram 14 coletivos locais. Foram adotadas, através de consenso, algumas resoluções e formou-se um grupo de trabalho, composto por representantes dos coletivos, que coordenará as iniciativas, respeitando a autonomia e a “horizontalidade”. (Obtivemos estas informações em duas reuniões com militantes do MPL em São Paulo, Brasil, em novembro de 2013).

O método de luta do MPL é também de inspiração libertária: a ação direta nas ruas, geralmente lúdica e ousada, mais do que a “negociação” ou o “diálogo” com as autoridades. Os militantes não cultuam nem a violência, nem a não violência; uma de suas ações típicas é bloquear as ruas, ao som de grupos musicais, colocando fogo em pneus e “catracas”. Este termo, intraduzível, significa no Brasil um torno metálico giratório, bem firme, que fica em todos os ônibus, o qual não se pode atravessar antes de pagar a passagem ao cobrador. O símbolo do MPL é uma “catraca” em chamas… É bom lembrar que o transporte público, que em sua origem era um serviço público, foi privatizado em todas as cidades do país e pertence a empresas capitalistas de práticas mafiosas. As prefeituras têm, no entanto, controle sobre o preço das passagens.

A inteligência tática do MPL foi colocar como prioridade um objetivo concreto e imediato: barrar o aumento do preço das passagens decidido pelas autoridades locais nas principais cidades do país, tanto as geridas pela centro-direita como pela centro-esquerda (o Partido dos Trabalhadores, que se tornou social-liberal). Recusando os argumentos pretensamente “técnicos” e “racionais” das autoridades, o MPL mobilizou milhares de manifestantes, que foram duramente reprimidos pela polícia. Estes primeiros milhares de manifestantes se tornaram dezenas de milhares e logo milhões (com o preço, certamente, de algum esvaziamento político), e os poderes locais se viram obrigados, precipitadamente, a cancelar os aumentos. Primeira lição importante: a luta pode ser ganha, e fazer com que as autoridades responsáveis retrocedam!

Uma vez que assumiu este combate prático e urgente, o MPL não deixou em nenhum momento de destacar seu objetivo estratégico: a tarifa zero, o transporte público gratuito. Para eles é preciso, segundo a Carta de Princípios, “retirar o transporte público do setor privado colocando-o sob o controle dos trabalhadores e da população”. É o que os militantes do MPL chamam “perspectiva classista” de sua luta. É uma exigência de justiça social elementar: o preço do transporte é proibitivo para as camadas mais pobres da população, que vivem nas periferias degradadas das grandes cidades, e dependem do transporte público para trabalhar ou estudar. É uma reivindicação que interessa diretamente aos jovens, aos trabalhadores, às mulheres, aos habitantes das favelas, ou seja, a grande maioria da população urbana.

Mas a tarifa zero também é uma pauta profundamente subversiva e antissistema, no sentido do que se poderia chamar um método de programa de transição: como observa a carta de princípios “deve-se construir o MPL com reivindicações que ultrapassem os limites do capitalismo, vindo a se somar a movimentos revolucionários que contestam a ordem vigente”. É um simpático exemplo do que o filósofo marxista Ernst Bloch chamava utopia concreta. Certamente há cidades no Brasil ou na Europa em que esta proposta pôde se realizar. Numerosos estudos especializados demonstram que ela é completamente possível, sem causar déficit às administradoras locais. Não deixa de fazer sentido que a gratuidade é um princípio revolucionário, que se contrapõe à lógica capitalista, na qual tudo deve ser uma mercadoria; é, portanto, um conceito insuportável, inaceitável e absurdo para a razão mercantil do sistema. Mais ainda quando, como propõe o MPL, a gratuidade dos transportes é um precedente que pode abrir caminho à gratuidade de outros serviços públicos: educação, saúde, etc. De fato, a gratuidade é o presságio de uma sociedade diferente, baseada em outros valores e outras regras diferentes das do mercado e da ganância capitalistas. Daí a resistência desesperada das “autoridades”, tanto conservadoras, como neoliberais, “reformistas”, de centro ou social-liberais.

Existe ainda outra dimensão da reivindicação pelo transporte gratuito, que até o momento não foi suficientemente defendida pelo MPL (mas que começa a se dar conta): o aspecto ecológico. O atual sistema, totalmente irracional, de desenvolvimento ilimitado do uso do carro individual, é um desastre pelo ponto de vista da saúde dos habitantes das grandes cidades – milhares de mortos por causa da poluição do ar diretamente provocada pelos escapamentos – e pelo ponto de vista ambiental. Como se sabe, o carro é um dos principais emissores de gás com efeito estufa, responsável pela catástrofe ecológica das mudanças climáticas. O carro continua sendo, desde o fordismo até hoje, a mercadoria de destaque do sistema capitalista mundial; consequentemente, as cidades estão completamente organizadas em função da circulação de automóveis. Agora bem, todos os estudos mostram que um sistema de transporte coletivo eficaz, universal e gratuito, permitiria reduzir significativamente o uso do transporte individual. O que esta em jogo não é só o preço da passagem de ônibus ou de metrô, mas outro modo de vida urbana, sensivelmente, outro modo de vida.

Em resumo: a luta pelo transporte público gratuito é, de uma só vez, um combate pela justiça social, pelos interesses dos jovens e dos trabalhadores, pelo princípio da gratuidade, pela saúde pública, pela defesa dos equilíbrios ecológicos. Permite que se formem amplas frentes e se abram brechas na irracionalidade do sistema mercantil. Não deveríamos, na França e em toda a Europa, nos inspirar no exemplo do MPL impulsionando em nossas cidades movimentos amplos, unitários, autônomos, de luta pela gratuidade dos transportes públicos?

Texto de Outras Palavras