Reflexões e historias sobre a importância da Terra Preta para os territórios indígenas da Bacia do Tapajós
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O presente de Karo Ebak aos Munduruku
09/10/2015
por
Luiz Cláudio Brito Teixeira e Jairo Saw Munduruku

Reflexões e historias sobre a importância da Terra Preta para os territórios indígenas da Bacia do Tapajós

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Por
Luiz Cláudio Brito Teixeira*

Jairo Saw Munduruku**

Fotos: Mauricio Torres

Na bacia do rio Tapajós, que se estende pelo oeste do estado do Pará, as marcas antigas da passagem humana surpreendem os que não conhecem os inúmeros registros dessa presença ou que nunca tenham ouvido a rica história dos povos que hoje habitam as margens do rio Tapajós. Como as que falam da chamada terra preta (ou terra preta de índio).

Os estudos sobre a ocorrência desse tipo de terra na Amazônia não são tão recentes. Mas só ganharam atenção especial na segunda metade do século XX, e as pesquisas sobre este substrato têm se multiplicado nos últimos anos. A necessidade de dar respostas efetivas a problemas reais no cultivo do solo tem levado inclusive pesquisadores a tentar reproduzir a terra preta para o uso não só em locais da Amazônia onde não ocorrem essas terras, como em outras regiões do país.

A Amazônia é um local privilegiado para a observação da ocorrência desse tipo especial de solo, e durante algum tempo atribuiu-se sua existência a uma combinação de fatores climáticos e geológicos ao longo do tempo. Mais recentemente, porém, chegou-se à conclusão que a Terra Preta, por ser rara e se localizar em diferentes regiões e sempre associado a presença humana em sucessivos períodos de tempo, deveria ser o resultado de um manejo feito por indígenas ao longo de inúmeras gerações.

Esse manejo primeiramente tido como não intencional, visto envolver a queimada de uma área de floresta que varia de tamanho, podendo chegar até 500ha dependendo da região, posteriormente foi reconhecido como algo planejado e replicado em diferentes regiões.

Teorias a parte, para os indígenas Munduruku que habitam a região do Tapajós, seu território e tudo que sabem sobre o manejo das roças possui uma história, como todos os seres vivos, e é contada em parte nesse fragmento de mito de como Karo Ebak aprendeu a plantar mandioca, narrado pelo cacique Jairo Saw Munduruku:

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Karo Ebak era uma criança que desejava comer frutas. Ao sentir fome chorava pedindo frutas para a avó.
– Ah! Quero comer banana;
– Quero comer ananás!
– Quero comer Cará-areia e etc…

A avó, ao ouvir sempre o lamento de seu neto, se condoeu profundamente e se propôs a sacrificar-se para atender o desejo da criança. Ensinou todo o processo da escolha de terra fértil, o preparo da terra e a época certa para brocar roça, até a fase final do plantio. Em seguida ensinou o ritual de como plantar as espécies de plantas frutíferas. Repassou todas as regras e todos os processos das plantas a serem plantadas, do uso das sementes à formação das mudas.

Mas faltava ainda algo para que a terra ficasse pronta: a avó., que deveria ser enterrada viva no solo onde tinha sido feita a roça. Mas o neto nada sabia desse plano, pois antes de tudo ser feito a avó escondeu suas intenções e nada contou ao neto sobre o que viria a seguir. Disse a avó do Karo Ebak: “quando for enterrada a semente, você pode cobrir a cova. Quando na cova estiverem aparecendo as rachaduras, deixe crescer a planta até que pare”.

Quando Karo Ebak levou a tia para a roça, a cova estava pronta e a avó pediu que fosse colocada e enterrada naquele buraco. Quando isso aconteceu, a cova começou a inchar, apareceram rachaduras na terra e o neto ficou preocupado e com medo de que sua avó pudesse sair do buraco. Temendo isso, o menino começou a pisar em cima da cova e ela parou de aumentar. E é pelo que Karo Ebak fez na cova da avó que a mandioca não cresce mais do que hoje conhecemos.

Depois de a avó ser enterrada viva, surgiram várias espécies de plantações sem que a criança as plantasse. Tudo se originou naturalmente devido ao fato de a terra ter recebido de volta seu elemento orgânico. Foi só quando a terra recebeu a avó que os munduruku puderam plantar e tiveram o conhecimento da existência de uma terra preta, que surgiu junto com a agricultura.

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Uso da terra preta, segundo os Munduruku
Antes da criação da agricultura (a história de Karo Ebak), os Munduruku preparavam os terrenos com práticas rudimentares e muito simples. Com ajuda de uma ferramenta de pedra lapidada, retiravam as cascas de arvores num diâmetro de cerca de dois palmos em volta das árvores. Em mais ou menos um ano as árvores começavam a perder as folhas, adubando assim o solo. Em cerca de dois anos a terra estava pronta para o plantio. As árvores secas continuavam de pé, mas em baixo a terra fica adubada sem ser queimada porque os restos das folhas produziu material orgânicos e assim enriqueciam o solo, explicam os Munduruku.

Segundo os indígenas, uma área de roça é utilizada por dois anos consecutivos, para posteriormente descansar por um período de sete. Quando o povo resolve mudar de aldeia, este período aumenta e a natureza se recompõe como se o solo não tivesse sido usado o solo. E por isso que a Terra Preta fica formada em alguns lugares, e torna-se terra fértil, chamada Katõ.

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Na maioria das vezes, na área utilizada para os plantios fica apenas uma grande capoeira deixada pelos Munduruku. Com as mudanças das aldeias para outro local, ficam restos de material deixados pelas pessoas que ali moraram. Podem-se encontrar vestígios de cerâmicas e mesmo restos mortais nesses locais, que muito antes já fora habitado.

A explicação dada pelos Munduruku mostra que a origem da terra preta para os os indígenas está diretamente vinculada ao domínio da agricultura. Foi uma dádiva de Karo Ebak, a partir do sacrifício de sua avó, representando o enriquecimento do solo para que o povo possa ter variedade de plantas nas suas roças.

A busca por esse tipo de terra para plantio é uma constante entre os habitantes do vale tapajônico. No rio Tapajós uma das aldeias recém criadas foi a aldeia nova Karo Doybu, distante da cidade de Jacareacanga cerca de 30 minutos de voadeira (barco a motor). A aldeia toda havia se mudado do seu antigo local, a embocadura do rio das Tropas, em razão de uma cheia do rio Tapajós, que atingiu a todos, algo que eles admitem nunca terem visto, apesar de a antiga aldeia não ficar em local tão alto quanto a atual, que está a uma altura de cerca de 15 metros da margem do rio Tapajós.

Segundo o cacique Francisco, da aldeia Karo Doybu, na antiga localização havia um bom local de plantio de terra preta. Na atual, apesar de terem gostado do lugar e já terem iniciado suas roças, não encontraram ainda este substrato.

Localização nas terras Munduruku

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O rio Kabitutu, afluente esquerdo do rio Tapajós, é apontado como um local de presença abundante da terra preta, tanto que essa terra nomeia a mais importante aldeia desse rio, chamada Katon, que na língua Munduruku é traduzida como terra Preta.

As sucessivas ocupações do espaço amazônico ao longo do rio Tapajós parecem se perder no tempo cronológico, mas não no tempo Munduruku, que conseguem identificar o surgimento desse tipo de terra e a sua finalidade, como esclarecido no início desse texto. Espacialmente, o que se diz é que a terra preta teria origem nos povos pré-colombianos, e acredita-se que a ocorrência dessa terra indica a presença de assentamentos humanos ao longo do tempo em um determinado espaço dentro de uma lógica de sucessivas ocupações. Identificar os locais de ocorrência de terra preta ajudaria também a entender a dinâmica de deslocamento desses povos na Amazônia.

A localização atual das aldeias munduruku na região do Alto Tapajós obedece a dois princípios básicos: possibilidade de vigilância através da ocupação e proteção do território contra de invasores, e facilidade de acesso à cidade através dos rios. A existência da terra preta também é um fator prioritário mas não excludente para a criação de uma nova aldeia, como se observou no caso da aldeia nova Karo Doybu. Uma nova aldeia evidentemente precisa contar com outros atrativos, como facilidade para a construção de um porto, curso d’água próximo (que não o rio principal) e matéria prima abundante para a construção das primeiras casas. Por outro lado, nas aldeias distantes das margens dos rios que ocupam os chamados campos amazônicos, a presença de terra preta deixada por Karo Ebak é fundamental.

Descendo um pouco mais o rio Tapajós, chega-se às aldeias Praia do Mangue e Laranjal, que dividem um mesmo território de aproximadamente 33ha, e um pouco mais distante à aldeia Praia do Índio. Essas três aldeias ficam na área urbana da cidade de Itaituba, no Médio Tapajós, e são remanescentes da antiga ocupação de diversos grupos indígenas, como o povo Maué, que hoje vive no Estado do Amazonas. A cidade de Itaituba estaria assentada sobre uma área de ocorrência de terra preta, segundo informam os índios Munduruku, que conseguem identificar essas áreas em locais onde hoje estão construídos prédios do governo.

Essas três aldeias, apesar de recentes, ocupam antigos assentamentos dos Munduruku e dos Maué, e estão em processo de reconhecimento territorial, embora a Funai insista em caracterizar a área como reserva indígena e não terra indígena. Um jogo de palavras e termos técnicos jurídicos que objetiva conter qualquer futura reivindicação do povo por suas antigas áreas de ocupação, dessa forma liberando essas outras áreas para o latifúndio e futuros empreendimentos do Capital. Alguns desses empreendimentos, como o porto de Miritituba (distrito de Itaituba), o futuro porto da Bunge e projetos portuários de outras empresas graneleiras estão sendo construídos às margens do rio Tapajós sem os devidos cuidados com o estudo e possível preservação de locais de ocorrência de terra preta e, mesmo assim, contam com licenças ambientais dos órgãos de proteção do meio-ambiente do município e do Estado.

Já a cerca de 80 km de Itaituba, na margem esquerda do rio Tapajós, encontra-se a Terra Indígena Sawré Muybu, aonde ficam as aldeias Sawré Muybu e Dacê Atypum, que aguardam há três anos a finalização do processo de demarcação do seu território. Cansados de esperar que o Estado cumprisse sua obrigação, os próprios Munduruku decidiram iniciar sua autodemarcação.

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foto: site da Autodemarcação Munduruku

Nesse território e um pouco mais acima há notícias da presença de antigos aldeamentos, onde possivelmente se pode encontrar novas ocorrências de terra preta. Mas a confirmação desse evento fica prejudicada, uma vez que a área, apesar de ser indígena, está sujeita a invasões de garimpeiros e madeireiros. Mas a principal ameaça é o projeto de construção da hidrelétrica de São Luiz do Tapajós, que caso venha de fato a ser consolidado inundará uma imensa área de terra indígena e de florestas.

Em função destas ameaças, uma das medidas tomadas pelos Munduruku na autodemarcação de Sawre Muybu foi identificar dentro do território o maior número possível de referências mítico-históricas. Entre estas, registros de antigos aldeamentos e locais de sepultamento, roças antigas e locais onde estão registrados nas pedras e nos acidentes naturais os fatos históricos que já se perderam nas brumas do tempo e se juntaram aos acontecimentos da mitologia Munduruku.

Para que serve a Terra Preta?

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Em termos de conhecimentos históricos e arqueológicos da presença das primeiras civilizações amazônicas, a identificação e preservação dos sítios de terra preta ajudam a entender a dinâmica de ocupação e manejo do território desses primeiros povos que, mais tarde, dariam origem a civilizações mais complexas, como a civilização Tapajônica, cujo centro irradiador estaria localizado onde hoje se assenta a cidade de Santarém.

A terra preta, junto com outros elementos bióticos, pode confirmar que os povos que ali viveram e conviveram modificaram seu ambiente de modo a extrair melhor os recursos para a sobrevida cotidiana, sem, contudo, compromete-los. Mais além, as significativas alterações na floresta podem ter sido umas das causas da sua imensa biodiversidade.

A existência comprovada de carvão pirogênico (produzido pelo homem de maneira deliberada) nos locais de terra preta indica que a intenção dos primeiros habitantes da região era deixar áreas disponíveis para plantio. Outros elementos químicos destes solos também se devem ao manejo destas populações, cuja técnica possivelmente sobrevive ainda entre os Munduruku e populações ribeirinhas ao longo do rio Tapajós.

Em termos práticos, entender esse manejo da terra feita pelos mais antigos habitantes amazônicos ajudaria a reproduzir a técnica de produção de terra preta, para fins de compartilhamento entre agricultores contemporâneos não só na Amazônia como em outros espaços ecológicos, contribuindo com a melhoria da produção de alimentos orgânicos e quebrando assim a hegemonia dos produtos da agricultura convencional (que faz uso de agrotóxicos e adubos químicos) na mesa do consumidor.

Apesar de se reconhecer a importância histórica e arqueológica da terra preta, para os Munduruku a identificação dessas terras é vital para o estabelecimento seguro de novas aldeias e a formação de suas roças, além de inequívoca prova do seu direito ancestral sobre as terras em que vivem.

Os Munduruku sabem da importância da utilização da terra preta, tanto quanto a sua existência em locais de eventos míticos-históricos. Muitas vezes os Munduruku, quando se instalam em determinado lugar onde há terra Preta, permanecem no local o tempo que julgam suficiente para aproveitar sua fertilidade e depois se mudam, provavelmente reproduzindo o antigo costume de sempre procurar novas áreas de plantio e caça, evitando assim o esgotamento dos recursos naturais.

Conclusão

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A diversidade de vida na floresta amazônica sempre foi objeto de especulações científicas, e não é o propósito deste texto discutir essas questões. Mas não se pode deixar de observar que pesquisadores como  Gabriel Henrique Lui e Silvia Maria Guerra Molina ou William Balée, Denise P. Schaan, James Andrew Whitaker e Rosângela Holanda apontam para evidências de que tal diversidade só foi conseguida graças ao manejo da floresta e de seu solo por parte dos povos que há habitam há milhares de anos.

Não se pode negar que o conhecimento necessário para esses tipos de manejo corre o risco de se perder em razão de uma absurda escolha de desenvolvimento violento levado a frente pelo Capital e pelo Estado na Amazônia.

Em tempos de mudanças climáticas e suas terríveis consequências para as populações mais pobres, a terra preta pode significar uma alternativa o modelo de agricultura que hoje é um dos grandes vilões do aquecimento global em razão do uso excessivo de fertilizantes químicos, que têm sua origem na exploração do petróleo.

Na perspectiva da agricultura e da ocupação dos territórios pelos indígenas, o manejo do solo implica na garantia de condições de plantio das roças por um período de tempo razoável, de modo a possibilitar a posterior recuperação adequada do local para futuro reaproveitamento; e o estabelecimento de regramentos de ocupação, uma vez que há locais míticos não habitados – os locais de Karosakaybu – que não devem ser mexidos.

Nesse sentido, a demarcação da Terra Indígena Sawré Muybu traria segurança aos Munduruku. A identificação dos locais de ocorrência de terra preta e outros indicadores de ocupação antiga na região poderiam reforçar (e fazer andar) o processo de reconhecimento por parte do Estado, bem como impedir a violação do território e a destruição das marcas da passagem dos mais antigos habitantes da Amazônia pela construção de um complexo de hidrelétricas irracionalmente planejado nos gabinetes de Brasília.

* Luiz Cláudio Brito Teixeira é historiador
** Jairo Saw Munduruku é kiderança da Terra Indigena Sawre Muybu e fundador do Movimento Munduruku Ipereg Ayu

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