Movimentos urbanos do Brasil e da Espanha discutem o avanço do capitalismo especulativo sob a moradia e a cidade de norte a sul global
Onde habita a contradição
24/05/2023
por
Márcia Falcão*

Movimentos urbanos do Brasil e da Espanha discutem o avanço do capitalismo especulativo sob a moradia e a cidade de norte a sul global

Manifestação realizada pela PAH Barcelona contra despejos e pelo direito à moradia
Manifestação realizada pela PAH Barcelona contra despejos e pelo direito à moradia – Foto: PAH Barcelona

Embora tenham bases históricas e econômicas distintas, Brasil e Espanha compartilham um agravamento da crise habitacional nos últimos anos, intensificada pelo avanço do capitalismo financeiro sobre o direito à moradia. Ao mesmo tempo, iniciativas populares surgem como resposta a esse processo e apresentam alternativas para valer fazer o direito à cidade. A proposta deste artigo é analisar brevemente o debate da questão urbana na era do capitalismo financeiro, tendo como base a atuação da Plataforma de Afetadas pelas Hipotecas (PAH), da Espanha, e do Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos (MTD), do Brasil.

Ambas organizações participaram de uma série de eventos organizados pelo escritório de São Paulo da Fundação Rosa Luxemburgo em abril deste ano, na capital paulista. As atividades foram realizadas no marco do lançamento do livro A PAH – manual de uso: aprendizagem para a ação coletiva a partir da luta pelo direito à moradia, de João França. O intercâmbio envolveu a realização de seminários, rodas de conversas e compartilhamentos de práticas e metodologias, envolvendo também outras organizações – entre elas, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Esse processo proporcionou reflexões sobre a problemática da moradia que discuto a seguir.

Lançamento do livro A PAH: manual de uso
Lançamento do livro A PAH: manual de uso realizado durante intercâmbio promovido pelo escritório de São Paulo da Fundação Rosa Luxemburgo – Foto: Verena Glass

Sob à luz de Rosa Luxemburgo

Três lições de Rosa Luxemburgo guiarão a presente análise. A primeira diz respeito ao compromisso internacionalista com as diversas lutas dos povos. Se esse era um valor importante para as lutas anticapitalistas do início do século XX, torna-se fundamental no século XXI globalizado, que, sob o comando do sistema financeiro, avança sob as moradias e as cidades, convertendo-as em ativos financeiros.

Neste cenário, apesar de movimentos populares como a PAH e o MTD serem herdeiros de histórias e políticas habitacionais diferentes, são, no entanto, afetados por um mesmo processo global: o alinhamento neoliberal que incide, em nome da “gestão eficiente de mercado”, em todas as esferas das instituições públicas, inclusive nos discursos midiáticos.

A segunda lição de Rosa Luxemburgo é a afirmativa de que os mecanismos de expropriação e de exploração da força de trabalho sempre operam em conjunto na história do capitalismo. Ou seja, o quadro internacional de crescente precarização no mundo do trabalho produtivo anda de mãos dadas com o processo de corrosão do acesso aos direitos básicos necessários para a reprodução social da vida, tais como: moradia e serviços urbanos comuns. Desenvolvo abaixo um pouco mais esse raciocínio aprofundando a análise sobre a realidade na Espanha e no Brasil.

Habitar a cidade na era das finanças: o caso da Espanha

O caso espanhol é emblemático sobre a produção da precarização da moradia. Em pouco mais de uma década foi produzido um ciclo completo próprio da lógica capitalista: criação de uma bolha imobiliária; crise generalizada da economia; e expropriação em massa de moradias das famílias, o que a literatura chama de acumulação por despossessão.

Para rapidamente explicar o caso espanhol é preciso partir dos anos 1990, quando importantes legislações foram alteradas para abrir caminhos para o mercado. Entre elas, merece destaque a eliminação de barreiras dos preços de aluguéis; a redução do tempo de contratos; e a lei que ficou conhecida como “Ley del todo urbanizable”.

De 1998 até 2008, – quando estoura a bolha imobiliária na Espanha de pouco mais de 40 milhões de habitantes – foram construídas 6,6 milhões de moradias. No período, os preços dos imóveis tiveram alta de 232%; e os diversos setores envolvidos na construção civil chegaram a representar 30% do Produto Interno Bruto (PIB) do país e 13% dos postos de trabalho. Essa foi uma grande aposta financiada, em grande parte, pelo endividamento das famílias que, até então, só encontravam facilidades para acessar o financiamento imobiliário com pagamento em 30 ou 40 anos.

Em 2008, logo após o estouro da bolha imobiliária nos EUA, foi a vez de a Espanha ver sua economia ruir, bem como de outros países que apostaram na mesma estratégia como modelo de desenvolvimento. Com desemprego alcançando 26% da População Economicamente Ativa (PEA) e 47% entre jovens e imigrantes, em poucos meses a inadimplência cresceu. Não demorou para os bancos acionarem as instituições do Estado espanhol para, de um lado, acessar os tribunais e despejar as famílias dos imóveis e, de outro lado, acessar os cofres públicos, de onde receberam diferentes medidas de resgate bancário no montante de 25% do PIB do país, entre os anos 2009 e 2013.

Os mesmos bancos que receberam dinheiro público protagonizaram uma onda de ações que alcançou, apenas no ano de 2012, a dimensão de 5,82 despejos realizados para cada mil lares na Espanha. Ou seja, apenas naquele ano, houve 102.299 despejos em um universo de 17,6 milhões de lares existentes em todo o país. Na comunidade autônoma da Catalunha, o processo foi ainda mais extremo e alcançou 8,96 despejos para cada mil lares.

Entre 2008 e 2020, mais de um milhão de despejos aconteceram na Espanha. Os imóveis depois foram leiloados por 60% do valor, ou ainda menos, o que não cobria a dívida das famílias que já haviam perdido a moradia, considerando que o contrato era do capital e dos juros por três ou quatro décadas. Vidas hipotecadas foi a expressão usada pelos movimentos sociais para denunciar a situação das famílias.

Os grandes compradores da “banana da vez” foram os fundos de investimentos. Além de acumular imóveis de leilão, adquiriram carteiras de créditos dos bancos – leiam-se dívidas das famílias – igualmente por preço de banana. Com isso, acumularam milhares de imóveis para especulação. O fundo de investimento estadunidense Blackstone tornou-se um dos maiores investidores do ramo e hoje é conhecido como a maior imobiliária do mundo.

Garantido o monopólio dos imóveis, o ajuste seguinte de mercado vem sendo chamado de “ajuste planetário de aluguéis”. No caso espanhol, entre 2015 e 2018 viu-se o incremento no preço dos aluguéis da ordem de 52% e, chagando a aumentos mais elevados em algumas regiões, como na Catalunha, com 60% e Valência, com 68%.

É nesse contexto que vem atuando a PAH. Criada em Barcelona, em 2009, a PAH formou-se como um movimento comprometido com a luta pelo direito à moradia e em enfrentamento ao modelo econômico e político que submete a política e o Estado aos interesses do capital. Em poucos anos, a PAH estendeu núcleos assemblearios por todo o território espanhol, chegando a mais de 200 assembleias locais. Até 2014, o principal problema das famílias que chagavam à PAH era as dívidas hipotecárias e a pauta central da PAH era a quitação da dívida com a entrega do imóvel, a dación en pago. Depois disso, o grande drama das famílias vem sendo manter o alto custo do aluguel, motivo pelo qual se deram 80% dos despejos no ano de 2018, segundo dados do Conselho Geral do Poder Judiciário. Nesse novo contexto de ajuste da estratégia do capital sob a moradia, está no centro da pauta da PAH a criação de legislações que obriguem os grandes proprietários – com mais de 15 imóveis – a conceder aluguel social compulsório, que não extrapole 18% da renda da família. Com isso, está na pauta da PAH que o Estado retome a política de parques públicos de moradias sociais, que também havia sido sucateado e vendidos ao longo dos anos 1990. O que restou desse patrimônio ainda vem sendo negociado com grupos privados, como o caso do parque de 1.860 moradias sociais da Empresa Municipal de la Vivienda y Suelo de Madrid (EMVS), vendidos para Blackstone, em 2013.

Habitar a cidade na era das finanças: o caso do Brasil

O dilema da moradia e da cidade no Brasil tem bases estruturais diferentes da Espanha. Assim como em grande parte da América Latina, a urbanização brasileira foi acelerada e precária, datada da segunda metade do século XX, e se deu pela equação expulsão dos pobres do campo, industrialização tardia incapaz de absorver a mão de obra e ausência de política habitacional. Essa combinação resultou em cidades autoconstruídas pelos pobres com a precária infraestrutura que bem conhecemos. Seguimos sem superar esta “marca de nascença”. Porém, temos visto um agravamento nas condições de vida nas cidades brasileiras.

O déficit habitacional segue na ordem de 5,8 milhões de moradias, sendo 2 milhões destas se referem a famílias vivendo em áreas de proteção de mananciais. Somado ao déficit habitacional e de infraestrutura urbana, temos assistido às investidas dos agentes do complexo imobiliário-financeiro sob os governos. A lista é grande: vai da incidência para ajustes dos Planos Diretores “ao gosto do mercado”, para a concessão de áreas de lazer herdadas de outras temporalidades – como nos galpões de cães nas orlas, prédios históricos e parques – e para a concessão de serviços públicos – como o transporte, saúde e saneamento -, exemplos latentes na pauta urbana brasileira. O interesse nisso tudo, à esteira da era das finanças, não reside apenas no valor real de cada ativo. Trata-se de assegurar a garantia do monopólio por três, quatro ou mais décadas, de modo a permitir a comercialização de outro produto: os títulos de propriedade – ou contratos de concessão –, que passam a circular no mercado financeiro com valor dado pela antecipação de fluxos futuros a receber e pela prospecção da condição futura de escassez do bem.

Além disso, poderíamos tratar das constantes investidas de gentrificação de bairros inteiros, do processo de concentração de imóveis nas áreas de interesse para locação de turismo ou negócios, via plataformas, o que incide na elevação dos preços de aluguel, ou ainda, teríamos muito a tratar sobre os despejos violentos que seguem sendo rotina nas comunidades. E há outra faceta pouco tratada pelo viés do acesso às condições de habitar a cidade que precisa ser refletida. Trata-se do alto grau de endividamento da população brasileira, que chega a 78,9% das famílias brasileiras. Destes, 51% deve a bancos, com os maiores juros do mundo, a título de dívida com financiamentos (carro e casa), mas também por atraso de pagamento de cartão de crédito e cheque especial.

Fácil imaginar que as dívidas com cartão de crédito e cheque especial de grande parte destes inadimplentes é com gastos em mercado, combustível para deslocar-se pela cidade, remédios, roupas para família e demandas da reprodução da vida. Outros 49% têm dívidas com o fornecimento de água, luz, telefone, internet e outros. O que os dados demonstram é que a população brasileira vem se endividando numa condição ainda mais precária do que o caso dos hermanos espanhóis. Trata-se de endividar-se para garantir as condições básicas de morar na cidade: dispor de água, luz, internet, deslocar-se, garantir roupa e comida.

É nesse contexto que o MTD vem lutando em diferentes frentes pelo acesso aos direitos básicos, tais como trabalho digno, moradia, comida e outros contidos na palavra de ordem “Direito de morar: morar com direitos”.

Retomo, assim, o pensamento de Rosa Luxemburgo do qual extraio a terceira lição político-pedagógica: a defesa de que só pela auto-organização e pelos aprendizados da práxis, pela experiência na ação, que as classes oprimidas podem transformar a sua consciência. Ao mesmo tempo que os movimentos populares enfrentam o poder do capital, abrem caminhos para a transformação da sua realidade. Por fim, nas palavras de Rosa: “não estaremos perdidos enquanto não desaprendermos a aprender”.


* Márcia Falcão é educadora popular e militante do MTD. doutora em Geografia pela UFRGS, com pesquisa de tese sobre a crise da moradia na Espanha e as práticas de incidência política da PAH; e pesquisadora do Observatório das Metrópoles núcleo Porto Alegre.

O artigo foi republicado no site Brasil de Fato; confira!